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Compromisso
Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro"Sempre Zen"

Havia, certa vez, um rapaz que estava perdidamente apaixonado por uma moça linda, mas malvada. Ela, queria que ele não tivesse outros pensamentos senão para ela, por isso disse-lhe: "A única forma de eu me comprometer com você é você decepar a cabeça de sua mãe e trazê-la para mim".

O rapaz amava a mãe, mas estava tão alucinado com a idéia de sua paixão pela moça que mal podia aguardar para cumprir o seu pedido. Então, correu até sua casa e decepou a cabeça de sua mãe. Agarrou-a pelos cabelos e correu noite adentro, porque não conseguia esperar o momento de estar de novo com sua amada. Com a cabeça da mãe na mão , corria de volta pela rua o mais rápido possível, quando a cabeça lhe falou: "Por favor, meu filho, não se apresse, você pode cair e se machucar".

Essa história fala do amor materno imorredouro e de seu comprometimento inabalável. Comprometimento e verdadeiro amor são irmãos gêmeos. A palavra "comprometer" vem do latim committere, que significa pôr junto, unir, confiar, conectar. Significa entregar uma pessoa ou uma coisa aos cuidados de alguém.

Para entender o comprometimento, devemos intuir cada vez mais a natureza da realidade, não só com a cabeça, mas também com a barriga: o que somos e o que são todas as coisas. Podemos sentir que já estamos comprometidos com um trabalho ou uma pessoa em particular, mas o verdadeiro comprometimento é algo mais profundo. Nosso comprometimento ficará desprovido de força e de resolução a menos que nos fiquem claros seus votos básicos, que dizem respeito a um comprometer-se com todos os seres sensíveis e não apenas com alguns em especial. Em nossas noções habituais de comprometimento, costumamos pensar mais ou menos o seguinte: "Bem, agora que estamos comprometidos um com o outro é evidente que você deve ser de um certo jeito: deve amar apenas a mim, deve passar a maior parte de seu tempo comigo, deve me pôr sempre em primeiro lugar...". Se estamos comprometidos com o trabalho, tornamo-nos possessivos: é nosso trabalho, nosso projeto, nosso negócio, nossos lucros. Podemos dizer também: "Uma vez que estou comprometido, devo ser de uma certa maneira no que se refere a esse compromisso". Em nossas noções costumeiras do que seja um comprometimento, o objeto dele se torna, aos nossos olhos, o objeto que possuímos, um investimento que deve retornar nas formas de segurança e felicidade.

Na verdade, nossos compromissos são, em geral, uma mescla de nossa natureza Buda — aquela parte de nós que pode dizer, como a mãe daquela fábula, "O que quer que você faça, eu te amo, e desejo o melhor para você, e a outra que fala: "Comprometo-me com você desde que...". Que tipo de desde que venenoso é esse! O verdadeiro comprometimento e o verdadeiro amor não têm desde que. Não se abalam com as circunstâncias transitórias. Como escreveu Shakespeare: amor não é amor se se altera quando encontra alteração".

O comprometimento não pode ser forçado por resmungos, raiva, greves, quaisquer manobras destinadas a agradar, embora coloquemos todas essas táticas em prática. Não pode ser forçado de modo algum. Para aprofundarmos nosso comprometimento, devemos ser testemunhas de nossas manobras e nossos truques, testemunhas de nossas tentativas sutis e ostensivas de obter o que desejamos, que é sempre segurança e certezas. A mãe daquele episódio certamente não estava segura, nem tinha certezas: tinha apenas sua cabeça. Todavia, mesmo na morte, desejava o melhor para o filho. Claro que não somos assim. Somos humanos.

Eu jamais diria a uma pessoa: "Apenas comprometa-se com alguém e comece a lutar daí em diante". Mesmo se passarmos meses e anos para decidir que aquela "é a pessoa", talvez só comecemos a nos comprometer. Estamos enganando aos outros e a nós mesmos se pensarmos que, porque fizemos algumas promessas, estamos comprometidos.

No comprometimento fechamos a porta. Uma vez que não somos Budas realizados, não podemos ou não queremos nos comprometer com qualquer um. No entanto, após muitas hesitações e preocupações, finalmente nos comprometemos com algo ou alguém. Depois de termos feito isso, precisamos fechar a porta do forno e cozinhar. Comprometimento significa que não deixamos preparada uma saída de emergência. Qualquer casamento, qualquer relação de compromisso, inclusive o comprometimento com nossos filhos, com nossos pais e amigos, é relativo a este tipo de escolha.

Quando "fecharmos a porta" seremos felizes? Uma parte do tempo, mas essa não é a questão. A questão do comprometer-se não é se o compromisso nos agrada ou não. Parte do tempo, sim, claro, porém não contemos com isso.

