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Chao-chou (778-897)
Referências/Kapleau/David Scott e Tony Doubleday/Varenne

Referências4

Zhaozhou Congshen (Chao-ch'ou Ts'ung-shen, Joshu Jushin), 778-897.
Um Herdeiro de Dharma de Nanquan Puyuan e Irmão de Dharma de Changsha Jingcen Zhaoxien. Ele aparece em "Registros do Precipício Azul" Casos 2, 9, 30, 41, 45, 52, 57, 58, 59, 64, 80, 96, "Registros do Silêncio" 9, 10, 18, 39, 47, 57, 63, e em "Gateless Gate" 1, 7, 11, 14, 19, 31, 37,. Ver o Katto de Dogen.

Joshu Jushin (Ch. Chao-chou Ts’ung-shên; 778-897): célebre mestre do período T’ang. Seu Mu é o mais conhecido de todos os koans. Diz-se que Joshu atingiu o kensho aos dezoito anos e o despertar completo aos cinqüenta e quatro. Dai até os oitenta anos fez peregrinações pela China. visitando mestres eminentes e engajando-se com eles no "combate do Dharma". Só aos oitenta anos é que Joshu fundou oficialmente um mosteiro e começou a ensinar. Continuou então a formar discípulos até sua morte aos cento e vinte anos.

Á semelhança de seu mestre Nansen (Nan-Chuan), Joshu tinha maneiras delicadas. Evitava os discursos enérgicos e as ações violentas de um Rinzai, embora sua sabedoria e agudeza no trato com os discípulos fossem tais, que podia dar a entender mais com uma zombaria gentil ou um franzir das sobrancelhas do que outros mestres com um berro ou um golpe de vara. Vê-se isso claramente pelos numerosos koans a seu respeito. Joshu é extremamente admirado no Japão.





Por David Scott e Tony Doubleday

As estórias a seguir concentram-se na vida de Joshu (em chinês, Chao-chou Ts'ung-shen), um dos maiores mestres Zen da Dinastia Tang. Elas fornecem exemplos maravilhosos do que existe de melhor no Zen. Os comentários e interpretações oferecidos são mais do que isto; certamente não são "respostas" para os problemas que essas estórias representam.

Quando Joshu ainda era adolescente, começou o treinamento com o mestre Nansen (748-834), 36o Patriarca do Zen, na sucessão do próprio Buda Shakyamuni, e cujo nome Zen origina-se da montanha sobre a qual ele fundou seu mosteiro. Na coleção de koans chamada Mumonkan, há um registro de um antigo encontro entre Nansen e Joshu:

Certa vez Joshu perguntou ao mestre Nansen:
"O que é o Caminho?"
Nansen respondeu:
"A mente cotidiana é o Caminho."
"Então, devemos dirigir-nos em sua direção ou não?", perguntou Joshu.
Disse Nansen:
"Se você procurar dirigir sua vida na sua direção, irá se afastar dele."
Joshu, depois, continuou:
"Se não tentarmos, como poderemos saber se ele é o Caminho?"
Nansen replicou:"O Caminho não pertence ao conhecer ou não conhecer. Saber é ilusão. Não saber é não ter discriminação. Se você realmente alcançar o Caminho da Não-Dúvida, verá que é como um grande vazio, imenso e sem fronteiras. Como pode haver certo e errado no Caminho?"

Com estas palavras, Joshu estava iluminado.

Nessa época Joshu era noviço e Nansen já era bem velho. A pergunta de Joshu é realmente a pergunta de todo iniciante: O que é o Zen? Sobre a resposta de Nansen, o Sensei Genpo Merzel disse:

Está traduzido: "A mente cotidiana é o Caminho", porém aprendi a preferir chamar de "mente natural". "Cotidiano" dá a impressão de que é aquilo a que estamos comumente acostumados, e com a mente "Natural" —todos nós sabemos que não somos muito naturais. E mais confiável que o Caminho seja a mente natural. É mente cotidiana também, mas o nosso senso comum para compreender a mente normal não é muito normal. Ela é cheia todos os tipos de vaidades: cobiça, ambição, ciúme etc. Quando você realmente alcança essa mente normal, não é aquilo a que estamos normalmente acostumados.

