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Paz
Texto de Dainin Katagiri,
extraído do livro
"Retornando ao silêncio"

Há uma bonita história sobre o Buda Xáquia-Múni que não consigo esquecer. Lembro-me dela sempre que olho para o mundo humano e percebo a necessidade de encontrar um caminho para se viver em paz e harmonia com todos os seres sencientes.

Houve uma época, na índia, há muito tempo, quando as relações diplomáticas iam as mil maravilhas entre duas regiões vizinhas, Magadha e Kapilavastu, onde viviam o Buda Xáquia-Múni e seu povo, o clã dos xáquias. Naqueles dias, era costume dos membros da nobreza casar-se apenas com pessoas de sua estirpe, e o rei de Magadha solicitou ao rei de Kapilavastu que enviasse uma princesa a fim de casá-la com seu filho, O rei de Kapilavastu enviou uma mulher a Magadha, como havia prometido, mas em vez de mandar uma mulher da nobreza, mandou uma criada. Sem saber disso, o rei de Magadha foi em frente e celebrou o casamento. Mais tarde, quando o príncipe sucedeu ao pai e tornou-se rei, uma pessoa contou-lhe a respeito desse escândalo e ele ficou furioso. Queria atacar Kapilavastu a qualquer custo.

Quando os xáquias perceberam que o rei de Magadha estava planejando atacá-los, pediu ao Buda Xáquia-Múni que o detivesse e ele aceitou a tarefa. Embora o Buda fosse um especialista no uso de armas e fosse bem treinado nas artes marciais, ele não lutou. Em vez disso, tentou negociar, de muitas maneiras, com o rei. Contudo, havia uma pessoa muito chegada ao rei que o incentivava, com persistência, a lutar e a destruir o clã dos xáquias. Portanto, o rei não conseguia dar ouvidos ao Buda; o interior de sua mente tornava-se cada vez mais inflamado e, por fim, ele resolveu agir.

O Buda Xáquia-Múni sabia que o rei e seu exercito estavam a caminho; então, sentou-se em zazen sob uma árvore ressequida, à margem da estrada que conduzia a Kapilavastu. Quando o rei passou com seu exército ao longo dessa estrada, avistou o Buda. Como fazia muito calor, ele não entendia por que o Buda estava sentado sob uma árvore ressequida; geralmente as pessoas se sentam sob frondosas árvores verdes. Então, o rei perguntou: Por que você está sentado sob uma árvore ressequida? Calmamente, o Buda disse ao rei: - "Sinto-me refrescado, mesmo sob esta árvore, porque ela está crescendo perto de minha terra natal". Isso realmente tocou o coração do rei e ele ficou de tal modo impressionado pela mensagem da ação do Buda que não conseguiu prosseguir em sua marcha. Em vez de atacar a cidade, retornou ao seu território. Mas o assistente do rei ainda continuou a encorajá-lo a guerrear e, finalmente, ele assim o fez. Dessa vez, infelizmente, o Buda Xáquia-Múni não teve tempo de fazer algo. Sem dizer uma palavra, ele apenas permaneceu imóvel e assistiu à destruição de sua cidade e de seu povo.

Há dois pontos importantes nessa história. O primeiro é que a verdadeira paz não é objeto de discussão. É por isso que o Buda Xáquia-Múni sentou-se sob a árvore ressequida, compreendendo a paz real, movendo-se na direção dela, unindo-se a ela, além da idéia de paz ou de não-paz. Quando olhamos para o mundo humano, não podemos acreditar que haja paz. Quando discutimos a paz, o mundo aparece como "não-paz". Contudo, originalmente, o mundo é verdadeira paz; as árvores, os pássaros, a primavera, o inverno, o outono, e nós, sentados, já somos paz. Somos paz antes de discutirmos se ela existe ou não. Entretanto, se alguém disser: "Não há paz", e, em seguida, discutirmos esse assunto com ele, estaremos, por fim, lutando pela idéia da própria paz. Isso não é a verdadeira paz.

Trabalhar a favor da paz mundial não é apenas ocupar-se com as armas nucleares. Quem criou as armas nucleares? Nós as criamos. Já temos o embrião delas em cada mente individual. Lembre-se disso. É muito importante. Quando chegou a hora e as condições se tornaram adequadas, as armas nucleares foram criadas. Elas não foram fabricadas pelos políticos ou pelos cientistas. Foram criadas pela vida humana individual. Deveríamos pensar nisso. O embrião das armas nucleares e de tudo aquilo que os seres humanos criam já está enraizado na vida humana.

