shunya | meditação | mestres | textos | zen | dzogchen | links |
INTRODUÇÃO AO BUDISMO de vários autores e mestres budistas por Karma Tenpa Darghye. Quando a Luminosidade Base emerge na morte, um praticante experiente manterá plena consciência e se fundirá com ela, atingindo assim a liberação. Mas se deixamos de reconhecer a Luminosidade Base, encontramos então o próximo bardo, o bardo luminoso do dharmata. O ensinamento sobre o bardo do dharmata é uma instrução muito especial, específica da prática do Dzogchen e entesourada no coração dos ensinamentos do Dzogchen durante séculos. De início, senti alguma hesitação em apresentar publicamente esse que é o mais sagrado dos ensinamentos e, se não houvesse qualquer precedente, talvez não o fizesse. Entretanto, o Lívro Tíbetano dos Mortos e muitos outros textos que se referem ao bardo do dharmata já foram publicados, tendo levado a algumas conclusões ingênuas. Sinto que é extremamente importante e oportuno tornar disponível uma clarificação franca e direta desse bardo, colocando-o no seu verdadeiro contexto. Devo esclarecer que não entrarei em qualquer detalhe sobre as práticas adiantadas nele envolvidas; nenhuma dessas práticas poderia ser feita, sob qualquer circunstância, sem as instruções e orientação de um mestre qualificado, e sem a manutenção de um compromisso e conexão com ele absolutamente puros. Reuni visões e insights de muitas fontes diferentes para fazer com que este capítulo - que é para mim um dos mais importantes do livro - seja tão lúcido quanto possível. Espero que através dele alguns de vocês estabeleçam uma conexão com esse ensinamento extraordinário, e sejam inspirados a investigar mais profundamente e a iniciar a sua própria prática.
AS QUATRO FASES DO DHARMATA A palavra sânscrita dharmata, ou chö nyi em tibetano, significa a natureza intrínseca de tudo, a essência das coisas como elas são. Dharmata é a verdade nua e incondicionada, a natureza da realidade, ou a verdadeira natureza da existência fenomênica. O que examinamos aqui é algo fundamental para a total compreensão da natureza da mente e da natureza de tudo. O fim do processo de dissolução e o despontar da Luminosidade Base abriram uma dimensão inteiramente nova que agora começa a desdobrar-se. Um modo útil que encontrei de explicar isso é compará-los à maneira como a noite se transforma em dia. A fase final do processo de dissolução na morte é a experiência negra do estágio de "Plena Consecução". É descrita como "um céu amortalhado em trevas". O surgimento da Luminosidade Base é como a claridade num céu aberto quando o dia começa a raiar. Gradualmente o sol do dharmata começa a surgir em todo seu esplendor, iluminando os contornos da terra em todas as direções. A radiância natural de Rigpa manifestasse de modo espontâneo e resplandece como energia e luz. Tal como o sol nasce nesse céu claro e vazio, os aspectos luminosos do bardo do dharmata surgirão do espaço oniabrangente da Luminosidade Base. O nome que damos a essa manifestação de som, luz e cor é "presença espontânea", porque ela está sempre inerentemente presente na vastidão da "pureza original", que é sua base. O que de fato ocorre aqui é um processo de desdobramento em que a mente e a sua natureza fundamental vão pouco a pouco se tornando mais manifestas. O bardo do dharmata é um estágio nesse processo. E é através dessa dimensão de luz e energia que a mente se desdobra do seu mais puro estado, a Luminosidade Base, para manifestar-se como forma no bardo seguinte, o bardo do vir-a-ser. Acho muito sugestivo que a física moderna tenha mostrado que a matéria, quando investigada, revela-se como um oceano de energia e luz. "A matéria, de certo modo, é luz condensada ou congelada... toda matéria é uma condensação de luz dentro de padrões, movendo-se de um lado para outro em velocidades médias menores que a da luz", explica David Bohm. A física moderna também compreende a luz de modo multifacetado: "É energia e é também informação - conteúdo, forma e estrutura. É o potencial para tudo". O bardo do dharmata tem quatro fases, cada uma delas apresentando mais uma oportunidade para a liberação. Se a oportunidade não é aproveitada, então a próxima fase se desdobra. A explanação desse bardo que darei a seguir tem origem nos Tantras do Dzogchen, em