"Mente", aqui, refere-se ao que, em japonês, chama-se "Shin". Não é só a mente no sentido de cérebro, mas é o coração-mente ou espírito. Poder-se-ia se dizer que o coração natural é o Caminho. Joshu perguntou se deveria procurar a mente cotidiana. Nansen disse que, procurando-a, se afastaria dela. O problema é, como o questionamento persistente de Joshu demonstrou, não é suficiente para o principiante simplesmente ouvir isto. Se a vida de alguém é uma confusão, é muito difícil aceitar que essa pessoa já é Buda. Joshu estava procurando o Caminho para tomar-se Buda e, diante disso, sua persistência é muito legítima. Entretanto, sua idéia a respeito da Iluminação era a única coisa que o estava impedindo de compreendê-la. Do ponto de vista absoluto, Joshu já estava iluminado; do ponto de vista relativo, não via isto.

Nansen disse que o Caminho não pertence ao conhecer ou não conhecer. Em outras palavras, ele apenas é. Conhecer é ilusão; não conhecer é vazio, ignorância. Quando não se tem dúvida a este respeito, existe apenas a Mente de Buda Não Nascida. Portanto, vendo, Joshu teve o Kensho.

Mumon, o compilador do Mumonkan, fez o seguinte comentário sobre esta estória: "Questionado por Joshu, Nansen imediatamente mostra que a telha está se desintegrando, o gelo derretendo, nenhuma comunicação, seja qual for, é possível." O apego de Joshu às suas idéias e preconceitos caiu, e ele teve uma visão da natureza do Não Nascido. Falando sobre isto, disse de si mesmo: "Eu estava arruinado e sem lar". Mumon continuou: "Duvido, entretanto, que Joshu tenha atingido o ponto que Nansen atingiu. Ele precisava de mais trinta anos de estudo." Mumon escreveu uma poesia sobre esta estória:

Centenas de flores na primavera;
A lua no outono;
Uma brisa fria no verão, e neve no inverno.
Se não existe nenhuma nuvem inútil na sua mente,
você está na boa estação.

Mais tarde, quando Joshu tinha saído, os monges das agremiações orientais e ocidentais do mosteiro de Nansen começaram a se desentender. Havia, evidentemente, uma cena rivalidade entre eles, e para a finalidade desta estória, ela se cristalizou ao redor de um gato. Vendo os monges brigarem sobre a posse do gato, Nansen levantou-o e disse:

Se vocês podem dizer uma palavra dentro do Zen, salvarão o gato. Se não, vou dividi-lo em dois. Ninguém pôde falar e Nansen matou o gato. Naquela noite, quando Joshu voltou, Nansen contou-lhe o que tinha acontecido. Joshu tirou a sandália e colocou-a na cabeça, e saiu. "Se você estivesse aqui, teria salvado o gato", comentou Nansen.

Na estória anterior, Joshu aprendeu que, quando existe apego às noções de Iluminação e ilusão, conhecimento ou não-conhecimento, a pessoa já está se afastando do Caminho. Esta estória ilustra o mesmo princípio, mas, desta vez, ao contrário dos monges das salas do Oriente e do Ocidente, Joshu não está num beco sem saída.

Por trás de toda discussão existe o apego ao certo e errado, bom e mau, meu e teu, e assim por diante. Pela sua maneira de agir, Nansen estava perguntando aos monges como tais disputas tinham de ser resolvidas.

Zenji Dogen disse a respeito desta estória: "Se eu fosse Nansen, diria: "Se você responder, eu o mato; se não responder, eu o mato."" Katsuki Sekida, um mestre Zen moderno, disse: "Se eu fosse um dos monges, diria: "Não posso responder; por favor corte o gato em dois", ou diria: "O mestre sabe como cortar em dois pedaços, mas não sabe como cortar em um pedaço." Dogen também disse: "Se eu fosse Nansen, e os monges não pudessem achar nenhuma resposta, eu diria: "Não posso responder", e botava o gato no chão." A resposta de Joshu foi colocar suas sandálias na cabeça e sair. É importante compreender que não havia artifício nisto, como teria se, quando feita a mesma pergunta em nosso próprio treinamento, nos limitássemos a copiar Joshu. Ele agiu espontânea e intuitivamente. A respeito desta resposta, Mumon disse:

Quando a espada é desembainhada, até Nansen implora pela sua vida.