O comprometimento nem sempre é com outra pessoa. Podemos nos comprometer a ficar sós. Para a maioria das pessoas, esse comprometimento é uma boa prática, pelo menos de vez em quando. Talvez nos comprometamos a ficar sós durante seis meses, um ano, cinco anos. Poucos são os que vêem o ficar só como apenas o ficar só; vêmo-lo como solidão ou infelicidade. No entanto, não me refiro a alguma espécie de retiro em uma caverna. Refiro-me ao ficar só que podemos praticar enquanto nos devotamos a tudo e a todos. Se realizarmos essa prática, devemos ser honestos no que tange às limitações que acompanham tal comprometimento. Ninguém quer se devotar a tudo e a todos. É uma prática visceral, exigente, que nem todos dizem respeito a um comprometer-se com todos os seres sensíveis e não apenas com alguns em especial. Em nossas noções habituais de comprometimento, costumamos pensar mais ou menos o seguinte: "Bem, agora que estamos comprometidos um com o outro é evidente que você deve ser de um certo jeito: deve amar apenas a mim, deve passar a maior parte de seu tempo comigo, deve me pôr sempre em primeiro lugar...". Se estamos comprometidos com o trabalho, tornamo-nos possessivos: é nosso trabalho, nosso projeto, nosso negócio, nossos lucros. Podemos dizer também: "Uma vez que estou comprometido, devo ser de uma certa maneira no que se refere a esse compromisso". Em nossas noções costumeiras do que seja um comprometimento, o objeto dele se torna, aos nossos olhos, o objeto que possuímos, um investimento que deve retornar nas formas de segurança e felicidade.

Na verdade, nossos compromissos são, em geral, uma mescla de nossa natureza Buda — aquela parte de nós que pode dizer, como a mãe daquela fábula, "O que quer que você faça, eu te amo, e desejo o melhor para você", e a outra que fala: "Comprometo-me com você desde que...". Que tipo de desde que venenoso é esse! O verdadeiro comprometimento e o verdadeiro amor não têm desde que. Não se abalam com as circunstâncias transitórias. Como escreveu Shakespeare: "O amor não é amor se se altera quando encontra alteração".

O comprometimento não pode ser forçado por resmungos, raiva, greves, quaisquer manobras destinadas a agradar, embora coloquemos todas essas táticas em prática. Não pode ser forçado de modo algum. Para aprofundarmos nosso comprometimento, devemos ser testemunhas de nossas manobras e nossos truques, testemunhas de nossas tentativas sutis e ostensivas de obter o que desejamos, que é sempre segurança e certezas. A mãe daquele episódio certamente não estava segura, nem tinha certezas: tinha apenas sua cabeça. Todavia, mesmo na morte, desejava o melhor para o filho. Claro que não somos assim. Somos humanos.

Eu jamais diria a uma pessoa: "Apenas comprometa-se com alguém e comece a lutar daí em diante". Mesmo se passarmos meses e anos para decidir que aquela "é a pessoa", talvez só comecemos a nos comprometer. Estamos enganando aos outros e a nós mesmos se pensarmos que, porque fizemos algumas promessas, estamos comprometidos.

No comprometimento fechamos a porta. Uma vez que não somos Budas realizados, não podemos ou não queremos nos comprometer com qualquer um. No entanto, após muitas hesitações e preocupações, finalmente nos comprometemos com algo ou alguém. Depois de termos feito isso, precisamos fechar a porta do forno e cozinhar. Comprometimento significa que não deixamos preparada uma saída de emergência. Qualquer casamento, qualquer relação de compromisso, inclusive o comprometimento com nossos filhos, com nossos pais e amigos, é relativo a este tipo de escolha.

Quando "fecharmos a porta" seremos felizes? Uma parte do tempo, mas essa não é a questão. A questão do comprometer-se não é se o compromisso nos agrada ou não. Parte do tempo, sim, claro, porém não contemos com isso.

O comprometimento nem sempre é com outra pessoa. Podemos nos comprometer a ficar sós. Para a maioria das pessoas, esse comprometimento é uma boa prática, pelo menos de vez em quando. Talvez nos comprometamos a ficar sós durante seis meses, um ano, cinco anos. Poucos são os que vêem o ficar só como apenas o ficar só; vêmo-lo como solidão ou infelicidade. No entanto, não me refiro a alguma espécie de retiro em uma caverna. Refiro-me ao ficar só que podemos praticar enquanto nos devotamos a tudo e a todos. Se realizarmos essa prática, devemos ser honestos no que tange às limitações que acompanham tal comprometimento. Ninguém quer se devotar a tudo e a todos. É uma prática visceral, exigente, que nem todos estão com pressa de realizar.