que se ensina que o verdadeiro significado do bardo do dharmata pode ser compreendido somente pela prática especial e avançada da luminosidade, o Tögal. O bardo do dharmata figura com destaque bem menor em outros ciclos de ensinamentos sobre a morte na tradição tibetana. Mesmo no Livro Tibetano dos Mortos, que também pertence aos ensinamentos do Dzogchen, a seqüência dessas quatro fases é apenas implícita, como se fosse sutilmente oculta, e ali não aparece em uma estrutura clara e ordenada. Devo enfatizar, no entanto, que tudo o que as palavras podem fazer é dar um quadro conceitual do que poderá ocorrer no bardo do dharmata. As manifestações desse bardo permanecerão apenas como imagens conceituais até que o praticante tenha aperfeiçoado a prática do Tögal, momento em que cada detalhe da descrição que darei em seguida se torna uma experiência pessoal inegável. O que tento dar a você aqui é alguma idéia de que essa dimensão maravilhosa e surpreendente pode existir, completando a minha descrição de todos os bardos. Desejo profundamente que ela possa ser proveitosa como uma espécie de lembrança quando você passar pelo processo da morte. 1. Luminosidade - a paisagem de luz No bardo do dharmata você toma um corpo de luz. A primeira fase desse bardo ocorre quando "o espaço se dissolve na luminosidade". De repente, você se torna consciente de um mundo fluido e vibrante de som, luz e cor. Todas as características ordinárias do nosso ambiente conhecido fundiram-se, numa paisagem de luz que permeia tudo. Ela é brilhantemente clara e radiante, transparente e multicolorida, cintilante e ilimitada por qualquer tipo de dimensão ou direção, e está constantemente em movimento. O Livro Tibetano dos Mortos considera-a como "uma miragem numa planície sob o calor do verão". Suas cores são a expressão natural das qualidades elementares e intrínsecas da mente: o espaço é percebido como luz azul, a água como luz branca, a terra como amarela, o fogo vermelho e o vento verde. O grau de estabilidade dessas deslumbrantes manifestações de luz no bardo do dharmata depende inteiramente da estabilidade que você conseguiu atingir na prática do Tögal. A real maestria dessa prática fará com que você consiga manter estável a experiência e assim usá-la para ganhar a liberação. De outro modo, o bardo do dharmata apenas brilhará como o clarão de um relâmpago; você nem mesmo saberá que ele ocorreu. Deixe-me reiterar uma vez mais que apenas um praticante do Tögal estará apto a fazer o crucial reconhecimento: que essas manifestações radiantes de luz não têm existência separada da natureza da mente. 2. União - as deidades Se você não é capaz de reconhecer isso como a manifestação espontânea de Rigpa, os raios e cores individuais começam então a integrar-se e aglutinar-se em pontos ou bolas de luz de diferentes tamanhos, chamadas tiglé. Dentro delas surgem os "mandalas das deidades pacíficas e iradas", como enormes concentrações esféricas de luz que parecem ocupar todo o espaço. Essa é a segunda fase, conhecida como "luminosidade dissolvendo-se na união", onde a luminosidade se manifesta na forma de budas ou deidades de vários tamanhos, cores e formas, contendo diferentes atributos. A luz cheia de brilho que emana delas é ofuscante e estonteante, o som é tremendo como o ribombar de mil trovões, e os raios e fachos de luz são como os lasers, penetrando tudo. Essas são as "quarenta e duas deidades pacíficas e cinqüenta e oito deidades iradas" descritas no Livro Tibetano dos Mortos. Elas se revelam por um certo período de "dias", assumindo o seu padrão característico de mandala de cinco partes. Essa é uma visão que ocupa a sua percepção por completo e com tamanha intensidade que, se você não for capaz de reconhecê-la pelo que de fato é, parecerá terrificante e perigosa. O medo absoluto e o pânico cego poderão consumi-lo e você desfalecerá. Finíssimos raios de luz jorram de você e das deidades, unindo o seu coração aos delas. incontáveis esferas luminosas que aumentam de tamanho e giram, aparecerão nos raios das deidades, à medida que todas elas se dissolvem em você. 3. Sabedoria Se outra vez você fracassa em reconhecer e conseguir estabilidade, desdobra-se a próxima fase, chamada "união dissolvendo-se na sabedoria". Outro fino raio de luz origina-se em seu