Vale a pena refletir sobre um aspecto desta estória que, às vezes, preocupa os recém chegados. Nansen literalmente matou o gato? Se assim foi, como pode fazê-lo se o Zen gira em tomo da compaixão? Esta é a beleza do koan. Imediatamente ele induz o leitor a fazer considerações sobre o bem e o mal, certo e errado e, acima de tudo, sobre os deveres e não deveres da suposta vida santa. Como se pode dizer a verdade e ainda ser compassivo? A verdade pode ferir. Pegando um gato como tema, o koan confronta o leitor com seu próprio sentimentalismo. Ninguém pode decidir matar um gatinho inofensivo e, depois, pretender ter compaixão. Entretanto, ao matar o gato, Nansen está mostrando como as vaidades às quais nos apegamos nos são caras como um gatinho. Ele está dizendo que, para experimentar o Daikensho, deve-se estar pronto para desistir de tudo.

"Matar o gato" coloca um problema sobre a verdade e a compaixão, que todo discípulo do Zen pode ter de enfrentar pelo menos uma vez na vida. O Zen é primeiro e último a respeito do despertar para a Iluminação. Nesse contexto, esta estória extravasa a compaixão de Nansen. Somente quando é usada para racionalizar motivos ocultos, ela pode ser aviltada. (Um exemplo interessante de como é possível tal aviltamento encontra-se na novela de Yukio Mishima, The Temple of the Golden Pavilion, na qual o personagem Kagiwara dá uma interpretação particularmente maliciosa a respeito deste koan.)

Joshu treinou com seu mestre durante quase quatro décadas. Estava perto de 56 anos de idade, quando Nansen morreu. Se ele seguiu o costume chinês de ficar no mosteiro vigiando a sepultura de seu mestre durante alguns anos, de via ter quase sessenta, quando saiu de Monte Nansen. E difícil refletir sobre a maturidade do despertar de Joshu após tanto tempo com seu mestre. Ele era muito jovem quando encontrou a "Mente cotidiana em seu caminho". Quanto restou do velho Joshu egocêntrico? Muitos anos depois, perguntaram a Joshu o que ele tinha aprendido com Nansen:

Um monge perguntou para Joshu:
"Ouvi dizer que você seguiu Nansen de perto. E verdade?"
Joshu disse:
"Chinshou produz um rabanete grande."

Katsuki Sekida disse:

Esta foi uma pergunta desagradável. O monge tinha um machado para afiar. Uma resposta inábil bem podia ter provocado algum problema... Chinshou era um distrito perto da cidade de Joshu, famoso por produzir grandes e bonitos rabanetes, O que Joshu quer dizer com esta resposta? Se ele fosse inglês, teria dito: "A Inglaterra produziu Shakespeare"; ou, se fosse americano: "A América produziu Lincoln". Em palavras simples, Joshu estava dizendo: "Tal pai, tal filho", mas não deu ao homem nada para tirar partido.

Mesmo depois de quarenta anos com Nansen, Joshu não começou logo a ensinar. Primeiro, continuou sua peregrinação, procurando outros mestres para, com eles, testar seu conhecimento Naquela época, nem todos os grandes mestres do Caminho viviam em mosteiros. Alguns eram eremitas das montanhas.

Joshu dirigiu-se ao chalé de um eremita e perguntou:
"O mestre está? O mestre está?"
O eremita ergueu seu punho. Joshu disse:
"A água é muito rasa para ancorar aqui", e foi-se embora.
Chegando ao chalé de um outro eremita, perguntou novamente:
"O mestre está? O mestre está?"
Este eremita também ergueu o punho.
Joshu disse:
"Livre para dar, livre para tomar, livre para matar, livre para salvar", e fez uma profunda reverência.

Mumon pergunta a respeito disto: "Ambos ergueram os punhos; por que um foi aceito e o outro rejeitado? Diga-me, qual é a dificuldade aqui?" Mumon diz que, se alguém pode resolver este problema, poderá compreender que: "A língua de Joshu não tem osso, uma hora ajuda uns, outra hora derruba-os, com perfeita liberdade." (Em outras palavras, ele compreendeu a essência do Zen completamente.) "Entretanto", continua Mumon, "os dois eremitas também viram através de Joshu. Se você diz que existe alguma coisa a escolher entre os dois eremitas, você não tem os olhos da compreensão. Se você diz que não existe escolha entre eles, você não tem os olhos da compreensão."

