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O canto Ela podia imaginar os dois peixinhos, um cor-de-rosa e o outro prateado, fugindo, nadando e felizes. Seus lábios se entreabriram, mas mal o sorriso surgia, desaparecia. Sentada aí, numa pedra, perto do riacho, ela se lembrava daquilo que tinha ouvido um dia antes, no mercado. Tinha ouvido crianças chorarem e adultos gritarem. Se bem que não tivesse podido ver nada, ela estava agora invadida por figuras de crianças como ela, mas com as mãos cortadas, pernas quebradas, ou rostos esmagados, e adultos mortos, estendidos na lama, com as entranhas de fora. Ela via o quanto o mercado tinha sido devastado no espaço de um minuto, com enormes chamas saindo das casas e elevando-se para o céu. Pensava na mãe. Pensava na mãe que estava sendo levada, pulsos amarrados. Sentado ao seu lado, sabia que Thach Lang devia estar pensando nas mesmas coisas do que ela. Ela perguntou como poderiam algum dia rever a mãe se ficassem sentados à beira do riacho. Talvez a mãe morresse como o pai, como o passarinho que tinha visto, com a cabeça sobre o peito, suas patinhas cruzadas como dois braços humanos, o passarinho morto numa moita espinhosa na floresta. T’ô sentiu algo muito pesado apertando o seu peito. Mal podia respirar. Queria soluçar, mas não conseguia. A pedra sobre a qual estava sentada ardia como fogo. Ela sufocava como se houvesse ficado tempo demais debaixo d’água. Foi então que ouviu seu amigo começar a cantar. Era uma voz estranha e milagrosa, uma extraordinária música. Nunca havia ouvido nada tão solene nem tão belo. Começava igual à fumacinha que subia do telhado de sapé de sua casa quando a mãe cozinhava o arroz para o jantar. Mas essa fumacinha estendia-se horizontalmente, suspensa, imóvel no ar. Em seguida, crescia de repente como as asas de um gigantesco e fabuloso pássaro voando no espaço infinito. Depois o pássaro gigante bateu asas e, muito alto no céu, o vento que acabava de surgir fez sinal a todas as nuvens para se agruparem. A seguir, nuvens luminosas cor de fogo se ajuntaram em formações rítmicas. T’ô ouviu o assobio de dezenas de milhares de pinheiros que se balançavam ao vento. Ouviu também o longínquo murmúrio de um leve chuvisco que, correndo atrás da primavera, havia caído sobre os salgueiros em volta do lago. Ouviu também uma multidão de passinhos: criancinhas vestidas com roupas coloridas de vários tipos, seguravam-se pela mão, pulavam, brincavam e dançavam na relva da colina. Havia desaparecido a sensação de opressão em seu peito. Podia novamente respirar tranqüila. A pedra na qual estava sentada tinha-se tornado uma nuvem. E, de repente, soube que algo extraordinário havia ocorrido. Ouviu o rumor de batidas de asas no céu, como um oceano, seguido de gritos de pássaros, dezenas de milhares de pássaros gritando todos ao mesmo tempo. O que ela ouviu não foi mais o canto de Thach Lang. Eram milhares e milhares de pássaros que voavam batendo as asas e gritando. Reparou que todos os pássaros da floresta voavam muito baixo, escurecendo o céu acima do lugar onde estavam sentados. Subitamente ouviu uma canção familiar. Tinha certeza de que este pássaro voava muito baixo, exatamente acima de sua cabeça. Depois ouviu uma curta melodia. Era como uma fileira esticada de pérolas atravessando o céu. T’ô reconheceu o som: era o passarinho que tinha respondido à música de sua flauta. Levou rapidamente a flauta de bambu aos lábios. O que tocou foi tão triste quanto as tristes sombras roxas do crepúsculo. Agora, todos os passarinhos escutavam, embora continuassem a girar em espiral. T’ô contou-lhes toda a sua tristeza através do som da flauta. Pediu aos passarinhos para voarem a todos os pontos do país a fim de procurarem a Má. A música, na flauta de bambu, tornou-se humana: chorava, rogava, implorava. Subia aos céus e depois mergulhava sobre a terra, queixosa e suplicante. Agora os pássaros tinham se dispersado em todas as direções. Só restava no momento um passarinho amarelo, com longa cauda e algumas plumas como flores sobre a cabeça. Após ter cantado outra canção, esvoaçou rapidamente antes de lançar-se também em direção à floresta. T’ô e Thach Lang permaneceram um momento em silêncio. Em seguida, T’ô perguntou: — Por favor, quem lhe ensinou a cantar assim? — Realmente, ninguém. Vivi muito tempo no alto da montanha. Eu escutava nuvens, vento, chuva, neblina e todos os outros tipos de sons. E, um dia, eu soube cantar. Mas canto somente quando as nuvens estão baixas e pesadas; quando céu e terra estão inquietos, tristes e irados; quando nuvens negras abafam a terra; e quando o céu inteiro parece estar preste a explodir. Posso cantar e dissipar uma tempestade. E você? Quem lhe ensinou a tocar flauta tão maravilhosa e tristemente? Será que foi a Má? — Não, não foi a Má. Quando meu pai estava vivo, ensinou-me a tocar flauta, mas apenas cantos folclóricos, músicas do campo. Como você, escutei as vozes das árvores, do vento, dos riachos e passarinhos. Mas seu canto é mais belo do que minha música! Esse seu canto me confortou, me encorajou, deu-me vida novamente. Até mesmo os passarinhos da floresta desceram do céu para ouvir você. Foi incrível! Thach Lang não respondeu logo. Em seguida, perguntou: — Você não pediu aos passarinhos para ajudar-nos a encontrar a Má? Estou certo de que eles ouviram você e que farão o que você pediu. Mas como poderiam encontrar a Má se nunca a tinham visto? Devemos ir nós mesmos, você e eu, procurá-la. |