coração e abre-se uma grandiosa visão; cada detalhe, no entanto, permanece distinto e preciso. Essa é a manifestação dos vários aspectos da sabedoria, que aparecem juntos num espetáculo de planos de luz e resplandecentes tiglés luminosos de forma esférica. Primeiramente, num plano de profundo azul luminoso, aparecem tiglés cintilantes cor azul safira, em padrões de cinco. Acima deles, num plano de luz branca, aparecem tiglés radiantes, brancos como cristal. Acima ainda, num plano de luz amarela, surgem tiglés dourados e, sobre eles, um plano de luz vermelha serve de base a tiglés de coloração vermelho-rubi. Todos eles são coroados por uma esfera radiosa, como um dossel de penas de pavão. Essa esfuziante exibição de luz é a manifestação das cinco sabedorias: a sabedoria do espaço todo-abrangente, a sabedoria do espelho, a sabedoria da equanimidade, a sabedoria do discernimento e a sabedoria-que-tudo-realiza. Mas uma vez que a sabedoria-que-tudo-realiza é aperfeiçoada unicamente quando se chegou à iluminação, ela ainda não aparece. Assim, não há o plano verde de luzes e tiglés, embora esteja contido em todas as outras cores. O que se manifesta aqui é o nosso potencial de iluminação; a sabedoria-que-tudo-realiza só aparecerá quando nos tornarmos budas. Se você não obtém aqui a liberação, através do repouso atento na natureza da mente, os planos de luz e seus tiglés, assim como o seu Rigpa, todos se dissolvem na esfera radiante de luz que é como um dossel de penas de pavão. 4. Presença espontânea Isso anuncia a fase final do bardo do dharmata, "sabedoria dissolvendo-se na presença espontânea". Agora o todo da realidade se apresenta num tremendo espetáculo. Primeiro, o estado de pureza original nasce como um céu aberto e sem nuvens. Então, as deidades pacíficas e iradas aparecem, seguidas pelos reinos puros dos budas, e abaixo delas os seis reinos da existência samsárica. O ilimitado dessa visão está além da nossa imaginação comum. Cada possibilidade é apresentada: da sabedoria e liberação à confusão e o renascimento. Nesse ponto você se verá dotado do poder de percepção e recordação clarividentes. Por exemplo, com total clarividência e seus sentidos desobstruídos, você conhecerá suas vidas passadas e futuras, verá a mente de outros e terá conhecimento de todos os seis reinos da existência. Num instante poderá evocar de maneira vívida todos os ensinamentos que ouviu - e até mesmo ensinamentos que nunca ouviu despertarão em sua mente. A visão inteira, então, dissolve-se retomando à sua essência original, como um toldo ou tenda que cai quando as suas cordas são cortadas. Se tiver estabilidade suficiente para reconhecer essas manifestações como a "auto-irradiação" de seu próprio Rigpa, você se liberará. Mas sem a experiência da prática do Tõgal, não será capaz de ter a visão das deidades, que são "brilhantes como o sol". Em vez disso, como resultado das tendências habituais de suas vidas prévias, seu olhar será atraído para baixo, para os seis reinos. São eles que você reconhecerá e que servirão de isca para atraí-lo novamente para a ilusão. No Livro Tibetano dos Mortos atribuem-se períodos de dias às experiências do bardo do dharmata. Não se trata de dias solares de vinte e quatro horas, porque na esfera do dharmata fomos completamente além dos limites de tempo e espaço. Esses dias são "dias de meditação", e referem-se à extensão temporal que formos capazes de repousar sem distração na natureza da mente ou num único estado mental. Sem estabilidade na prática da meditação esses dias podem ser muito curtos, e a manifestação das deidades pacíficas e iradas tão fugaz que sequer poderemos registrar que elas se manifestaram. COMPREENDENDO O DHARMATA Agora que o bardo do dharmata desponta sobre mim, abandonarei todo medo e terror, Reconhecerei tudo o que aparece como a manifestação do meu próprio Rigpa, E saberei que é a manifestação natural deste bardo; Agora que alcancei esse ponto crucial, Não temerei as deidades pacíficas e iradas que surgem da natureza da minha própria mente. A chave para a compreensão desse bardo consiste no fato de que todas as experiências que nele ocorrem são parte da radiância original da natureza da nossa mente. O que acontece é que diferentes aspectos da sua energia iluminada estão sendo liberados. Assim