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Sem trocas Qual é a diferença entre uma vida de manipulações e uma sem manipulações? Como alunos do zen é provável que não pensemos em nós como pessoas manipuladoras. Claro que não estamos seqüestrando aviões. Mas, num sentido mais sutil, somos todos manipuladores e realmente não queremos ser assim. Consideremos duas maneiras pelas quais podem se desenrolar as ações em nossa vida. Por um lado, a ação pode ser ditada por nossa "mente falsa": a mente de opiniões, fantasias, desejos, a pequena mente que encontramos quando sentamos. Por exemplo, por alguma razão não apreciamos determinada pessoa e, por isso, tratamo-la de modo preconceituoso. Por outro lado, nossa ação pode advir do input sensorial que nossa vida recebe. Imaginemos que ao ir de um lado para o outro na cozinha deixo cair um cacho de uvas no chão. Observo, curvo-me, colho. Essa ação foi ditada pelo input sensorial e não é manipuladora. Todavia, vamos supor que tenho um conceito: a cozinha deve ser limpa. Por causa dele, procuro meios para limpá-la. Bem, está certo tê-lo, está ótimo que a cozinha fique limpa. No entanto, quando o conceito não é visto como tal; quando, por exemplo, vivemos numa família na qual ter uma casa limpa domina a vida doméstica, temos uma ação que foi produzida por um conceito, e não brotou da percepção de uma necessidade. Por exemplo, o nível de limpeza da cozinha será provavelmente ditado pelo fato de ter ou não crianças pequenas na casa. Se você tem três ou quatro filhos com menos de seis anos, o chão não será imaculado, a menos que você seja o tipo de mãe que pensa que uma cozinha reluzente é mais importante do que a família. Alguns aqui cresceram em famílias iguais a essa. Nesses casos, algo está indo para trás. O conceito não é visto apenas como um conceito, mas como a Verdade. "As cozinhas devem ser limpas. É errado deixar as cozinhas sujas." Para corresponder aos conceitos acabamos com a família, com as nações, com tudo. Todas as guerras baseiam-se neles, em alguma ideologia que uma certa nação afirma ser a Verdade. A mente falsa é ditatorial, sempre querendo forçar o mundo a cumprir o conceito, em vez de abrir-se para a necessidade percebida Por isso, quando a ação é regressiva, torna-se manipuladora. Precisamos de conceitos para poder funcionar; eles não são o problema em si. O problema aparece quando acreditamos que eles são a Verdade. Pensar que uma cozinha precisa ser limpa não é á Verdade: é um conceito. A mente falsa lida com trocas, não com a experiência. O que isso quer dizer? Nosso sofrimento está fundamentado numa falsa noção do eu, num eu composto por conceitos. Se pensarmos que na realidade ele existe, e acreditarmos que seus conceitos são a Verdade, então começamos a sentir a necessidade de protegê-lo, sentimos que é nosso dever satisfazer seus desejos. Se pensamos que uma cozinha precisa ficar limpa, então nos esforçamos para cumprir esse mandamento, mesmo que represente importunar e obrigar os outros a conseguirmos atingir nosso alvo. O "eu" é apenas uma pessoa que acredita que seus conceitos são a Verdade, que está obcecada com a execução de toda e qualquer medida capaz de proteger o eu com conceitos que promovam seu prazer e conforto. Quando vivemos dessa forma, duas palavras governam o universo: eu quero. Se olharmos de fato, veremos que o eu quero está governando nossa vida. Pode ser que desejemos aprovação, sucesso, iluminação, sossego, estado de saúde razoável, excitações, amor. "Eu quero, eu quero, eu quero, eu quero." Sempre queremos porque estamos tentando tomar conta desse conceito que é, a nosso ver, o "eu". Queremos fazer com que a vida se encaixe em nossos conceitos. Por exemplo, se desejarmos dar a impressão de sermos altruístas, organizaremos tudo para que essa seja a impressão que iremos causar. (O que talvez não tenha nada que ver com ser altruísta.) Nenhum ato, nenhuma ação, parte alguma de nosso comportamento está livre da expectativa de uma troca. Quando executamos uma ação, esperamos uma retribuição. Em troca do que fazemos, esperamos um retorno. Nas trocas comuns, se você vende bananas e dou-lhe dinheiro, terei bananas e é uma troca legítima. Mas o jogo em que entramos quando esperamos algo em troca de nossos atos não é bem este. Por exemplo, se eu dou um presente de tempo, dinheiro ou esforço o que espero em troca? O que vocês esperam? Talvez eu sinta que tenho direito a um pouco de gratidão. Se dou alguma coisa, espero em troca uma outra. Esperamos que aquela pessoa corresponda a nossos conceitos pessoais. Quando damos um presente, estamos sendo nobres, certo? Estamos dando alguma coisa, será que ele não poderia ao menos notar? Esperamos