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O som de um pombo e uma voz crítica
Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro"Nada Especial"


Recebi recentemente um telefonema de uma pessoa da costa leste, que me disse: "Quando me sentei na prática esta manhã, estava tudo sossegado e de repente houve só um som de pombo. Não houve nenhum pombo, não houve eu, era só isto". A pessoa então aguardou meu comentário. Eu respondi: "Que maravilha! Mas suponha que em vez de ouvir o pombo você ouve uma voz crítica encontrando defeitos em você. Qual é a diferença entre o som do pombo e o som de uma voz crítica?". Imagine que estamos sentados na quietude do início da manhã e de repente pela janela aberta entra só aquele arrulhar do pombo. Esse pode ser um momento encantador. (Costumamos pensar, aliás, que é isso que é o zen.) Porém, vamos supor que nosso chefe irrompe sala adentro berrando: "Eu já devia ter o seu relatório em minha mesa desde ontem. Onde está?", O que é igual nestes dois sons?

ALUNO: Os dois são só ouvir.

JOKO: Sim, os dois são só ouvir. Seja o que for que nos aconteça o dia inteiro, isso é simplesmente input recebido por um destesórgãos dos sentidos: só ouvir, só ver, só sentir o odor, só tocar, só sentir o gosto. Já dissemos o que é igual a respeito dos dois sons. Agora, qual é a diferença? Ou, existe uma diferença?

ALUNO: Gostamos de um e não gostamos do outro.

JOKO: Por que isso é verdade? Afinal de contas, ambos são só sons. Por que não gostamos da voz crítica tanto quanto gostamos do arrulhar do pombo?

ALUNA: Nós não ouvimos simplesmente a voz. Nós atrelamos uma opinião ao que ouvimos.

JOKO: Certo. Temos uma opinião a respeito dessa crítica — pensamentos fortes e reações intensas, para ser franca. Numa aula anterior, contei uma história a respeito do homem que saltou do edifício de dez andares e, ao passar pelo quinto, ainda berrava "Até aqui, tudo bem!". Ele estava esperando durar para sempre. E assim que vivemos: na esperança de evitar a voz crítica, de desafiar a gravidade e permanecer para sempre.

Alguns parecem de fato desafiar a gravidade. Uma pessoa que me deu alegria ao longo de muitos anos foi Greg Louganis, provavelmente o maior mergulhador que jamais existiu. Um mergulhador extraordinário como Louganis tem força para atingir uma altura notável quando se atira, dando assim mais espaço para o movimento de descida dentro d'água. A altura fornece-lhe espaço de movimentação. Um outro atleta memorável que parece desafiar a gravidade é o jogador de basquete Michael Jordan, que às vezes parece ficar suspenso no ar. Surpreendente. E nos maravilhamos com Baryshnikov, esse grande bailarino. Todos eles chegam a uma altura assombrosa, mas em algum momento todos vêm para baixo. Como nos ensina o bom senso, a gravidade sempre prevalece.

Mas nós não vivemos de acordo com o bom senso. Não gostamos da voz crítica; não gostamos de cair. Não gostamos nada dessas coisas. No entanto, gostando ou não, a vida consiste em muitas coisas desagradáveis que nos atingem. É raro a vida nos dar só aquilo que queremos. Sendo assim, passamos o tempo todo tentando fazer aquilo que nenhum ser humano consegue. Tentamos, de alguma maneira, permanecer aqui para que nunca cheguemos no fundo, nunca nos esborrachemos no chão. Tentamos evitar aquilo que não pode ser evitado.

Não existe como viver uma vida humana e evitar as coisas desagradáveis que nos atingem. Existe crítica, dor, ser ferido, ficar doente, decepcionar-se. Nossa pequena mente diz: "Você não pode confiar na vida. Melhor providenciar algum seguro". Fazemos o melhor que podemos para evitar todo e qualquer contato com a dolorosa realidade.

Quando nos sentamos para o zazen, nossa mente está incessantemente fantasiando, tentando "permanecer para sempre". Não podemos fazê-lo. Contudo, na qualidade de seres humanos, persistimos na tentativa de fazer aquilo que não pode ser feito: evitar toda espécie de dor. "Vou planejar. Vou descobrir o melhor caminho. Vou descobrir o que fazer para conseguir sobreviver e ficar a salvo." Tentamos transformar a realidade como nosso pensamento para que ela não consiga se aproximar de nós, jamais.

Há aquela história que lhes contei antes a respeito de sentar-me num zendo perto de uma moça que ficava se mexendo o tempo todo. Ela estava com dificuldades com o tornozelo e não parava. Ela o estendia, punha para baixo, torcia-o para trás, dobrava. Estava mexendo o tempo todo com o tornozelo. O monitor inclinou-se e sussurou no ouvido dela: "Você deve ficar imóvel. Deve parar de mexer o tornozelo". Ela disse: "Mas dói" . Ele respondeu: "Bem, existem muitos tornozelos doendo nessa sala". Ela falou: "Mas é o meu tornozelo!". Quando atravessamos certas espécies de dor, temos uma simpatia por outra pessoa que passa pela mesma dor. Mas quando alguém sente dor não é o mesmo que quando eu sinto dor. Quando alguém diz: "Sinto muito por você", a verdade é que não sente não, não do jeito que sente para si. Temos um objetivo primário: queremos manter a dor tão afastada de nós que nem cheguemos a saber dela. Queremos permanecer para sempre em nossas nuvens de pensamento a respeito de nossas providências e esquemas de nosso auto-aperfeiçoamento.

