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Retornando ao silêncioRETORNANDO AO SILÊNCIO
A Prática Zen na Vida Diária

de Dainin Katagiri
Editora Pensamento

Prefácio

Roshi Dainin Katagiri "retorna ao silêncio", e fala. Ele é um dos grandes mestres zen da América, e ousa dar início à sua admirável obra, "Quando refletimos..."

Roshi Katagiri é meu amigo. Ele gosta de mim e eu dele. Olhamos um para o outro e sentimo-nos tranqüilos cada um observando quanto o outro está fatigado, compartilhando determinação. Devemos sempre tentar "aceitar todos os seres sencientes como o conteúdo de nossa vida".

Quando estou com Katagiri, sinto-me como costumava me sentir quando estava com meu falecido pai do Dharma, o ilustre Geshe Wangyal (a quem menciono com a finalidade de nada ocultar a bem da plenitude), e com alguns amigos lamas. Alegre e contente, mas um pouco impaciente, como se muito mais pessoas estivessem conosco.

Quando estou com sua santidade o Dalai-lama, sinto-me como se, no mínimo, os seis milhões de tibetanos estivessem conosco no aposento e, ao redor deles, uma multidão inconcebível de seres sensíveis. Quando estou com Roshi Katagiri, sinto as centenas de milhões de japoneses — não só do Japão atual, mas do Japão equivalente a um milênio de desenvolvimento. As pessoas da folha verde do basho que flutua, as pessoas delicadas que lotam a larga folha verde sob o sol reluzente do espelho da forma de Vairocana.

E há muitas pessoas que se acham entrelaçadas a todos nós, sobretudo as das nevosas terras setentrionais — Yakut, Buryat, Inuit, Tlingit, até as terrosas Winnebago e Ojibwa das florestas de Minnesota de Katagiri. Todos os seres sencientes. Todos os seres sensíveis. As sensações são inconcebíveis.

Sinto-me honrado por introduzir o profundo e admirável discurso shakuhachi de Katagiri Sua leitura tomou-me um bom tempo. Ainda não li cada palavra. Este não é um livro para se "terminar". É um livro para se viver. Muitos livros são lidos em um intervalo da vida, quando se consegue alguma folga, quando se escapa e se suspende tudo. Este livro é desse tipo; quando você o lê, você é jogado para fora dele, é lançado à vida. Leia-o um pouco e mantenha-o perto de si mesmo. Deixe que ele seja um amigo. Permita que ele o ajude a manter as trivialidades em perspectiva.

Já em suas primeiras linhas ele o põe contra a parede. Com toda a franqueza, Roshi Katagiri nos diz: "A oportunidade de experimentar o silêncio real ocorre quando nos sentimos encurralados sem que possamos nos movimentar um único centímetro". E, sabiamente, ele adverte que basta transcender o desejo para transformar o desespero do ser encurralado em silêncio real, o silêncio de Buda, a "manifestação total de toda a nossa personalidade".

Que livro! Que grande dádiva! Aponta-nos a saída. Mostra-nos que estar totalmente aprisionado é, na verdade, a libertação total do ser em relação a todos os seres. Roshi Katagiri pode fazer isso porque fala sem arredar pé desse recolhimento, fala a partir da totalidade desse silêncio. Ele e o recolhimento, suas palavras e o silêncio estão entre as dimensões do livro. Sua capa se abre e sua incompreensibilidade penetra em nossos olhos, em nosso cérebro e em nosso coração; e nossa mente e o livro e Roshi Katagiri e o clamor infinito e os Budas risonhos unem-se, todos, nas dimensões da bem-aventurança.

Naturalmente, nenhum detalhe específico é obliterado. A dimensão da bem-aventurança é claridade não atenuada e sensibilidade apurada. Ficamos fascinados quando compartilhamos essa dimensão com um piloto americano da grande guerra do Pacifico, que se fere ao saltar de pára-quedas no Japão. Tornamo-nos o medico japonês Senri Uyeno que tentou socorrê-lo, desobedecendo as ordens, e que, sendo falsamente acusado de tê-lo assassinado, foi executado por um crime que não cometeu. Tornamo-nos o poema que ele escreveu antes de sua morte. Quando ele diz: "...colocando-me no lugar dos outros, sem vacilar, por mais dura e angustiante que possa ser a vida", somos agradavelmente encurralados.

"Encontremos, por nós mesmos, a felicidade.

No íntimo, lágrimas de prata, como pérolas, e a alegria do sol,

continuemos assim nossa jornada diária".

Roshi Katagiri também é generoso; ele nos une a esse poeta terrível e nos faz descobrir esse poema atordoante por meio das palavras de um suposto criminoso de guerra com um horrível passado. Um homem cuja morte foi uma ferida entre nós, entre a América e o Japão. Mesmo no nível mais exterior dessa integridade, há, à partir dessa morte, uma brilhante ressurreição.