algo em troca. É uma barganha. Transformamos a vida "do lado de lá" em algo que participa de uma barganha. Se trabalhamos para uma organização, esperamos uma troca por isso. Se fizermos algo por ela, onde está a outra metade do jogo, onde está a troca? Se entramos numa organização, esperamos em troca reconhecimento, importância, tratamento especial. Se tivermos paciência diante de uma situação difícil e segurarmos a língua ("Sabe, qualquer um iria explodir, mas eu sou mesmo muito paciente"), o que esperamos em tudo? Alguém deverá notar como tenho sido paciente! Estamos sempre procurando uma retribuição; até poderíamos pôr um sinal de que é dinheiro. Ou, se somos compreensivos perdoamos ("Afinal de contas, todo mundo sabe como ela é difícil"), o que é que esperamos? Se nos sacrificamos, o que deveríamos receber em troca? Muitos dos jogos entre pais e filhos se dão nessa área. "Fiz tudo por você, e você é tão ingrato!" Essa é a "troca": a mentalidade manipuladora, uma forma sutil de seqüestro. Raramente temos aquilo que esperamos. Se praticarmos por tempo suficiente, chegaremos a ver que toda expectativa de retribuição é um erro. O mundo não consiste em objetos "do lado de lá", cujo propósito seja corresponder a meus conceitos. Com o tempo, vemos com mais clareza que quase tudo que fazemos tem uma expectativa de troca por trás — a percepção mais dolorosa. Quando as expectativas não se cumprem — quando não conseguimos aquilo que desejamos — temos o ponto no qual a prática pode começar. Trungpa Rinpoche escreveu que: "As decepções são a melhor carruagem para usarmos no caminho do Dharma". A decepção é nossa melhor amiga, nossa guia infalível, mas é claro que ninguém gosta de amigos assim. Ao recusarmo-nos a trabalhar nossa decepção, quebramos os Preceitos: em vez de vivenciá-la, recorremos à raiva, à cobiça, à intriga, à crítica. Contudo, proveitoso é justamente o momento em que podemos ser a decepção e, caso não estejamos dispostos a tanto, pelo menos deveríamos notar que não o estamos. O momento de uma decepção é um presente de vida incomparável que recebemos muitas vezes por dia, se estivermos atentos. Esse presente sempre acontece na vida das pessoas; é aquele momento em que sentimos que: "Não foi bem assim que planejei". Uma vez que a vida diária se movimenta com rapidez, nem sempre temos a clareza de perceber o que está se passando. Mas quando sentamos na calma podemos observar e vivenciar nossa decepção. Sentar todo dia é nosso pão com manteiga, o conteúdo básico do dharma. Sem ele, é fácil nos confundirmos. Depois de um sesshin curto como o que tivemos no último final de semana, é gratificante para mim ver como as pessoas ficam mais suaves e abertas. O sesshin é apenas a recusa de corresponder a nossas expectativas! Do começo ao fim, ele tem a finalidade de nos frustrar! É inevitável que nos cause alguma dor, mental ou física; é uma experiência prolongada de "não foi bem assim que planejei!". Quando nos sentamos com isso, sempre nos resta um resíduo de troca. Em certos casos é muito evidente. Porém as pessoas que melhor aproveitam o sesshin são em geral as que não participaram de muitos. Os veteranos podem evitar os sesshins mesmo estando neles! Sabem como evitar a dor nas pernas para que ela não fique muito forte; sabem muitos truques sutis para evitar a coisa toda. Como os novatos são menos habilidosos, os sesshins os atingem em cheio e, muitas vezes, acontecem mudanças evidentes. Quanto mais cientes de nossas expectativas, mais veremos nossa ânsia de manipular a vida em vez de vivê-la tal como ela é. Os alunos, cuja prática está amadurecendo, não ficam com raiva tantas vezes porque vêem suas expectativas, seus desejos, antes de produzirem raiva. Mas se já atingiram no estágio da raiva, essa é a prática. Nosso alerta para entrarmos em prática, nosso "sinal vermelho", é o momento em que ficamos aborrecidos, decepcionados. "Não foi bem assim que planejei!" Alguma expectativa não se realizou e sentimos a irritabilidade, a frustração e o desejo de que tudo fosse de outro jeito. O "eu quero" foi frustrado. Este ponto justamente é o "portão sem portão", porque o único meio de transformar o "eu quero" em "eu sou" e vivenciando as próprias decepções e frustrações. A ação advinda da experiência — colher o cacho de uva do chão — é a ação que decorre de uma necessidade percebida; não é manipuladora. A ação que vem da mente falsa das expectativas, do "eu quero", é tirânica, é a mente de um seqüestrador. Quando acreditamos em nossos pensamentos e conceitos a respeito de outrem ou de acontecimentos tornamo-nos manipuladores e nossa vida tem pouca compaixão. A vida da compaixão não é manipuladora, porque não tem trocas. |