Há muitos motivos para erguer o punho contra alguém. Por exemplo, o seguinte pode ser uma analogia para o primeiro encontro de Joshu. Certa vez havia um grupo de Budistas ingleses que foram visitar uma cidade na costa da Inglaterra, para tratar de assuntos particulares. Enquanto estavam lá, resolveram fazer uma visita de surpresa a um centro de meditação local. Não conseguindo qualquer resposta, ao tocarem a campainha da porta da frente, já estavam quase indo embora quando, olhando pela janela iluminada de um corredor, um deles viu os pés de um dos residentes do centro que estava caminhando sobre o carpete da sala, no porão. Logo que viu, bateu na janela do porão para chamar atenção. E então, ouviu-se a pessoa que estava lá dentro gritar: "Cai foral Estou tentando meditar." O grupo afastou-se.

Entretanto, ao perguntar: "O mestre está?" Joshu estava perguntando sobre a mente, no sentido da natureza essencial: "A mente de Buda está em casa?" Os eremitas devem ter achado que era uma pergunta absurda, vista de qualquer ângulo. Não é de surpreender que tenham levantado os punhos. Faz parte da beleza dos conhecimentos de Joshu ter feito tais perguntas e receber a resposta tão livremente. Para o grupo que estava do lado de fora do centro de meditação, a hostilidade vinda de dentro foi muito engraçada, mas também um tanto ofensiva.

Após vinte anos vagando, Joshu fundou um mosteiro de treinamento na cidade de Ch"ao Ch"ou, tornando-se conhecido para a posteridade. Tinha quase 84 anos de idade.

Como sucessor do Dharma do grande Nansen, sua fama espalhou-se rapidamente, atraindo monges para ele. E como mestre que Joshu é mais lembrado. Embora leal a Nansen, desenvolveu um estilo sutil todo próprio.

Uma vez Leonardo da Vinci disse: "O verdadeiro discípulo supera o mestre." Pode-se certamente dizer a mesma coisa de Joshu. Apesar de já mencionado no primeiro capítulo, vale a pena repetir aqui:

Um monge, certa vez, veio até Joshu na hora do café da manhã e disse: "Acabei de entrar neste mosteiro. Por favor, ensine-me."
"Você já tomou seu mingau de arroz?", perguntou Joshu.
"Já, sim", replicou o monge.
"Então é melhor lavar sua tigela", disse Joshu.

Joshu estava dizendo para o monge que o sabor do Zen e o sabor do mingau de arroz é único e o mesmo. Não é que exista qualquer coisa de especial no mingau de arroz; simplesmente não existe nada de especial no Zen. O Caminho do Zen é o caminho da vida cotidiana. Entretanto, do ponto de vista do monge (e, de fato, Joshu era um jovem), isto é duro de aceitar. E tudo muito instigante para procurar um significado escondido, esotérico. No entanto, Joshu não estava escondendo nada do monge. Mumon disse: "Quando abre a boca, Joshu mostra até a vesícula biliar. Exibe o coração e o fígado." Como antes, no caso do próprio Joshu, Mumon estava duvidando da compreensão do monge: "Muito me admiro se esse monge realmente escutou a verdade. Espero que ele não confunda a sineta com uma jarra." A sineta, usada na sala de meditação Zen, tem o formato de uma jarra ou tigela, e esses objetos podem ser compreensivelmente confundidos um com o outro. Mumon imaginava se o monge tinha realmente visto a verdade pelo que ela é.

Embora o monge tivesse acabado de entrar no mosteiro de Joshu, não era necessariamente um principiante no Zen. Podia ser alguém que tivesse treinado durante anos no Zen ou em qualquer outra tradição, mas ainda tinha de ver a mente de Buda como sua vida cotidiana. Pode-se imaginar quão insatisfeito e desiludido deve ter se sentido, principalmente se pensou ter abandonado tudo para encontrar a verdade. Sem dúvida, seu pedido de ensinamento foi por absoluto fervor, do contrário não teria ousado ser tão direto ao ponto de interromper a rotina monástica na hora do café da manhã. Entretanto, por trás de seu pedido, havia uma pressuposição de que lhe faltava uma compreensão especial.

