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"Não fique com raiva"
Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro"Sempre Zen"

Quando dou uma palestra, estou tentando elucidar do que trata a vida para mim, através de meios que me parecem adequados, e tentando elucidar o que poderia ser a vida para uma outra pessoa, contrastando-a com nossas ilusões a respeito dela. E muito difícil de se falar a respeito disso. Nunca apresento uma dharma palestra sem detestar o que fiz, porque é impossível dizer com exatidão a verdade. Acabo sempre exagerando um pouco para um lado ou para outro, ou então uso as palavras erradas e alguém fica confuso... uma vez mais, porém, isso faz parte de nosso treinamento. As dharma palestras não são necessariamente algo que se possa entender: se elas abalam o ouvinte e o confundem, pode ser que, às vezes, tenham de fazer exatamente isso. Por exemplo: podemos dizer que todas as pessoas do universo, neste momento particular, estão fazendo o melhor que podem. E, neste sentido, o termo "melhor" cria confusão. É a mesma dificuldade que temos com a sentença "Tudo que existe, tal como é, é perfeição". Perfeição? Melhor? Em outras palavras, quando alguém está fazendo algo terrível, está fazendo o melhor? O mero uso de palavras cria uma tremenda confusão em nossas vidas e em nossas práticas.

Na realidade, nossa vida inteira está confusa porque misturamos nossos conceitos (que, em si mesmos, são absolutamente necessários) à realidade. Sendo assim, as dharma palestras tendem a desafiar nossos conceitos habituais. Usar as palavras de uma certa maneira acrescenta muita confusão, e é assim mesmo. Hoje quero contribuir com a confusão. Vou contar-lhes uma rápida história, depois comentarei diversas outras coisas também, e vejamos o que nos é possível entender disso tudo. Neste centro não se fala muito dos preceitos, nem do caminho de oito etapas, por uma razão muito clara: as pessoas entendem de modo equivocado os preceitos como proibições — "não deves". E não é isso, de modo algum, o que eles são. Apesar de tudo, hoje falarei sobre o preceito "Não fique com raiva" . Não vou mais mencioná-lo! Porém, minha palestra de hoje versa sobre "Não fique com raiva

Suponhamos que estejamos num lago e há um pouco de neblina, não muita, só um pouco, e estejamos remando, nos divertindo. De repente, da neblina, sem que possamos saber de onde vem um outro bote a remo justamente em nossa direção. E... craque! Bem, durante um minuto ou dois, ficamos de fato com muita raiva: o que aquele cretino acabou de fazer? Foi só pintar meu bote de novo e... bate em cheio! Nesse momento, de repente percebemos que o outro bote a remo está vazio. O que acontece com nossa raiva? Bem, desaparece... Vou ter de pintar meu bote outra vez e pronto. Entretanto, se naquele bote a remo que bateu no nosso tivesse alguém dentro, qual teria sido nossa reação? Vocês sabem muito bem o que teria acontecido! Bem, nossos encontros com a vida, com as outras pessoas, com os acontecimentos são semelhantes a sermos abalroados por um bote vazio. Contudo, não é assim que vivenciamos a vida. Para nós, é como se houvessem pessoas no outro bote, que realmente estivessem nos causando danos sérios. Do que estou falando quando digo que a vida não passa de um encontro, de uma abalroada com um bote a remo vazio? O que isso significa?

Deixemos a pergunta de lado por um momento. As pessoas costumam questionar: "O que obtenho com a prática? Qual é a mudança? Qual é a transformação?". A prática zen é um trabalho muito árduo. É restritivo e difícil. Somos instruídos a sentar todos os dias. Que proveito tiramos disso? As pessoas costumam pensar: "Vou melhorar. Vou ficar melhor; se costumo me alterar com facilidade, talvez depois de sentar não me alterarei tanto". Ou: "Para ser sincero, não sou tão atencioso; talvez com essa prática do sentar eu me torne mais delicado". Isso não é bem verdade. Por isso, quero relatar-lhes alguns pequenos incidentes para esclarecer um pouco mais o ponto.

Desejo falar a respeito da pia da cozinha da casa onde moro com Elizabeth. Como estou aposentada, e fico em casa a maior parte do dia. Depois que limpo a pia, gosto de pôr o secador de pratos lá dentro como se fosse um prato, porque se houver uma xícara suja posso escondê-la dentro do secador. Uma vez que é assim que o desejo, é óbvio que esse é o jeito certo, não é mesmo? Quando Elizabeth lava a louça, entretanto, ela limpa o secador e o vira de cabeça para baixo para que possa secar. Na hora do almoço a casa é toda minha. Mas, às 17 h, sei que ela está voltando. Então penso: "Bem, sou uma mulher ou um rato? O que vou fazer com esse secador? Vou pô-lo do jeito que Elizabeth quer?". Então, faço o quê? Na realidade, costumo esquecer tudo e coloco o secador do jeito de sempre.

Há também uma outra coisa a respeito de Elizabeth. Moro com ela, e ela é maravilhosa. Porém, não podem existir duas pessoas mais diferentes como nós. A alegria de minha vida é encontrar algo em meu armário do qual possa me desfazer.., é fantástico! Elizabeth tem três exemplares de tudo e não quer jogar nada fora. Isso significa que, quando quero encontrar alguma coisa, não consigo achá-la, porque já joguei fora, e quando ela quer encontrar algo também não consegue nada, porque tem coisas demais.

Mais um exemplo e depois chego ao ponto que desejo elucidar. Vou lhes contar o que acontece quando vou ao cinema com minha filha: "Mãe, você sabe que suas escolhas de filmes são impossíveis!". E eu retruco: "Bem, mas você se lembra daquele que fomos ver porque você queria assistir! O que me diz a respeito?". Blá, blá, blá, e terminamos indo a um filme que talvez.., seja qualquer um.

