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Contentamento Com freqüência sou acusada de enfatizar as dificuldades da prática. Essa é uma acusação verdadeira. Acreditem-me, as dificuldades estão aí. Se não as reconhecemos, nem o motivo de aparecerem nos é claro, nossa tendência é nos enganar. Ainda assim, a realidade última — não só em nossa prática sentada, mas também em nossas vidas — é o contentamento. Com contentamento não estou querendo dizer felicidade; as duas vivências não são a mesma. Felicidade tem um oposto; contentamento não. Enquanto buscamos a felicidade, iremos ser infelizes, porque estamos oscilando de um pólo a outro. De tempos em tempos, vivenciamos o contentamento. Pode ser por acaso, ou no decurso de nossa prática sentada, ou em outras esferas de nossa vida. Depois de um sesshin, podemos vivenciar o contentamento por mais algum tempo. Com o passar dos anos de prática, nossa vivência do contentamento aprofunda-se — quer dizer, se entendermos a prática e estivermos dispostos a realizá-la. A maioria das pessoas não está disposta dessa maneira. O contentamento não é algo que tenhamos de encontrar. Contentamento é o que somos se não estivermos preocupados com alguma outra coisa. Quando tentamos encontrar o contentamento, estamos simplesmente acrescentando um pensamento — e, aliás, algo nada proveitoso — ao fato básico do que somos. Não temos necessidade de sair em busca do contentamento. Mas sem dúvida precisamos fazer alguma coisa. A questão é: o quê? Nossas vidas não nos oferecem contentamento e buscamos sem cessar uma solução nesse sentido. Nossas vidas são basicamente percepção. Com esse termo, quero dizer tudo aquilo que os órgãos dos sentidos registram. Vemos, ouvimos, tocamos, sentimos odores etc. Isso é a realidade da vida. No entanto, quase o tempo todo substituímos a percepção por alguma outra atividade; revestimo-la com alguma outra coisa que chamarei de avaliação. Com avaliação não estou querendo dizer uma análise objetiva e fria, como por exemplo quando examinamos um aposento desorganizado e consideramos ou avaliamos como organizá-lo e limpá-lo. A avaliação a que me refiro é centrada no ego: "Será que este próximo episódio de minha vida irá trazer-me algo de que gosto, ou não? Será que vai me magoar, ou não? Será agradável ou desagradável? Irá tornar-me importante ou banal? Irá trazer-me vantagens materiais?". Nossa natureza é avaliar as coisas desse jeito. Quanto mais nos entregarmos a avaliações dessa natureza, menos contentamento haverá em nossa vida. É notável a rapidez com que nos instalamos na freqüência de avaliação. Talvez venhamos funcionando bem, bem mesmo — e então, de repente, alguém critica o que estamos fazendo. Numa fração de segundo, saltamos para o reino de nossos pensamentos. Temos uma disponibilidade espantosa para nos afundar nesse peculiar espaço de julgamentos dos outros ou de nós. Muito drama vai nisso e gostamos dele, mais ainda do que temos consciência. A menos que esse drama se tome punitivo e prolongado, entramos nele de bom grado porque, como seres humanos, temos uma predileção essencial pelos dramas. De uma perspectiva comum, permanecer num mundo de puras percepções é bastante entediante. Vamos supor que saímos de férias por uma semana e que agora estamos de volta. Talvez tenhamos nos divertido ou assim julguemos. Quando voltamos ao escritório, a caixa de trabalhos por fazer está lotada e, espalhados por toda a mesa, estão recadinhos "enquanto você esteve ausente". Quando as pessoas nos telefonam, no serviço, isso em geral quer dizer que elas querem alguma coisa. Talvez o serviço que passamos para outra pessoa executar tenha sido esquecido. Na hora começamos a avaliar a situação: "Quem fez essa bagunça?"; "Quem fez corpo mole?" ; "Por que é que ela está telefonando? Aposto que é a mesma velha história de sempre"; "Mas a responsabilidade é deles afinal. Por que estão me ligando?". Da mesma maneira, no final de um sesshin podemos vivenciar um fluxo de vida em contentamento. Depois nos espantamos de ele se dispersar. Embora não tenha se dispersado, alguma coisa aconteceu: uma nuvem tolda a clareza. |