A resposta de Joshu foi até o âmago da sua dificuldade, e confrontou-o com a questão: O que você está esperando? Mas Joshu fez isto com muita habilidade, sugerindo ao monge para voltar imediatamente para a rotina monástica, sua vida cotidiana normal.

Evidentemente o monge não viu de imediato o que Joshu estava pretendendo. Como a maioria de nós, ele não podia abandonar seus conceitos tão facilmente, e foi isto que Mumon percebeu. Além do que, perante o mestre Zen, o monge provavelmente sentiu-se nervoso e pouco à vontade, enquanto queria, ao mesmo tempo, dar uma boa impressão. Em tal situação, as pessoas costumam se sentir lentas e sem resposta. Isto os faz voltar para os padrões de resposta comportamentais que lhe são familiares, e para o mestre é útil para fazer uma avaliação sobre a compreensão real do discípulo. A resposta do monge — "Sim, lavei." — é direta, mas não sugere que ele tenha visto qualquer conexão entre a pergunta de Joshu e seu pedido de ensinamento. Assim sendo, Joshu colocou a questão novamente: "Então, é melhor você lavar sua tigela." Talvez o monge ainda estivesse esperando mais, procurando o significado escondido — confundindo a sineta com a jarra. A respeito deste koan, Mumon perguntou:

Você não sabe que a chama é fogo?
Seu arroz cozinhou demais

Da mesma maneira que o monge teve de botar sua mão no fogo muitas vezes, no treinamento Zen cometem-se os mesmos erros várias vezes. Mumon sabia disto, entretanto, lançou um desafio sem fronteiras: a realização da Iluminação e a vida cotidiana são uma coisa só, mas quem está pronto para sentir o seu gosto?

Outro monge de Joshu perguntou-lhe:
Qual é o significado da vinda de Bodhidharma para a China?
(Esta pergunta era muito comum naquela época. Ela significa: O que é a essência do Zen?).
Joshu disse:
A árvore do carvalho está no jardim.

Já vimos como Vimalakirti e Bodhidharma responderam à mesma pergunta. A beleza da resposta de Joshu é que ela é muito natural. Exceto a vida como ela é, Joshu nada tinha para oferecer a este monge. Naquele momento, a essência do Zen era apenas o carvalho que ficava no jardim do mosteiro. Sem dúvida havia muitas árvores belas nos jardins do mosteiro, e Joshu deve ter sentado inúmeras vezes, contemplando seu esplendor, apreciando cada galho e ramo, mas esta não era a questão aqui. Joshu disse que a essência do Budismo é o carvalho no jardim pela mesma razão que o mestre Zen Ummon disse que Buda é um pedaço de "excremento seco": porque é verdade. O Zenji Dogen fez ver que:

Mesmo se até agora você pensou que Buda tem excelentes qualidades como Shakyamuni ou Amitabha, irradia um halo, tem a virtude de pregar o Dharma e beneficiar os seres vivos, deve acreditar no seu mestre, se ele disser que Buda não é nada mais que um sapo ou uma minhoca. Jogue fora suas idéias do passado. Entretanto, se você procurar excelentes qualidades, um halo ou outras virtudes de Buda em um sapo ou numa minhoca, ainda não reformulou sua mente discriminadora. Entenda apenas que o que você vê agora é Buda.

Mumon tinha também avisado para não confundir a sineta com a jarra: o núcleo do problema é a distinção fundamental que todos nós temos a tendência de fazer entre o "espiritual", de um lado, e o "mundano", do outro. Existe uma imagem muito sedutora e romântica, presa aos chamados caminhos espirituais. A noção de "cósmico" ou "super" consciência é emocionante: promete uma fuga daquilo que, do contrário, parece uma triste e monótona vida. Infelizmente, enquanto pensarmos dessa maneira, nossa idéia de consciência superior continuará sendo nada mais que isso. Somente confrontando a vida como ela é, destemidamente, em toda a sua monotonia, miséria ou o que quer que seja, pode-se chegar a compreender, nas palavras do Roshi Yasutani, que: "A existência é um todo inseparável, cada um de nós abraçando o cosmos na sua totalidade."