como os arco-íris dançantes de luz que se irradiam de um cristal são sua manifestação natural, também as deslumbrantes manifestações do dharmata não podem ser separadas da natureza da mente. Elas são sua expressão espontânea. Assim, não importa quão aterrorizantes possam ser essas manifestações, diz o Livro Tibetano dos Mortos, elas não lhe trarão mais medo do que um leão empalhado. Estritamente falando, no entanto, seria um equívoco chamar essas manifestações de "visões" ou "experiências", porque visão e experiência dependem de uma relação dualista entre o percebedor e a coisa percebida. Se pudermos reconhecer as manifestações do bardo do dharmata como sendo a energia de sabedoria da nossa própria mente, não há diferença entre percebedor e percebido, e essa é uma experiência de não-dualidade. Entrar por completo nessa experiência é obter a iluminação. Porque, como diz Kalu Rinpoche: "A liberação surge naquele estado pós-morte em que a consciência pode perceber que as suas experiências nada são além da própria mente". No entanto, agora que já não estamos mais assentados em ou protegidos por um corpo físico, as energias da natureza da mente liberadas no estado de bardo podem parecer esmagadoramente reais e ganhar uma existência objetiva. Elas parecem habitar o mundo fora de nós. E sem a estabilidade da prática não temos conhecimento de nada que seja não-dual, que independa da nossa própria percepção. Se tomarmos essas manifestações de maneira errada, como sendo alguma coisa separada de nós, como "visões externas", reagiremos com medo ou esperança, o que nos conduzirá à ilusão. Tal como no surgir da Luminosida de Base o reconhecimento é a chave para a liberação, também ocorre o mesmo no bardo do dharmata. Só que aqui o reconhecimento da auto-radiâncía de Rigpa, a energia manifesta da natureza da mente, é o que faz a diferença entre atingir a liberação ou continuar num ciclo incontrolado de renascimentos. Tome, por exemplo, a manifestação de uma centena de deidades pacíficas e iradas, que ocorre na segunda fase deste bardo. São os budas das cinco famílias búdicas, suas contrapartes femininas, bodhisatvas masculinos e femininos, os budas dos seis reinos e um bom número de deidades iradas e protetoras. Todas surgem em meio à luz brilhante das cinco sabedorias. Como entender esses budas ou deidades? "Cada uma dessas formas puras expressa uma perspectiva iluminada de parte da nossa experiência impura". Os cinco budas masculinos são o aspecto puro dos cinco agregados do ego. Suas cinco sabedorias são o aspecto puro das cinco emoções negativas. Os cinco budas femininos são as qualidades elementais puras da mente, que nós experimentamos como os elementos impuros do nosso corpo físico e meio ambiente. Os oito bodhisatvas são o aspecto puro dos diferentes tipos de consciência, e suas contrapartes femininas são os objetos dessas consciências. Tanto no caso em que se manifesta a visão pura das famílias búdicas e sua sabedoria, quanto no caso em que surge a visão impura dos agregados e emoções negativas, eles são intrinsecamente a mesma coisa em sua natureza fundamental. A diferença reside em como os reconhecemos, e se reconhecemos que eles emergem da base da natureza da mente como a sua energia iluminada. Tome como exemplo o que se manifesta em nossa mente comum como um pensamento de desejo; se sua verdadeira natureza é reconhecida, ele surge, livre do apego, como "sabedoria do discernimento". O ódio e a raiva, quando verdadeiramente reconhecidos, surgem como claridade similar à do diamante, livres do apego; esta é a "sabedoria do espelho". quando a ignorância é reconhecida, ela surge como vasta e natural claridade sem conceitos: é a "sabedoria do espaço todo-abrangente". O orgulho, quando reconhecido, é percebido como não-dualidade e igualdade: a "sabedoria da equanimidade". O ciúme, quando reconhecido, é libertado da parcialidade e do apego, surgindo como a "sabedoria-que-tudo-realiza". Assim, as cinco emoções negativas emergem como resultado direto de não reconhecermos a sua verdadeira natureza. Quando reconhecidas, são purificadas e liberadas, mostrando-se como nada menos que a manifestação das cinco sabedorias. No bardo do dharmata, quando você falha em reconhecer as luzes brilhantes dessas sabedorias, o auto-apego