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O passarinho T’ô pensava às vezes que os céus a tivessem criado para tocar flauta. De acordo com as impressões que sentia, inventava a cada dia novas melodias com as quais se comunicava com cada criatura. Um belo dia, tocou flauta a fim de responder a um estranho passarinho do qual não tinha nenhuma idéia do nome nem da espécie. Embora não soubesse que tipo de passarinho era, pôde vê-lo claramente no seu espírito: tinha uma cauda comprida, penas douradas e, na sua cabeça, um tufo branco igual a uma coroa. Seus olhos brilhantes e rápidos iam sem cessar da direita para a esquerda. Esse passarinho cantou por um momento e parou. T’ô ergueu a flauta e tocou para continuar o diálogo. Quando parou de tocar, o passarinho começou a cantar. T’ô soube então que era o seu modo de responder. Ele disse o quanto tinha ficado surpreso quando T’ô lhe tinha falado com a flauta e como tinha ficado feliz em cantar para ela. Então T’ô tocou de novo, falando ao passarinho dourado a respeito dela e até mesmo imitando seu canto com a flauta. Quando parou e colocou a flauta no colo, T’ô deu uma boa risada. Seu riso ressoou nos bosques como a batida rápida das asas de grandes insetos coloridos. O passarinho veio cantar e ouvir a flauta de T’ô durante nove dias seguidos. Depois voou e nunca mais voltou. T’ô continuou a tocar flauta, mas seu coração estava cheio de magoa. Muitas vezes, começava a tocar notas suaves e espaçadas como se quisesse compartilhar sua tristeza com todas as criaturinhas que vivem sob a terra. Então os sons da flauta se elevavam e se misturavam nas multidões de sons que provinham das folhas e dos galhos que a cercavam. Em breve T’ô esqueceu que estava tocando flauta. Teve a impressão que era uma minúscula criatura vivendo aí nos bosques com os outros milhares de criaturas vivas. Os sons da flauta eram seus próprios gritos que se mesclavam aos outros. T’ô sentiu que ela era a floresta, as árvores, o musgo das encostas, a grama, as folhas e até mesmo a luz que dançava sobre as jovens e macias folhas. Sua dor e sua tristeza desapareciam porque ela não mais era T’ô apenas. Nessas horas, as lágrimas corriam para valer dos seus olhos cegos e ela se sentia melhor, mais aliviada. Suas lágrimas eram tão quentes quanto os raios de sol na primavera; puras e frescas como a água cristalina do riacho que serpenteava ao pé da colina onde ficava sua casa. Naquela manhã, depois de ter colocado a flauta no colo e enxugado as lágrimas com um canto de sua camisa bá-ba, T’ô sorriu para si mesma. Durante meses, produtos químicos tinham conseguido despojar as árvores de suas folhas, mas, no último inverno, dia após dia, interminavelmente, havia tido fortes aguaceiros. A água da chuva havia lavado o produto químico e novos brotos já começavam a aparecer. T’ô sabia disso. Ela não necessitava de olhos para sentir a presença das folhinhas. Os insetos e os vermes, sob a terra, faziam ruídos, arrastando-se ou voando, cheios de vida. A floresta tinha reencontrado sua natural vontade de viver, assim como T’ô a tinha reencontrado. Durante um mês inteiro, nem um dia se passou sem que T’ô não tivesse ido até a floresta. |