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O ponto de estrangulamento do medo
Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro"Sempre Zen"

As limitações da vida estão presentes na concepção. Os próprios fatores genéticos são limitações: somos do sexo masculino ou feminino, temos propensão a determinadas doenças ou fraquezas corporais. Todas as linhagens genéticas reúnem-se para produzir determinados temperamentos. É evidente a qualquer mãe com o feto em seu ventre, as tremendas diferenças que existem entre os bebês, antes mesmo de nascerem. No entanto, para a discussão que propomos, começaremos com o bebê ao nascer. Para os adultos, o recém-nascido parece aberto e não-condicionado. Durante suas primeiras semanas de vida, o imperativo do bebê é a sobrevivência. Basta ouvir um nenê recém-nascido berrando: é fácil perceber como o som atravessa a casa toda. Não consigo me lembrar de nada que tenha a mesma qualidade revolucionária que o choro de um recém-nascido. Quando ouço aquele som quero fazer alguma coisa, qualquer coisa, para interrompê-lo. Não leva muito tempo para o bebê aprender que, apesar de seus esforços incessantes, a vida nem sempre é agradável. Lembro-me de deixar meu filho mais velho cair de cabeça, quando tinha seis semanas. Pensei que eu era uma mãe nova muito esperta, mas ele estava ensaboado e...

Desde muito cedo, todos começamos a tentar nos proteger das ameaçadoras ocorrências que nos atingem com regularidade. Diante do medo que nos causam, começamos a nos contrair. A natureza aberta e espaçosa do início da vida vai se estreitando num funil dentro do gargalo do medo. Assim que aprendemos a falar, a rapidez dessa contração aumenta. Conforme nossa inteligência aumenta, o processo realmente toma-se mais veloz; então, não só tentamos manipular a ameaça, armazenando-a em cada célula de nosso corpo, como (através da memória) relacionamos cada nova ameaça a todas as anteriores e o processo forma-se de modo acumulativo.

Estamos todos familiarizados com o processo de condicionamento: imaginemos que, quando eu era bem pequena, um menino grande, forte, de 5 anos e cabelos ruivos, apoderou-se de meu brinquedo favorito. Fiquei apavorada e condicionada. Hoje, toda vez que uma pessoa ruiva passa pela minha vida fico inquieta por nenhum motivo aparente. Poderíamos dizer então que o condicionamento é o problema? Não, não exatamente. Mesmo quando repetido com freqüência, o condicionamento se esvai com o tempo.

Por essa razão, alguém que fala: "Se você soubesse o que minha vida tem sido, não é de espantar que eu esteja nessa bagunça; sou tão condicionado pelo medo, não tem jeito". Essa pessoa não está captando o cerne do problema. O que é sem dúvida verdade é que nós todos somos constantemente condicionados e, sob a influência desses incidentes, revemos devagar nossas concepções a respeito de quem somos. Depois de termos sido ameaçados em nossa abertura e disponibilidade, decidimos que nosso ser mais autêntico é a contração do medo. Revejo minhas noções de pessoa e de mundo, e defino uma nova imagem de mim mesma; e, independente de essa imagem ser de conivência, de rebeldia ou de recolhimento, não faz muita diferença. O que difere é minha decisão cega de agora ter de corresponder a essa imagem contraída de mim mesma para poder sobreviver.

O ponto de estrangulamento do medo não é causado pelo condicionamento, mas pela decisão a meu respeito, tomada com base naquele condicionamento. Felizmente, como essa decisão é composta por pensamentos e reflete-se em contração corporal, ela pode ser minha mestra quando me experimento neste exato momento. Não necessito forçosamente de um conhecimento intelectual do que foi meu condicionamento, embora ele possa ser útil. O que de fato necessito é saber que espécies de pensamentos insisto em alimentar neste presente momento, hoje, e que contrações corporais exteriores, tenho exatamente, hoje. Ao atentar para os pensamentos e ao experimentar as contrações corporais (fazendo o zazen), o ponto de estrangulamento do medo fica iluminado. Ao fazer isso, minhas falsas identificações com um self limitado (a decisão) aos poucos desaparecem . Posso ser cada vez quem sou de verdade. Um não-self, uma resposta aberta e disponível à vida. Meu verdadeiro self, desertado e esquecido há tanto tempo, pode funcionar agora, pois observo que esse ponto é uma ilusão.

Nessa altura vêm-me à mente dois famosos versos sobre um espelho (um de autoria de um monge que era especialista no Quinto Patriarca, e outro, de um anônimo que acabaria se tornando o Sexto Patriarca). Esses versos foram compostos de tal modo que o Quinto Patriarca deveria julgar se seu autor teria ou não alcançado a verdadeira realização. O verso do monge (aquele que não foi aceito pelo Quinto Patriarca como a verdade) afirmava que a prática consistia em polir o espelho; em outras palavras, removendo o pó de nossos pensamentos e ações ilusórios, o espelho poderia brilhar (estaríamos purificados). O outro verso (que revelou ao Quinto Patriarca o profundo entendimento do homem que seria escolhido como seu sucessor) afirmava que, desde o princípio, "não há espelho onde se mirar, não há espelho a ser polido, e não há onde o pó se apegar...

Então, embora, o verso do Sexto Patriarca seja o entendimento verdadeiro, para nós o paradoxo é que temos de praticar com o verso que não foi aceito; precisamos mesmo polir o espelho; precisamos de fato tomar consciência de nossos pensamentos e atos; temos de nos conscientizar de nossas falsas reações à vida. Apenas agindo assim é que chegaremos a perceber que, desde o princípio, o ponto de estrangulamento do medo é uma ilusão. É óbvio que não temos de nos esforçar para nos libertar dela. Mas não podemos e não queremos saber disso até termos polido infatigavelmente o espelho que não existe.

Às vezes, as pessoas dizem: "Bem não há nada que precise ser feito. Nenhuma prática (polir) é necessária. Se você enxergar com suficiente clareza, tal prática não tem sentido". É... porém nós não vemos com suficiente nitidez e, quando isso acontece, criamos um caos deslumbrado para nós e para os outros. É preciso de fato praticar, precisamos na realidade polir o espelho, até que possamos sentir em nossas vísceras a verdade de nossa vida. Assim, podemos enxergar que, já desde o início, nada era necessário.

Nossa vida sempre está aberta, disponível e útil. Contudo, não nos iludamos sobre quanta prática sincera devemos realizar antes de vermos tudo com a mesma clareza com que enxergamos nosso próprio nariz.

O que lhes estou apresentando é, sem dúvida, uma visão otimista da prática, embora haja ocasiões em que ela se tornará desestimulante e difícil. Outra vez, porém, a questão é: temos bastantes escolhas? Ou morremos — porque se permanecermos muito tempo entalados no ponto de estrangulamento do medo seremos estrangulados até a morte — ou lentamente conquistamos uma certa compreensão vivenciando o ponto e atravessando-o. Não creio que tenhamos tantas escolhas assim. O que vocês pensam?




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