invade sua "percepção", tal como, segundo diz um mestre, uma pessoa que está seriamente enferma, com febre alta, e começa a ter alucinações e ver toda espécie de miragens. Assim, por exemplo, se você deixou de reconhecer a luz vermelho-rubi da sabedoria do discernimento, ela surge como fogo, porque é a essência pura do elemento fogo; se você deixa de reconhecer a verdadeira natureza da radiância dourada da sabedoria da equanimidade, ela surge como o elemento terra, porque e a essência pura do elemento terra; e assim por diante. Quando o apego ao eu penetra a "percepção" das manifestações do bardo do dharmata, esse é o momento em que se transformam, pode-se dizer que até se solidificam, através disso, nas diversas bases da ilusão do samsara. Um mestre Dzogchen usa o exemplo do gelo e da água para mostrar como essa falta de reconhecimento e o auto-apego se desdobram: a água é geralmente líquida, um elemento com qualidades maravilhosas, que purifica e sacia a sede. Mas, quando congela, solidifica-se e vira gelo. Do mesmo modo, sempre que surge o apego ao eu, ele solidifica tanto a nossa experiência interior quanto o modo como percebemos o mundo à nossa volta. Todavia, assim como ao calor do sol o gelo derrete e se faz água, com a luz do conhecimento revela-se a nossa ilimitada sabedoria. Agora podemos ver exatamente de que maneira, após o surgimento da Luminosidade Base e do bardo do dharmata, o samsara surge como resultado de dois fracassos sucessivos em reconhecer a natureza essencial da mente. No primeiro, não é reconhecida a Luminosidade Base, a base da natureza da mente; se o reconhecimento houvesse acontecido, a liberação teria sido obtida. No segundo, manifesta-se o aspecto energético da natureza da mente e uma segunda oportunidade para a liberação se apresenta; se ela tampouco for reconhecida, as emoções negativas que surgem começam a solidificar-se em diferentes percepções falsas, que juntas vão criar os reinos ilusórios chamados samsara, e que nos aprisionam no ciclo de nascimento e morte. O todo da prática espiritual, portanto, é dedicado a reverter diretamente o que eu chamaria de progresso da ignorância, e a des-criar e des-solidificar aquelas falsas percepções interligadas e interdependentes que levaram ao nosso aprisionamento na realidade ilusória que, afinal, nós mesmos inventamos. Tal como quando a Luminosidade Base despontou no momento da morte, aqui também no bardo do dharmata a liberação não pode ser considerada ainda garantida. Porque quando a luz brilhante da sabedoria resplandece, é acompanhada da manifestação de sons e luzes simples, reconfortantes e suaves, menos desafiadores e abrangentes que ela. Essas luzes opacas - acinzentadas, amarelas, verdes, azuis, vermelhas e brancas - são as nossas tendências habituais inconscientes acumuladas por ódio, cobiça, ignorância, desejo, ciúme e orgulho. Essas são as emoções que criam os seis reinos do samsara, respectivamente: os reinos do inferno, dos fantasmas famintos, dos animais, dos seres humanos, dos semideuses e dos deuses. Se não reconhecemos e estabilizamos em vida a natureza da mente do dharmata, somos instintivamente atraídos para as luzes opacas dos seis reinos quando a tendência básica para o apego, construída ao longo de toda a vida, começa a entrar em atividade e a despertar. Ameaçada pela radiância dinâmica da sabedoria, a mente se retrai. As luzes aconchegantes, o convite das nossas tendências costumeiras, seduzem-nos a um renascimento determinado por aquela emoção negativa que domina nosso carma e nosso fluxo mental. Vamos tomar um exemplo de manifestação de um dos budas pacíficos do Livro Tibetano dos Mortos, que ilustrará todo esse processo. O mestre ou amigo espiritual dirige-se à consciência do morto: Ó fílho/fílha de uma família iluminada, ouça sem distração! No terceiro dia emergirá uma luz amarela, que é apura essência do elemento terra. Simultaneamente, do campo búdico do sul, de cor amarela, conhecido como "O Glorioso", o Buda Ratnasambhava aparecerá diante de você, com seu corpo amarelo e segurando em sua mão uma-jóia-que-realiza-desejos. Ele está sentado em um trono sustentado por cavalos, e abraça Mamaki, a consorte suprema. Em torno dele estão os dois bodhisatvas masculinos Akashagarbha e Samantabhadra, e os dois bodhisatvas