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Iluminação Alguém me disse há poucos dias: "Sabe de uma coisa? Você nunca fala sobre iluminação. Seria possível mencionar alguma coisa a esse respeito?". O problema de se falar sobre a "iluminação" é que nossa conversa tende a criar uma imagem do que seja esse estado e, no entanto, a iluminação não é uma imagem e, sim, o estilhaçar de todas as imagens! E uma vida estilhaçada não é exatamente aquilo pelo que estamos esperando! O que significa estilhaçar nossa maneira habitual de ver a vida? Minha experiência costumeira da vida está centrada em minha pessoa. Afinal de contas, eu é que estou vivenciando as impressões incessantes. Não posso sentir suas experiências de vida; tenho sempre as minhas. O inevitável é que chega o momento em que passo a acreditar que existe um "eu" central em minha vida, uma vez que as experiências que vivo parecem centradas em torno do "eu". "Eu" vejo, "eu" ouço, "eu" sinto, "eu" penso, "eu" tenho estas e aquelas opiniões. Poucas vezes questionamos esse "eu". Mas no estado de iluminação não existe "eu"; existe apenas a vida em si, uma pulsação da energia atemporal, cuja própria natureza inclui — ou é — tudo. O processo da prática é começar a notar por que não nos damos conta de nossa natureza: é sempre nossa identificação exclusiva com o próprio corpo e mente que temos, com o "eu". Para nos darmos conta de nosso estado natural de iluminação, devemos enxergar esse equívoco e estilhaçá-lo. O caminho da prática consiste em ir de forma deliberada contra um modo de vida absorto, exclusivamente, na própria pessoa. O primeiro estágio da prática é ver que toda a minha vida está centrada em torno de mim mesma: "Sim, tenho estas e aquelas opiniões centradas em mim, tenho estes e aqueles pensamentos centrados em torno de mim, tenho estas e mais estas emoções centradas em mim... Eu, eu, eu, eu, eu tenho todas essas vivências da manhã até a noite". Simplesmente essa conscientização já é em si um grande passo. A seguir, um outro estágio (e cada um deles pode custar anos para passar) é observar o que fazemos com todos os pensamentos, fantasias e emoções; em geral, apegamo-nos a eles, acalentamo-los, acreditamos que sem eles ficaríamos perdidos e infelizes. "Sem ela, estou perdido." "A menos que essa situação desapareça, não vou conseguir o que pretendo." Se exigirmos da vida que ela seja de um certo modo, é inevitável que soframos, porque ela é sempre apenas do jeito que é e isso significa, nem sempre justa, agradável. A vida não é particularmente da maneira como desejamos. É apenas como é. O que não nos impede de desfrutá-la, de apreciá-la, de lhe sermos gratos. Somos como filhotes de passarinho dentro do ninho, esperando pelo papai e pela mamãe para porem comida em nossos biquinhos esgoelados. Isso condiz com filhotes de passarinho, embora mamãe e papai-passarinhos tenham mais liberdade e fiquem voando pelos cantos o dia todo. Podemos crer que não sentimos inveja da vida dos filhotes de passarinho: fazemos exatamente o mesmo que eles, esperando que a vida nos coloque guloseimas dentro da boca. "Quero que as coisas aconteçam do meu jeito. Quero isto de qualquer jeito. Quero que aquela amiga seja diferente. Quero que minha mãe seja cordata; quero viver onde gosto; quero dinheiro.., quero sucesso... quero..." Somos bebês-passarinhos exceto que escondemos nossas ânsias e as avezinhas, não. Num certo filme documentário aparece uma mamãe-ursa cuidando de seus filhotes. Ela os ensina a caçar, a pescar, a subir, a fazer tudo que precisam saber para lhes garantir a sobrevivência. Então, certo dia, ela os atiça a subir todos numa árvore. O que ela faz? A mamãe-ursa apenas vai embora e não olha nem para trás! Como é que os filhotes se sentem diante disso? Provavelmente ficam aterrorizados, mas o caminho da liberdade é sentir-se aterrorizado. Somos todos filhotes de passarinho, filhotes de urso, e gostaríamos de encontrar um pouco de mamãe-vida em quem nos pendurar, de preferência de dezoito jeitos diferentes, senão pelo menos de um. Ninguém deseja ser despejado do ninho porque é aterrorizante. Porém o processo de alcançar a plena independência (ou de vivenciar que já somos isso) é ser aterrorizante inúmeras vezes seguidas. Lutamos contra a liberdade e o abandono de nossos sonhos de que um dia a vida acabará sendo exatamente como a desejamos, que ela, enfim, nos abrigará. Por isso é que a prática parece tão difícil. O zazen serve para nos libertar para uma vida em que planaremos alto; nela, a liberdade, o desapego, é, enfim, o estado de iluminação: ser apenas a vida. Em nossos primeiros anos de prática, fazemos o zazen para entender nosso apego em seus aspectos processuais mais grotescos. Depois, com o passar dos anos, praticamos com nossas formas mais sutis (e até mais intoxicantes) de apego e dependência. A prática é para a vida toda. Não há fim para ela. Mas se de fato efetuarmos a prática, realizaremos sem dúvida a nossa liberdade. O filhote de urso afastado da mãe durante dois ou três meses pode não ter a força nem a habilidade dela, mas ainda assim está se saindo bem e, é provável que esteja se divertindo mais com a vida do que o ursinho que tem de ir atrás da mãe para todo lado. O zazen diário é essencial, todavia diante de nossa teimosia costumamos precisar da pressão de longos períodos de prática do sentar para podermos enxergar nossos apegos. Sentarmos durante todo um longo sesshin é um golpe formidável em nossas esperanças e nossos sonhos, em nossas barreiras contra a iluminação. Afirmar que não há esperança não é, em absoluto, uma declaração pessimista. Não pode haver esperança porque não há coisa alguma além deste momento. Quando esperamos, estamos ansiosos, porque ficamos perdidos entre o que somos e o que esperamos ser. A ausência de esperança (o desapego, o estado de iluminação) é uma vida de quietude, de equanimidade, de pensamentos e emoções genuínos. É o fruto da verdadeira prática, sempre benefício à pessoa e aos outros, e digno de toda a incessante devoção e prática que exige. |