Para alguém que esteja determinado a fugir do caminho cotidiano, esta mensagem é um pouco decepcionante; entretanto, é para estes que Joshu estava falando. Infelizmente, como o Zenji Dogen disse, no século XIII:

Os discípulos hoje, entretanto, ainda se apegam às suas próprias mentes discriminadoras. Seu pensamento baseia-se nos seus pontos de vista de que Buda deve ser "tal e tal". Se... (o que o mestre diz para eles) .. vai contra suas idéias, dizem que Buda não pode ser daquela maneira. Tomando tal atitude, vagando aqui e ali, em ilusão, procurando o que estivesse de acordo com seus próprios preconceitos, poucos deles chegaram a fazer algum progresso, de qualquer espécie, no Caminho de Buda.

Os mestres modernos do Zen atual lhe dirão que não é diferente hoje em dia!

Provavelmente, o leitor, agora, está formando uma idéia a respeito da importância do mestre no treinamento Zen. Poucas pessoas se esforçarão para ultrapassar o ponto até onde sentem ser suficiente chegar e, somente através de treinamento sob a orientação de um mestre, se sentirão compelidas a dar o salto para além da mente discriminadora e, na realidade, tomarem-se verdadeiros seguidores realizados do caminho do Zen. O Sensei Genpo Merzel viveu completamente só e praticou meditação durante um ano, antes de começar a treinar sob a orientação de seu mestre, o Roshi Taizan Maezumi. Ele disse que, para ele, uma das coisas mais difíceis de chegar a um acordo era quanto à maneira de ser do Roshi Maezumi: "Eu tinha algumas idéias sobre como um mestre iluminado deveria comportar-se... e, não sei por que, ele simplesmente se recusava a ser assim. De fato, parecia que Se recusava de propósito" Nossas expectativas a respeito do mestre terão reflexos sobre a nossa expectativa sobre a Iluminação.

Um monge disse para Joshu:

"A ponte de pedra de Joshu está muito famosa, mas, vindo aqui, eu vejo um conjunto de pedras soltas!"

(Embora famosa em toda a China, a ponte de pedra na cidade de Ch"ao Ch"ou era apenas um conjunto de pedras soltas. Porém, o que o monge estava insinuando era que: "O mestre Zen Joshu é famoso, mas, vindo aqui para conhecê-lo, vejo apenas um monge de aparência insignificante.")

Joshu replicou:

"Você vê apenas pedras soltas. Não vê a ponte de pedra."
"O que é ponte de pedra?", perguntou o monge.
"Ela deixa que os burros e os cavalos atravessem de um lado para o outro", disse Joshu.

Aparentemente, Joshu não parecia ser um grande mestre e o monge não estava impressionado. Ele queria saber quem era aquele velho e o que ele tinha para ensinar. Parecia que Joshu não tinha feito nenhuma tentativa para mostrar qualquer conhecimento (do Zen); sua resposta era quase banal. Ele mostrou com que facilidade poderia trazer grandes expectativas de volta para a terra.

Em outra ocasião, um monge entrou na sala de Joshu para um "Sanzen" (uma entrevista particular) e encontrou-o sentado com a cabeça coberta pelo manto. Surpreso, o monge retirou-se da sala.

Talvez o monge esperasse ver o mestre sentado, com as costas eretas, alerta e cheio de energia, os olhos fitando atentamente a porta, pronto para trespassar o monge com o olhar. Em vez disso, Joshu parecia meio adormecido e, provavelmente, tremendo de frio, enquanto se encolhia debaixo do hábito. Vendo aquele velho encurvado, inclinado perante ele, é muito provável que o monge tenha achado melhor não perturbar o pobre velhinho.

"Irmão!", disse Joshu, "Não diga que não recebi seu sanzen."

O mestre Zen, Nyogen Senzaki (1876-1958), disse a respeito desse encontro:

Provavelmente, era um fim de tarde fria, e Chao-chou cobriu a cabeça com seu manto pesado de remendos e costuras. Uma vez que o monge não tinha o direito de entrar na sala do mestre para outra coisa que não fosse para o Zen, por que hesitou e retirou-se? Fugai disse: "O monge era um camarada burro, pensando que o mestre dormia distraído como qualquer outra pessoa. Mas, mesmo dormindo, o tigre tem uma vibração muito forte em torno de si. O monge era como uma pessoa que passa por uma mina de diamantes com as mãos vazias. Veja a inteligência e amabilidade de Chao-chou quando diz: "Irmão, não diga que não recebi seu sanzen." O monge deveria ter feito uma reverência e recebido o Dharma naquele momento. E uma pena que fosse cego e surdo."