Embora pudesse dispor de outra organização, visto que cada palavra e frase possuem um valor inestimável, o livro é, porém, habilmente organizado. Começa pelo fim supremo, o dharma-kaya, o corpo da verdade do silêncio de Buda, onde nos unimos a Roshi Katagiri. Essa primeira parte tem como título "A vida diária" e, juntos, vivemos uma preciosa vida diária durante uma centena de páginas.

A descrição de Katagiri do "conhecimento supremo" encontra o reino do incomparável Shantdeva, "mediante o conhecimento supremo podemos ver um belo quadro onde duas coisas estão em constante intercâmbio. Esse é o lugar onde precisamos nos erguer... - não posso sobreviver sem todos vocês. Posso ajudar porque os outros não são os outros; eles são o conteúdo de minha vida; eles são completamente abarcados pela minha vida, que pode ser encontrada na vida dos outros. Então posso fazer algo com uma entrega total ."E ele associa isso à sublime mundanalidade do inigualável Dogen. "Podemos ajudar de muitas maneiras. Usar papel higiênico com cuidado é ajudar os outros. Não pense que ajudar e uma coisa difícil. Em nossa vida cotidiana, podemos ajudar alguém ou alguma coisa o tempo todo."

Katagiri faz sua mais importante declaração quando desfralda a bandeira do zazen do Zenji Dogen, o sentar-como-buda, que é a meta de todo o budismo, a meta de toda a vida, a verdadeira entrada, o fundamento e a meta suprema de toda religião. Ele nos inicia no mandala da perfeita segurança religiosa do monumento inconsútil de Dogen — apenas o zen na postura sentada é a eterna e máxima experiência, o reino do fim-em-si-mesmo. Roshi Katagiri faz essa oferta a todos nós, quer sejamos budistas, cristãos ou judeus, ateus ou hedonistas. "O zazen penetra e é praticável em todas as esferas da vida humana - esquiando, jogando basquetebol, dançando, no que quer que você faça... Essa é a prática básica universal, porque criamos outra vez a vida, dia a dia" Esse também é o ponto culminante do livro. Podemos nos sentar ao lê-lo. Isso nos faz lembrar que não há nada mais importante. Que não é apenas um "simples sentar"; é um "sentar único", um sentar iniciado, sagrado, que exclui toda a mediocridade dos meios e dos fins, um sentar que é "simples", que e preciso’ equilibrando exatamente o absoluto e o relativo, precisamente aqui e em toda parte, e que é "total", abrangendo completamente e de modo harmônico a vida e a morte, a esterilidade e a fertilidade, o bem e o mal, o amor e o ódio e todos os habituais opostos.

Roshi Katagiri conclui com uma das melhores informações com que temos nos deparado acerca da ação social budista por meio de seu comentário a respeito do ensaio de Dogen em os "Quatro métodos de orientação" (que também podem ser as "quatro virtudes sociais ou até mesmo as "quatro práticas políticas"), que são os seguintes: o ato de dar, a fala amável, a ação benéfica e a "ação de identidade". Essa seção diz respeito ao início da atividade de um bodisatva para salvar o mundo, a incansável ação messiânica para libertar todos os seres do sofrimento. É por isso que os budistas amam a América e farão com que ela, finalmente, desperte. Aqueles que gostariam de ser os bodisatvas da nova era devem ler, com todo o zelo, essa excelente informação, até que "ela penetre em sua pele, em seus músculos e em seus ossos".

"Ação de identidade significa que não há nenhuma diferença entre o objeto de nossa dedicação e nós — somos absolutamente a mesma coisa... ‘Ação’, neste caso, significa o comportamento caracterizado pela cortesia e pela agudeza, que, naturalmente, faz as pessoas terem um profundo respeito, e que possui uma espécie de majestade ou dignidade vinda do âmago da vida humana... O relacionamento entre o eu e a natureza envolve não só o ‘eu’ que podemos perceber mas também o ‘eu’ imenso que se estende no presente, no passado e no futuro, para o céu e para o inferno, em todas as direções... [É] um relacionamento infinito, constante e dinâmico."

Rezo para que esses bodisatvas da nova era possam crescer nesta terra de intenso silêncio como a relva que cresce nas vastas campinas de Minnesota. Que possam agir e falar do mesmo modo que este último parágrafo. Que possam ter conhecimento do poder e da responsabilidade da unidade, e da aptidão da consciência precisa. Que possam, sorrindo, e com atitudes dóceis, deter os lançamentos de bombas atômicas. Que possam, à custa de grande trabalho, descobrir "ouro suficiente a todas as nações"; e que possam produzir alimento para dividir com todos os povos. Doação, fala amável, ação benéfica e ação de identidade. Eles devem estudar este livro. E apreciá-lo. Saboreá-lo lenta e repetidamente. Obrigado, Zenji Dogen. Obrigado, Roshi Katagiri.

ROBERT TENZIN THURMAN
Amherst, Massachusetts.
Dezembro de 1987.




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