femininos Mala e Dhupa, de modo que seis budas aparecem saindo da vastidão da luz de arco-íris, A pureza inerente do skandha do sentimento - que é a "sabedoria da equanimidade"- uma luz amarela, deslumbrante e adornada com tiglés de luz grandes e pequenos, fulgurante e clara, intolerável aos olhos, irradiará até você a partir do coração de Ratnasambhava e sua consorte, penetrando o seu coração de tal modo que os olhos não suportam encará-la. Exatamente ao mesmo tempo, junto com a luz de sabedoria, uma luz azul opaca representando o reino humano virá em sua direção e penetrará em seu coração. Então, levado pelo orgulho, você, fugirá aterrorizado da intensidade da luz amarela, mas ficará encantado com a obscurecida luz azul do reino humano, apegando-se então a ele. Nesse momento, não tema a penetrante luz amarela em toda a sua deslumbrante radiância, mas reconheças como sabedoria. Deixe que seu Rigpa repouse nela, relaxado e à vontade, num estado livre de qualquer atividade. Tenha confiança nela; tenha devoção e anseie por ela. Se a reconhecer como a natural radiância do seu próprio Rigpa, mesmo que não tenha devoção e não tenha feito a necessária oração inspiradora, todos os corpos dos budas e raios de luz irão se fundir inseparavelmente com você, que atingirá então o estado búdico. Se não a reconhecer como a radiação natural do seu Rigpa, então reze por isso com devoção, pensando; "Esta é a luz da compassiva energia do Buda Ratnasambhava. Tomo refúgio nela". Porque de fato o Buda Ratnasambhava está vindo para guiá-lo por entre os terrores do bardo, e é o catalisador da sua energia compassiva, feito de raios de luz. Assim, encha seu coração de devoção por ele. Não se encante com a opaca luz azul do reino humano. Essa é a sedutora trilha das tendências habituais que você acumulou através de um orgulho intenso. Se estiver apegado a ela você cairá no reino humano, onde provará a dor do nascimento, da velhice, da doença e da morte, perdendo a oportunidade de sair do pântano do samsara. Essa (opaca luz azul) é um obstáculo bloqueando o caminho para a liberação. Não olhe para ela, portanto, mas abandone o orgulho! Abandone as tendências habituais que acarreta! Não se apegue (à opaca luz azul)! Não anseie por ela! Sinta devoção e anseie pela luz amarela que irradia e leva ao deslumbramento, centrando sua total atenção no Buda Ratnasambhava e dizendo esta oração: Ai de mim! Quando por intenso orgulho eu vagar no samsara, Possa o Buda Ratnasambhava mostrar-me o caminho Da radiante trilha de luz que é a "sabedoria da equanimidade" , Possa a suprema consorte Mamaki caminhar atrás de mim; Possam eles me ajudar pelo perigoso caminho do bardo, E levar-me ao perfeito estado búdico. Dizendo essa prece de inspiração com profunda devoção, você se dissolvera numa luz de arco-íris no coração do Buda Ratnasambhava e de sua consorte, tornando-se um Buda Sambhogakaya no campo búdico do sul, conhecido como "O Glorioso". Essa descrição do aparecimento do Buda Ratnasambhava conclui explicando que, através dessa "demonstração" oferecida pelo mestre ou amigo espiritual, a liberação é certa, ainda que as forças da pessoa morta possam estar enfraquecidas. No entanto, mesmo depois dessa "mostra" ser repetida muitas vezes, diz o Livro 7ibetano dos Mortos que há aqueles que, devido ao seu carma negativo, não reconhecerão nem vão ganhar a liberação. Perturbados por desejos e obscurecimentos, e aterrorizados pelos diferentes sons e luzes, eles fugirão. Assim, no "dia" seguinte, o Buda que virá, Amitabha, o Buda da Luz Ilimitada, com seu mandala de deidades, aparecerá em todo o esplendor de sua deslumbrante luz vermelha, manifestando-se junto com a esvaecida, sedutora e amarela trilha de luz dos fantasmas famintos, que é criada a partir do desejo e da mesquinhez. E assim, o Livro Tibetano dos Mortos apresenta a manifestação de cada uma das deidades pacíficas e iradas, uma por vez e de modo similar. Muitas vezes me perguntam: "As deidades aparecem a uma pessoa do Ocidente? Em caso positivo, aparecem sob formas familiares aos ocidentais?" As manifestações do bardo do dharmata são chamadas "espontaneamente presentes". Isso significa que elas são inerentes e incondicionadas, existindo em todos nós. Seu aparecimento não depende de qualquer avanço