Qual é a moral dessas histórias? Basicamente, nada me é mais indiferente do que o secador de pratos. Entretanto, não perdemos todos os nossos trejeitos neuróticos prediletos apenas com a prática. Nem minha filha, nem eu, na realidade damos a mínima para o filme, mas essas pequenas briguinhas são o estofo da vida. E justo o que ela tem de engraçado. Vocês entendem? Não temos de analisá-las, delimitá-las, "comunicarmo-nos a esse respeito. A maravilha de se viver com qualquer coisa que seja é... o quê? É perfeito do jeito que é.

Bem, vocês podem dizer que com as coisas nesse nível de fato não faz diferença, pois são sem dúvida triviais. Mas e quanto aos problemas sérios, como sofrimento e angústia? O que estou falando é que eles não são diferentes. Se alguém querido morre, então a maravilha da vida é ser precisamente só esse sofrimento da perda, ser o que você é. Estar com esse sofrimento do jeito que você está com ele, que é o seu jeito e não o meu. A prática é justamente ter disposição para estar com o que há tal como se é, mesmo que a expressão "ter disposição" não seja muito adequada. A maior parte da vida, conforme a vemos nas histórias que contei, é engraçada, e isso é o máximo que se pode comentar a respeito. Entretanto, não a consideramos engraçada. Pensamos que a outra pessoa deva ser diferente. "Ela deveria ser do jeito que eu idealizo". Quando atingimos o que chamo de "ponto crítico" em nossa vida, não é engraçado — não estou dizendo que seja — mas mesmo assim é o que é. Ainda é perfeito enquanto tal.

Quero agora levantar mais um aspecto: penso que uma prática madura favoreça a capacidade de estar com a vida e na vida, tal como ela é. Isso não significa que você não teça todas as suas pequenas considerações, que você não tenha toda sorte de opiniões, o tempo todo. Você tem sim! A questão não é essa. Porém, essas coisas são encaradas de outro jeito. A questão da prática é fazer avançar o que chamo de ponto-limite, de modo que possamos suportar cada vez mais. No começo só conseguimos agüentar certas coisas desse modo, mas quem sabe, dentro de seis meses, você consiga arcar com um pouco mais. Em um ano, talvez um pouco mais. Em dez anos, muito mais. E assim por diante. Contudo, sempre há um ponto-limite além do qual não conseguimos ultrapassar. Todos têm esse ponto. Enquanto vivermos, teremos algum ponto.

Conforme nossa prática se torna mais sofisticada, começamos a sentir nossas grandes deficiências, nossa imensa crueldade. Vemos as coisas da vida para as quais não temos disposição de cuidar, coisas que não conseguimos aceitar como são, que odiamos, que apenas não conseguimos suportar. Se estivermos praticando por tempo suficiente, o sofrimento terá aparecido. No entanto, o que não conseguimos enxergar é a área que cresce com a prática: área na qual podemos ter compaixão pela vida, só porque ela é como é. A simples maravilha de Elizabeth ser Elizabeth. Não significa que ela possivelmente seria diferente; ela é perfeita como é. Eu também. Vocês. Todo mundo. Essa área cresce, mas existe sempre aquele ponto cego onde não conseguimos enxergar a perfeição, e é nesse ponto que devemos aplicar nossa prática. Se vocês estão praticando o sentar há pouco tempo, o limite está aqui perto, tudo bem. Por que deveria estar em algum outro lugar? Ao longo de toda uma vida, o ponto-limite apenas se desloca e nunca deixa de acontecer. Sempre existirá. É isso que estamos fazendo aqui. Sentados como estamos, simplesmente deixando que aconteça em nós aquilo que está acontecendo, permanecer e morrer. Deixar ser, ficar, morrer. Porém, quando chegarmos ao ponto-limite, não nos recordaremos de nada disso! Porque nesse ponto as coisas ficam difíceis. A prática não é fácil.

As pequenas coisas da vida não me incomodam em especial. Eu gosto de todas as coisinhas que acontecem o tempo todo. E engraçado! Gosto das minhas discussõezinhas com minha filha: "Mãe, depois de tanto tempo você não consegue usar o cinto de segurança!". "É, não consigo." É isso que é divertido, estar com as outras pessoas. Mas e quanto ao ponto-limite? E aquele no qual está a prática. Entender isso, trabalhar com ele, e ainda lembrar que a maior parte do tempo não estamos dispostos a trabalhar com ele, tudo isso é prática. Não estamos tentando nos tornar alguma espécie de santo, apenas pessoas reais, com todas as coisinhas acontecendo, permitindo que, para os outros, elas também aconteçam. Quando não pudermos fazer isso, saberemos que um sinal foi dado: hora de praticar. Para mim, isso aconteceu na semana passada. Não foi fácil. Apesar disso, atravessei o ponto-limite e agora o que espera é o próximo. Ele estará vindo logo. E será a minha prática.

Conforme nos tornamos mais sensíveis à nossa vida e ao que ela de fato é, não podemos fugir. Podemos tentar durante um certo tempo, e a maioria tentará tanto como nós, mas não poderemos ficar correndo indefinidamente. Se estivermos praticando o sentar por algum tempo, fica cada vez mais difícil fugir. Desta maneira, quero que vocês considerem sua prática de sentar, apreciem sua vida e apreciem uns aos outros. E o que significa tudo isso. Nada fantástico e exuberante. Tomem consciência de seus pontos-limites. Existem em todos nós. Vocês podem dar-lhes as costas e recusar-se a vê-los. Todavia se o fizerem, não crescerão, e a vida à sua volta também não. E provável que você não consiga evitar fugir mais do que por limitados períodos de tempo.





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