A principal função do mestre é acordar o discípulo para a realização. Talvez o exemplo mais famoso de toda a Idade de Ouro do Zen chinês esteja contido nesta última estória da vida de Joshu.

Um monge perguntou para Joshu:
"O cachorro tem a natureza de Buda?"
Joshu respondeu:
"Mu"

Dentre as muitas centenas de koans procedentes de fontes chinesas e japonesas, talvez somente o "Som de uma única mão batendo palmas", de Hakuin, seja mais conhecido do que este, Mumon chamou o Mu de Joshu de "Porta sem Porta" do Zen: "Se você passar por ela, não só verá Joshu face a face, mas irá de mãos dadas com os sucessivos patriarcas, emaranhando as suas sobrancelhas com as deles, vendo com os mesmos olhos, ouvindo com os mesmos ouvidos. Não é uma perspectiva deliciosa? Você não gostaria de ultrapassar essa barreira?"

Gerações de estagiários do Zen dedicam-se a trabalhar no Mu de Joshu. Em geral, é o primeiro koan que o discípulo recebe, e solucioná-lo, para convencer o mestre, tem um efeito fundamental sobre a atitude do discípulo perante a vida daí em diante. Assim sendo, de que trata este koan? Katsuki Sekida destacou quatro tipos de situações nas quais qualquer pergunta direta sobre o Zen pode ser feita:

1. Um principiante pergunta, num tom muito sério, qual é o princípio fundamental do Budismo.
2. Um discípulo alcançou uma compreensão avançada e demonstra-a fazendo uma pergunta ao seu mestre.
3. "O combate do Dharma": quando um praticante do Zen questiona outro para testar seu conhecimento.
4. Como um meio de troca íntima entre o mestre e um discípulo mais antigo.

Tendo em vista a finalidade deste livro, vimos, em geral, adotando a perspectiva do principiante quando faz uma séria pergunta a respeito dos princípios fundamentais. No caso do Mu de Joshu, é importante imaginar o monge como a si mesmo. No Sutra Atvatamsaka, lemos que, ao realizar a Iluminação, Buda disse: "Todas as coisas vivas são Budas, dotadas de sabedoria e virtude..." Ao perguntar se o cachorro tem a natureza de Buda, o monge não estava procurando meramente satisfazer sua curiosidade sobre um determinado ponto da doutrina; sua pergunta realmente era: Se, como você diz, e como os Sutras dizem, todos os seres têm a natureza de Buda, como não posso vê-la? Sua dúvida era a mesma de alguém que estava ouvindo falar da natureza de Buda pela primeira vez. Vale a pena perguntar a si próprio como Joshu deveria tê-lo ajudado. Por exemplo, o monge teria sido um tanto mais sábio se Joshu tivesse dito "Sim"? Joshu não estava preocupado em simplesmente concordar ou discordar da teoria. Ele queria que o monge visse a verdade por ele mesmo.

"Mu" é, na realidade, a interpretação japonesa da resposta de Joshu. Em chinês, seu estado de espírito aparece mais claramente: "Wu!" significa "Não" ou "Nem", mas Joshu estava perguntando para o monge onde a natureza de Buda tem de ser encontrada no cachorro, se não na grande perfeição de sua cachorrice! O que o monge estava procurando — e não podia encontrar — era sua própria percepção da natureza de Buda. Ele não podia encontrá-la porque não existe nada capaz de corresponder a ela. A beleza da resposta de Joshu era poder ilustrar a natureza de Buda de um cachorro e penetrar no pensamento ilusório do monge com aquela única palavra. Mumon disse:

O cachorro, a natureza de Buda;
O pronunciamento, perfeito e acabado.
Antes de você dizer ele tem ou não tem,
Você cai morto imediatamente.