espiritual que tenhamos conseguido; só seu reconhecimento depende. Não são exclusivas dos tibetanos; são uma experiência universal e fundamental, mas o modo como são percebidas depende do nosso condicionamento. Uma vez que são por natureza ilimitadas, têm a liberdade de se manifestar de qualquer forma. Portanto as deidades podem tomar formas com que estamos mais familiarizados em nossa vida. Por exemplo, para praticantes cristãos as deidades podem surgir como o Cristo ou a Virgem Maria. Geralmente, todo o propósito da manifestação iluminada dos budas é ajudar-nos, e assim podem assumir a forma mais apropriada e benéfica para nós. Mas seja lá qual for aquela que assumam, é importante reconhecer que não há qualquer diferença na sua natureza fundamental. RECONHECIMENTO Explica-se no Dzogchen que, do mesmo modo que uma pessoa não reconhecerá a Luminosidade Base sem uma verdadeira realização da natureza da mente e uma experiência estável da prática do Trekchö, sem a estabilidade do Tögal é muito difícil que alguém reconheça o bardo do dharmata. Um praticante que tenha atingido a realização da prática do Tögal, e que aperfeiçoou e estabilizou a luminosidade da natureza da mente, já chegou em vida a um conhecimento direto das mesmas manifestações que emergirão no bardo do dharmata. Essa energia e luz, assim, estão dentro de nós, embora no momento estejam ocultas. Mas quando o corpo e os níveis mais densos da mente morrem, elas são naturalmente liberadas, e o som, a cor e a luz da nossa verdadeira natureza resplandecem. Contudo, não é somente através do Tõgal que esse bardo pode ser usado como uma oportunidade para a liberação. Praticantes do budismo tântrico relacionarão as manifestações do bardo do dharmata com a sua própria prática. No Tantra, o princípio das deidades é um modo de comunicação. É difícil relacionar-se com a presença de energias iluminadas se elas não têm forma ou base para comunicação pessoal. As deidades são entendidas como metáforas, que personificam e captam as infinitas energias e qualidades da mente de sabedoria dos budas. Personificá-las na forma de deidades torna possível ao praticante reconhecê-las e se relacionar com elas. Através do treino em criar e reabsorver as deidades na prática da visualização, ele descobre que a mente que percebe a deidade, e a própria deidade, não são separadas. No budismo tibetano o praticante terá um yidam, isto é, a prática de um buda ou deidade específica com quem tem uma forte ligação cármica, que é para ele uma encarnação da verdade, que invoca como a essência da sua prática. Em lugar de perceber as manifestações do dharmata como fenômeno externo, o praticante do Tantra vai relacioná-las com sua prática yidam, unindo-se e fundindo-se com elas. Uma vez que em sua prática reconheceu o yidam como a radiância natural da mente iluminada, está preparado para ver as manifestações com esse reconhecimento, deixando-as surgir como a deidade. Com essa percepção pura, o praticante reconhece o que quer que apareça no bardo como nada além de manifestação do yidam. Então, através do poder de sua prática e da bênção da deidade, ele ou ela ganhará a liberação no bardo do dharmata. É por isso que na tradição tibetana aconselha-se o leigo e o praticante comum não familiarizados com a prática do yidam a levar em consideração toda manifestação que surja, reconhecendo-a imediatamente como Avalokiteshvara, o Buda da Compaixão, ou Padmasambhava, ou Amitabha - aquele com que tiver se familiarizado mais. Resumindo, o modo como você tenha praticado em sua vida será exatamente o modo pelo qual tentará reconhecer as manifestações do bardo do dharmata. Outra maneira reveladora de olhar para o bardo do dharmata é vê-lo como dualidade sendo expressa em sua forma mais pura. Mostram-se a nós os meios de liberação, mas simultaneamente somos seduzidos pela chamada dos nossos hábitos e instintos. Experimentamos a pura energia da mente e sua confusão, a um só e mesmo tempo. É quase como se fôssemos incitados a tomar uma resolução escolher entre uma e outra. Não é preciso dizer, no entanto, que até o fato de termos ou não essa escolha é determinado pelo estágio e perfeição alcançados em nossa prática espiritual ao longo da vida. O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER – Sogyal Rinpoche |