Nada há de errado com nosso auto-aperfeiçoamento em si; por exemplo, podemos decidir que não vamos mais comer por-caria, ou que vamos fazer mais exercícios físicos, ou dormir melhor. Tudo bem. O que há de errado é que a esses esforçosacrescentamos a esperança de que esse auto-aperfeiçoamento irá servir de vacina contra todas as adversidades — a voz crítica, adecepção, a enfermidade, o envelhecimento. Quando Michael Jordan estiver com 70 anos, provavelmente não estará mais flutuando em torno das cestas de basquete como é capaz de fazer agora. Da mesma forma com os relacionamentos e casamentos: que expectativas despejamos nesses vínculos?

ALUNA: Esperamos que garantam a nossa felicidade.

JOKO: Certo. É proveitoso trabalhar para se ter um bom casamento. Mas a esse trabalho acrescentamos a esperança de que nosso companheiro ajude-nos a desafiar a gravidade, detendo a nossa queda.

Enquanto acharmos que existe uma diferença entre o som de um pombo e o de uma voz crítica, iremos nos engalfinhar com a vida. Se não queremos que essa voz crítica exista em nossa vida e se não tivermos trabalhado com a nossa reação a ela, iremos nos engalfinhar. E a que se refere essa luta? Todos nós estamos nela.

ALUNO: Essa luta acontece por causa da diferença entre o que está realmente acontecendo e o que está em nossa mente.

JOKO: Certo. Com sua peculiar sutileza, nossa mente sempre está acrescentando: "Esta situação é uma coisa de que gosto/nãogosto". Formulamos opiniões.

Quando apenas ouvimos, não existem opiniões. Quando o som atinge os nossos tímpanos, não existe opinião, só audição. O esforço que se faz na prática é justamente sobre esse aspecto. O dia inteiro informações sensoriais estão nos alcançando. Mas, do ponto de vista humano, apenas parte delas é aceitável. Será que isso quer dizer que se você acariciar com delicadeza a minha mão ou espetar uma agulha com força nela eu vou ter que gostar igualmente das duas coisas? Não, algo terá a minha preferência. Todos nós sabemos que preferimos as sensações agradáveis. (Particularmente eu detesto quando algum técnico de laboratório espeta uma agulha na ponta do meu dedo para retirar uma amostra de sangue.) Não há nada errado com preferências em si; é a emoção que acrescentamos a elas que nos coloca em apuros. Em razão de nossas emoções, transformamos preferências em exigências. A prática ajuda-nos a reverter esse processo, a desfazer as exigências, fazendo com que voltem a ser simples preferências, sem peso emocional. Por exemplo, se planejamos um piquenique, uma preferência é: "Seria melhor que hoje não chovesse". Porém, se ficamos muito contrariados porque chove, essa preferência já se tornou uma exigência: "Preparei toda essa comida, tive toda essa trabalheira — e agora faço o que com tudo isso? Mas que droga de vida!"

Quando nos sentamos para praticar, vamos consolidando uma visão cada vez mais objetiva das criações mentais por meio das quais tentamos nos proteger para conseguirmos "permanecer para sempre". Aprendemos a simplesmente observar as criações mentais e a retornar ao vivenciar aberto do input sensorial.Sentar é uma iniciativa simples.

Se formos honestos quando nos sentarmos para praticar, iremos descobrir que não queremos ouvir nosso corpo. Queremos pensar. Queremos pensar acerca de todas aquelas idéias que nos dão esperança.

Assim, o primeiro passo é ser honesto. Isso quer dizer ver os nossos pensamentos tanto quanto nos for possível e ouvir nosso corpo. Enquanto nossa esperança não se esfumaçar, nós não devotaremos muito tempo a ouvir o nosso corpo. Sem dúvida nós não queremos ouvir. Ao longo de anos de prática sentada, contudo, essa indisponibilidade aos poucos se transforma. Sentar não diz respeito a ficar em estado de graça ou sentir-se feliz. Sentar trata de enfim enxergar que não existe, na realidade, uma diferença entre ouvir um pombo e ouvir alguém a nos criticar; a "diferença" só existe em nossa mente. Esse esforço é o queconstitui a prática. Não é sentar-se em estado de graça durante algum tempo, todo dia de manhã. Diz respeito a encararmosnossa vida de maneira direta, para vermos o que estamos na verdade fazendo. Em geral, o que estamos de fato fazendo é tentar manipular nossa vida ou a vida dos outros. Simplesmente,então, observamos que estamos tentando manipular as pessoas ou os acontecimentos para que "eu" essa ilusão construída por pensamentos autocentrados — não possa ser ferido.

Honestidade: reconhecer as minhas opiniões a respeito da prática sentada, de mim mesma, da pessoa sentada perto de mim. Honestidade: "Realmente sou bem irritável, bem chata". Essa honestidade nos permite ouvir mais e mais nosso corpo — por dois segundos, vinte segundos, ou ainda mais tempo. Quanto menos esperança tivermos de poder consertar as coisas pelo pensamento, mais tempo seremos capazes de ficar ouvindo o que é real. E por fim podemos começar a nos dar conta de que não há solução. Só os egos devem ter soluções, mas não existem soluções. Em algum momento, podemos até mesmo enxergar que, se não existe solução, não existe problema.

Aulas como esta não são palavras para serem ponderadas; ficamos com algo do que aconteceu, jogamos fora, depois, e então voltamos para a prática simples e direta. Será que um dia chegaremos a ser maravilhosos e perfeitos? Não. Não iremos chegar em parte alguma. Não há parte alguma onde chegar. Já chegamos neste lugar onde não existe diferença entre o som de um pombo e o de uma voz crítica. Nossa tarefa é reconhecer que já chegamos.




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