Jesus disse: "O que tiveres feito ao menor de meus irmãos te-lo-ás feito a mim". Não podemos nos comprometer com mais nada e mais ninguém, a menos que estejamos comprometidos com tudo. Isso não significa que tenhamos de gostar, ou que possamos fazê-lo por completo. Mas essa é a prática. É importante que cada um reconheça o que, em sua própria vida, é "o menor". Pensamos de imediato naquelas pessoas que são muito pobres. No entanto, "o menor" refere-se ao "menor" em mim, em você. O que é menor para você? A que em sua vida você tem o menor interesse em servir? Para a maioria, "menor" são certas pessoas de quem não gostam ou com quem têm dificuldades: as pessoas consideradas descartáveis. "Menores" podem ser também as pessoas a quem tememos, as que nos intimidam. Num nível mais sutil, podem ser aquelas que sentimos que devemos instruir, iluminar ou ajudar.

Vocês podem retrucar: "Sejamos realistas. Como é possível que eu me devote a alguém a quem não posso suportar? Para dizer a verdade, quando fico a menos de um metro dele é demais". Como fazer isso? Bem, aprendemos a praticar com essa situação. O que implica uma absoluta honestidade para conosco: reconheceremos que não gostamos daquela pessoa e não queremos ficar próximos dela, e, claro, observaremos todos os pensamentos emocionais em torno dessa relação. Adotamos também a mesma abordagem quanto aos nossos empregos. Há os que trabalham em tarefas que julgam inferiores a si (não importa o que isso quer dizer). "Tenho grau universitário. Por que é que fico pondo caixas em prateleiras? Como dedicar-me a uma tarefa tão insignificante?"

As pessoas desejam que a prática seja gostosa, fácil. Não é difícil dizer: "Oh, estou comprometido com o mundo, com o dharma". Mas isso é muito difícil de fazer. O mundo, o dharma, nos é revelado em cada criatura e em cada coisa que encontramos. Estaremos comprometidos com aquele transeunte vomitando na sarjeta? Estaremos comprometidos com o caixa que acabou de nos devolver troco a menos, ou com aquela pessoa com pose de superior?

Uma vez que somos de natureza búdica, verdadeira, sabemos que a alegria é nosso direito de nascença. Onde está ela? Está nos esperando na própria prática que estamos mencionando. Somente através dessa prática é que podemos entrar na alegria e no verdadeiro comprometimento com nosso trabalho e nossas relações, a totalidade de nossa vida.

Uma vez que nossas principais dificuldades são com as pessoas, não falamos tanto quanto poderíamos a respeito de nossos comprometimentos (sua falta) com os objetos. Por exemplo, se mantemos nosso quarto numa bagunça total, não estamos comprometidos. Estamos indicando que existe algo mais importante do que os objetos que são nossa vida. (Fui criada por uma mãe perfeccionista e, durante muitos anos, revoltei-me contra essa pressão fazendo-me de tão desmazelada quanto pude). Não estamos falando também da organização neurótica. Não obstante, nossa prática deve acolher todas as pessoas e coisas, cada gato, cada lâmpada, cada pedaço de lixa, cada hortaliça, cada fralda. Se não tomarmos muito cuidado, então não saberemos o que é o comprometer-se. O comprometimento não é algo que aconteça por acaso; é uma capacidade que cresce como um músculo: sendo exercitada.

Não pretendo estar estipulando uma outra série inédita de mandamentos. Não falo muito sobre os Preceitos porque as pessoas os interpretam de modo equivocado: "Devo ser organizada. Joko diz que eu devo". Mas precisamos levar em conta nossa tendência para atirar as coisas para todos os lados, para deixar que se queimem sem necessidade, para pôr no prato mais do que precisamos comer. Por quê? Se nosso comprometimento não for total, então o que chamamos de nosso compromisso de casamento, nosso compromisso com os filhos, com o trabalho, com a prática, com o dharma, estarão sendo minados nas bases. "O que tiveres feito ao menor de meus irmãos, te-lo-ás feito a mim." Se quisermos conhecer a alegria, não podemos dizer "Ah, eu sou simplesmente despreocupada". Nossa prática sempre e o menor

O comprometimento é um funcionamento. Porque evitamos o funcionamento, a testemunha tem de ser tão afiada quanto uma tacha. Não me interessa a quantas experiências de iluminação vocês se apaguem. Não há nada além da vida diária. Esta mesa é o dharma. Ontem estava empoeirada. Hoje está limpa. Estamos chegando ao fim deste sesshin, mas não se enganem: o sesshin mais difícil inicia-se, quando vocês retomarem seus horários normais.




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