De que modo então podemos alcançar a verdadeira paz? De acordo com o Buda Xáquia-Múni, a paz verdadeira não está no fato de haver ou não um modo de fazer o rei desistir de atacar. O Buda sabia como usar as armas de sua época, mas não as usou. Ele apenas sentou-se. Sentar-se é paz; a paz de Buda. Ele não disse nada, mas seu modo de agir era a paz perfeita, a paz real que ele podia criar a cada momento. Embora o Buda nada dissesse, o rei ficou muito impressionado porque o Buda Xáquia-Múni revelou-se, ele próprio, como a verdadeira paz, acima de qualquer discussão a propósito da paz.

O segundo ponto importante da história é que, por mais que enfatizemos a necessidade da verdadeira paz para todos os seres, ainda há muitas pessoas que não aceitam nossa paz. Se elas não aceitam nossa paz, onde ela pode ser encontrada? A paz tem de ser encontrada em nós. Temos de assimilar, temos de digerir a verdadeira paz em nossos corações, por nos mesmos. Isso não é nada fácil. É por isso que o Buda Xáquia-Múni limitou-se a permanecer imóvel e assistiu à destruição de sua terra natal. Ninguém aceitou a paz dele; assim, finalmente, a verdadeira paz retornou ao próprio Buda. Não há outro modo. É por isso que ele saboreou, mastigou e digeriu a paz verdadeira dentro de sua própria vida.

Quanto mais Buda assimilava a paz em seu coração, mais ele compreendia quão teimosos e ignorantes são os seres humanos. Os seres humanos são muito ignorantes. A essência da ignorância está na falta de uma comunicação profunda com a natureza ou com o universo. A ignorância consiste em separar, isolar, criar discriminação e diferenças, de modo que, finalmente, não podemos nos comunicar como um todo harmonioso. Essas diferenças que criamos aparecem como luta, raiva, ódio e guerra.

Estamos sempre tentando dar um jeito no aspecto visível, discriminador do mundo; nele há inúmeras brechas através das quais as idéias se escoam — a idéia de armas nucleares, a idéia de paz ou não-paz, a idéia de armamento ou desarmamento. Mas se queremos "dar um jeito" nessa característica do mundo, se queremos fazer um movimento pela paz, é preciso lembrar que armamento e desarmamento são, em um certo sentido, a mesma coisa; eles são um principio, ou uma doutrina, criada pela ignorância humana. Se nos apegamos à idéia de desarmamento, criamos um problema. Por outro lado, se nos apegamos à idéia de armamento, criamos mais problemas ainda. Considere essas duas facções: qual é a melhor? Temporariamente, usamos o desarmamento como uma idéia pela qual podemos nos aproximar da paz real. Mas esse desarmamento é apenas uma idéia. Não podemos nos agarrar a ela enquanto for oposta ao armamento, pois, se o fizermos, acabaremos lutando sob a bela bandeira do desarmamento — estaremos lutando pela idéia da paz. Que espécie de paz é essa. Ela é apenas uma idéia. Assim, por que não vemos a idéia da paz apenas como uma idéia que pode ser usada, temporariamente, a fim de introduzir a paz real? Não há outro modo de se abordar a paz.

O acesso à paz real requer um compromisso muito forte, duradouro e espiritual, um juramento. Faça apenas um juramento. Assuma um compromisso com a verdadeira paz, como Buda, que se sentou sob a árvore ressequida. Mas lembre-se, ainda que assumamos um compromisso com a verdadeira paz, haverá muitas pessoas que não aceitarão nossos métodos. Assim, onde, afinal, a verdadeira paz pode ser encontrada? Em nós. Devemos permanecer em paz. Isso é muito difícil, mas não podemos parar. Buda precisou continuar sentado sob a árvore ressequida. Esse é o nosso sentar.

Quanto mais nos sentarmos desse modo, mais compreenderemos a força da ignorância humana. Não há nenhum motivo para criarmos essa terrível situação, mas nós o fazemos constantemente. Quando assumimos um compromisso espiritual com a verdadeira paz, dia após dia, precisamos ir além, quer as pessoas aceitem ou não a paz. Não se trata de uma questão política, mas sim de um compromisso espiritual com a paz. Temos de saboreá-la e digeri-la, constantemente. Em seguida, temos de vivê-la. Isso é muito difícil porque, quanto mais a saboreamos e a assimilamos, mais compreendemos a ignorância humana. Porém, quanto mais compreendermos a ignorância humana, mais seremos incapazes de parar de ensinar a verdadeira paz, e de vivê-la.





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