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Peregrinar no deserto Peregrinar no deserto em busca da Terra Prometida: eis o que a nossa vida é. A disciplina do sesshin intensifica essa impressão da peregrinação; o sesshin parece que nos confunde, desestimula, decepciona. Podemos ter lido livros que retratam uma bela imagem da Terra Prometida, do que é chegar à percepção consciente da natureza buda, da iluminação etc. No entanto, percebemo-nos peregrinando. O máximo que podemos fazer é simplesmente ser a própria peregrinação. Ser a peregrinação significa ser cada momento do sesshin, seja ele qual for. Quando sobre-vivemos, tendo atravessado a aridez e a sede, chegamos talvez a uma descoberta: peregrinar pelo deserto é a Terra Prometida. É muito duro compreendermos isso. Conhecemos nossa dor e nosso sofrimento. Queremos que o sofrimento acabe. Queremos chegar na Terra Prometida, onde o sofrimento não existe mais.Em seu trabalho com moribundos e pessoas gravemente perturbadas, Stephen Levine* observa que a verdadeira cura acontece quando entramos com tanta profundidade em nossa dor que não a vemos mais como a nossa dor apenas, e sim como a dor de todo mundo. É imensamente mobilizador e solidarizante descobrir que minha dor não é exclusiva. A prática ajuda-nos a ver que, o universo inteiro está na dor. Pode-se observar o mesmo aspecto quanto aos relacionamentos. Nossa tendência é pensar neles como eventos discretos no tempo: começam, duram algum tempo e terminam. No entanto, sempre estamos em relacionamentos, sempre vinculados a alguém. Numa certa altura da história, uma relação pode se manifestar de uma forma particular, mas antes dessa manifestação essa ligação já existia e, depois que ela -terminar-, continuará. Continuamos em alguma espécie de relação mesmo com aqueles que já faleceram. Antigos amigos, amores e parentes continuam em nossa vida e são parte de quem somos. Pode ser necessário que a manifestação visível termine, mas a relação real nunca acaba. Não estamos realmente separados uns dos outros. Nossas vidas estão reunidas; existe só uma dor, só um contentamento, e é o nosso. Assim que encararmos a nossa própria dor e estivermos dispostos a vivenciá-la, em vez de a disfarçarmos, evitarmos ou racionalizarmos, ocorrerá um deslocamento interior quanto à nossa visão de nós, de nossa vida e dos outros. Como observa Stephen Levine, cada momento em que perseveramos com as nossas dificuldades e sofrimentos é uma pequena vitória. Ao permanecermos com a nossa dor e com a nossa irritabilidade, abrimos a nossa relação para a vida e para os outros. O processo é lento; nosso padrão não se reverte da noite para o dia. Lutamos numa batalha incessante entre o que queremos e o que é, aquilo que o universo nos apresenta. No sesshin, nós vemos essa batalha conjunta com mais nitidez. Vemos as nossas fantasias, nossos esforços para entender as coisas e para defender nossas teorias; vemos nossas esperanças de encontrar uma porta de acesso para a Terra Prometida, onde toda luta e todo sofrimento cessem de vez. Queremos, queremos, queremos uma certa pessoa, um certo relacionamento, um certo trabalho. Uma vez que nenhum querer desses pode algum dia ser completamente resolvido, temos uma tensão e uma ansiedade incessantes que acompanham de perto nossos quereres. São gêmeos inseparáveis. Às vezes, é útil acentuar a ansiedade, chegando num ponto em que simplesmente não a consigamos mais tolerar. Então, podemos estar dispostos a recuar e, a distância de um passo atrás, ter uma outra maneira de olhar para o que está acontecendo. Em 'vez de nos preocuparmos interminavelmente com o que está errado lá fora - com o parceiro, o trabalho, ou outra coisa -, podemos começar a mudar nossa relação com o que é. Aprendemos a ser aquilo que somos neste momento, neste relacionamento ou naquele aspecto aborrecido