De acordo com a tradição, Joshu continuou a ensinar até morrer com a idade de 119 anos. Nyogen Senzaki disse a respeito dele: "O Zen dele era maduro e suave como um vinho envelhecido... Ele não usava nem o "bastão" nem a voz áspera de outros mestres, mas as poucas palavras que proferia transbordavam junto com o Zen."




Chao-Chou (778-897) e Nan-Chuan (748-834)3

Por Jean-Michel Varenne

Esses dois mestres seguiram, à sua maneira, o ensinamento de Lin-Tsi. Entretanto, a doutrina começava a enfraquecer. ameaçada de corrupção pelo discurso didático e a exegese dos diálogos.

Um dia, Chao-Chou fechou-se na cozinha do monastério e deliberadamente, deixou que se enchesse de fumaça antes de clamar por socorro em altos brados. Os monges acudiram-no, mas ele se recusou a abrir antes que lhe fornecessem "a palavra justa".

Nan-Chuan, silenciosamente, passou-lhe a chave pela janela. Chao-Chou, aparentemente satisfeito, abriu e saiu sem uma palavra.

Nan-Chuan poderia abrir a porta por fora; contudo, essa atitude racional não corresponde à verdade do Zen. Só se pode abrir de dentro, por si mesmo... desde que, é claro, um mestre forneça a chave!

A anedota ilustra a transmissão do espírito, que tanto tem intrigado os comentadores.

Chao-Chou gostava de dizer: "Nada tenho por dentro, nada procuro fora".
A um novato que gabava ter chegado de mãos vazias, exigiu: "Então põe tudo no chão".
Estupidamente, o aluno persistiu no erro: "Pôr o quê, se não trago nada?"
E Chao-Chu: "Está bem, então continua a carregá-lo".

O exemplo mostra a maiêutica herdada de Lin-Tsi. O visitante (aluno) prega uma peça ao anfitrião (mestre), referindo-se a um ponto do Tch’an (chegar de mãos vazias:

estar livre do pensamento). Mas esse discípulo, muito limitado, contenta-se em repetir uma fórmula. Ele está, na verdade, possuído por idéias feitas. O mestre atira-lhe a isca pedindo que deposite esse fardo (a presunção errônea da verdade) no chão. O aluno não percebe o sentido da apóstrofe e persiste no lugar-comum, no clichê zen. Com bonomia, o mestre tenta pela última vez apontar-lhe o caMinho...

O frescor do Tch ‘an impregnado pela língua vernacular torpedeia a suficiência de certos adeptos.

Chao-Chou respondeu a um monge que o interrogava sobre "o princípio mais visceralmente importante do Zen": "Agora preciso ir urinar. Pensa bem, até uma insignificância como essa devo fazer sozinho!"

Isso lembra o célebre dito de Lin-Tsi: ‘‘Adeptos! Não há trabalho no Zen. É preciso apenas manter-se na comum das coisas e, sem cuidados, cagar e mijar, vestir-se e comer!’’

Infelizmente, essa leveza foi se perdendo com o tempo, atolando-se na contemplação própria. O espírito do Tch’an-não se perdeu, não foi dilapidado. O ‘capital" espiritual frutificou sob os Song e mesmo sob certos mestres japoneses, mas o jorro inicial foi estancado.

Privado do impulso inicial, o Tch’an se viu condenado irremediavelmente à repetição enfadonha.

É assim que o emprego do koan veio a se tornar um artificio mais ou menos cômodo, um compromisso, às vezes, eficaz, porém fadado a mascarar uma perda de autenticidade.

Chao-Chou constatava já esse apoucamento do Tch’an quando escreveu:

‘‘Há 90 anos, vi mais de oitenta mestres iluminados na linhagem de Matsu, todos dotados de espírito criador. Nos últimos tempos, a busca do Tch´an foi aos poucos se banalizando e se ramificando.
Cada vez mais distanciado do espírito original que animava homens de suprema sabedoria, o processo de degenerescência prosseguirá de geração em geração...’


  1. Extraído de "Os três pilares do Zen" de Philip Kapleau
  2. Extraído de "Elementos do Zen" de David Scott e Tony Doubleday
  3. Extraído de "O Zen" de Jean-Michel Varenne
  4. Extraído de "Ensinos do Mestre Zen Anzan Roshi"(texto compilado pelo Ven. Jinmyo Fleming ino e traduzido ao Português por Claudio Miklos.



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