de nosso trabalho. Começamos a enxergar a ligação entre nós e os outros. Vemos que a nossa dor também é a deles, e que a dor deles também é a nossa. Por exemplo, uma médica que não tem uma relação com seus pacientes irá vê-los simplesmente como um problema atrás do outro, problemas a serem esquecidos assim que saírem de seu consultório. O médico que percebe que seu próprio desconforto e aborrecimento são o desconforto e o aborrecimento de seus pacientes terá apoio desse senso de vinculação e irá trabalhar com mais precisão e eficiência. O tédio cotidiano de nossas vidas é o deserto pelo qual peregrinamos em busca da Terra Prometida. Nossa relações, nosso trabalho e todas as pequenas tarefas necessárias que não queremos, realizar são todos presentes. Temos de escovar os dentes, temos de comprar comida, temos de lavar a roupa, temos de fazer o canhoto do talão de cheques. Esse tédio - essa peregrinação no deserto - é na realidade a face de Deus. Nossas dificuldades, o parceiro que nos leva à loucura, o relatório que não queremos escrever - essas coisas são a Terra Prometida.Somos especialistas na produção de pensamentos acerca de nossa vida. Não somos especialistas, no entanto, em apenas sermos nossas vidas, nossa dor e prazer, nossas derrotas e vitórias. Até mesmo a felicidade pode ser dolorosa porque sabemos que podemos perdê-la. A vida é muito curta. Os momentos que agora vivenciamos rapidamente se vão para sempre. Nunca mais os veremos. Todo dia que passa leva consigo milhares e milhares de momentos desses. De que maneira iremos passar o pequeno intervalo que nos resta? Iremos gastá-lo rodopiando em tomo de nossos pensamentos a respeito de como a vida é terrível? Esses pensamentos não são nem sequer reais. Teremos pensamentos assim, mas podemos saber que os estamos pensando em vez de nos emaranharmos neles. Quando conseguirmos sentar e atentar para nossas sensações corporais e pensamentos que são a dor, o sofrimento se transformará no universal, que é o contentamento. A finalidade de nossa vida, como Stephen Levine diz, é cumprir aquilo para que nascemos, sararmos na vida. Isso significa sarar a partir da dor de nosso "eu quero" pessoal, separado e constrito, e tornarmo-nos abertura. A finalidade de nossa vida é sermos a própria abertura, que é contentamento. Contentamento inclui sofrimento, felicidade, tudo o que é. Esse tipo de cura é do que a nossa vida se compõe. Quando curo a minha dor, sem nenhum pensamento a respeito, eu também curo a sua. A prática consiste em descobrir que a minha dor é a nossa dor. Sendo assim, não conseguimos encerrar nossos relacionamentos. Podemos ir embora, divorciar-nos, mas não podemos acabar com eles. Quando achamos que podemos encerrá-los, todos sofrem. Não conseguimos terminar com a relação com nossos filhos; não podemos nem sequer encerrar uma relação com quem não apreciamos. Esse término iria exigir que fôssemos algo que não somos e nunca seremos, ou seja, pessoas separadas das demais. Quando tentamos ser separados, o sofrimento recomeça por toda parte. Como diz Stephen Levine, nascemos para curar-nos na vida. Isso quer dizer que nos curamos na nossa dor e que nos curamos na dor do mundo. Para cada um de nós, essa cura acontece de um modo diferente, porém o objetivo básico é o mesmo. Precisamos ouvir essa verdade e lembrá-la várias vezes seguidas, milhares de vezes. Para realizar esse trabalho, temos de ir contra a corrente de nossa sociedade, que nos ensina a ir em busca do número um: cada qual para si. Na prática diária, em sesshins dos quais participamos, na manutenção do contato quando moramos longe, temos ajuda para fazermos o trabalho, esse trabalho de curar-nos na vida, e chegarmos a ver que, até mesmo agora, já alcançamos a Terra Prometida.____________________* Stephen Levine, Healing finto life and death, Nova York: Doubleday, 1987. |