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Grandes expectativas
Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro"Sempre Zen"

Lembrei-me de dois livros um dia desses. Um foi o Grandes expectativas, de Charles Dickens, e o outro foi O paraíso perdido, de John Milton. Há uma ligação íntima entre ambos. Qual é?

Todos estamos em busca do paraíso, da iluminação, ou seja qual for o nome que lhe demos. Parece-nos que o paraíso está perdido. "Não há muito dele em minha vida" diriam praticamente todos. Queremos esse "paraíso", essa "iluminação". Ficamos desesperados atrás desse estado. Estamos aqui para buscá-lo, mas onde está? O que é?

Chegamos nos sesshins com grandes expectativas. Esforçamo-nos, lutamos, esperamos. Alguns até alimentam expectativas. Prossegue o jogo humano. Se não são grandes expectativas, temos algumas esperanças de que, em algum momento, o paraíso irá nos aparecer.

Porém, se não sabemos o que é o paraíso, sabemos com certeza o que ele não é. Temos certeza de que não é se sentir infeliz. Não é fracassar diante de nada. Paraíso não é ser criticado nem humilhado, tampouco punido de jeito nenhum. E a ausência de dor física. E a ausência de erros. Não é perder o parceiro, o amigo ou o filho. O paraíso. simplesmente não poderia ser confusão ou depressão. Não é estar solitário, nem trabalhar quando se está cansado ou doente. Temos listas completas e bem claras sobre o que o paraíso não é. Mas, se não é tais estados, então, o que é?

É ter mais dinheiro ou mais segurança? É ter domínio ou poder, fama ou reconhecimento por parte dos outros? Será paraíso estar cercado de pessoas, recebendo seu apoio e amor? É ter mais paz e sossego, mais tempo para pensar a respeito do significado da vida? É alguma dessas coisas? Ou não?

Algumas das pessoas aqui presentes "chegaram lá" em termos da segunda lista. Conseguiram algumas coisas, um pouco de "boa vida". No entanto, independente daquilo que tivermos, assim que o obtemos... "Ah, então é isso? Não, também não é isso." Onde está? Parece que nunca conseguimos chegar exatamente lá. É como ir atrás de uma miragem: quando chegamos perto, ela desaparece.

É interessante que algumas pessoas, quando estão próximas da morte, vêem ou se dão conta por fim daquilo que nunca tinham visto ou percebido até então. Depois desse esclarecimento, morrem em paz, até mesmo com alegria, finalmente no paraíso. E o que viram? O que encontraram?

Lembram-se da fábula do homem que era perseguido pelo tigre? Diante da perspectiva iminente da morte, ele come um morango e exclama "Que delícia!", por saber que para ele aquele é seu último ato.

Voltemos agora à nossa primeira lista — o que o paraíso não é — para apreciá-la sob um ângulo diferente. "Estou tão infeliz! Que delícia!" "De fato fracassei. Que delícia!" "Nunca fui tão humilhada em toda a minha vida! Que delícia!" "Estou tão sozinha! Que delícia!" Quando tivermos entendido profundamente tudo isso, qualquer circunstância da vida é em si o paraíso.

Vejamos agora alguns dos pronunciamentos de Dõgen Zenji. Certa vez ele disse: "Abra mão de seu corpo e de sua mente. Esqueça-os. Lance sua vida no reino de Buda, vivendo pelo que Buda lhe aprouver oferecer. Quando conseguir isso, sem se valer de seu poder físico ou mental, ficará livre da vida e da morte. e tornar-se-á Buda. Esta é a Verdade. Não busque a Verdade em nenhum outro lugar"

"Abra mão de seu corpo e de sua mente e esqueça—os. O que significa? "Lance sua vida no reino de Buda." O que é o reino de Buda? Ele refere-se ao erro humano em suas primeiras palavras: "Abra mão de seu corpo e de sua mente e esqueça-os". Em vez de referir tudo ao conforto, à proteção e ao prazer do corpo e da mente, que é o que fazemos, ele nos pede para "lançar nossa vida no reino de Buda". Mas onde está esse reino? Onde devemos lançar nossa vida?

Uma vez que Buda não é senão este momento absoluto da vida (que não é nem passado, nem presente, nem futuro), ele está falando que este preciso momento é o reino do Buda, a iluminação, o paraíso. Nada além da vida que existe neste instante. Infelizes ou felizes, fracassados ou bem-sucedidos, não há nada que vivenciemos que não seja o reino de Buda. "Lance sua vida no reino de Buda, vivendo pelo que a ele lhe aprouver oferecer." O que significa?

Não podemos viver sem ser este momento, pois ele é a nossa vida. Ser conduzido por ele é vê-lo, senti-lo, saboreá-lo, tocá-lo, experimentá-lo, depois deixá-lo ditar o que deve ser feito. Ele diz que, quando agimos sem confiar em nossa própria força física ou mental — em outras palavras, independente de suas opiniões a respeito de como as coisas deveriam ser — você fica livre tanto da vida como da morte e torna-se um Buda. Por quê? Por que você se torna um Buda? Porque você é um Buda. Você é este momento da vida. Você não pode, aliás, ser mais nada.

Quando sentamos ou vivemos nossas rotinas diárias, estamos no reino de Buda. Onde mais poderíamos estar? Cada momento de zazen, doloroso, pacífico, entediante, o que é? Paraíso, nirvana, o reino de Buda. No entanto, vamos para um sesshin com grandes expectativas de chegar até lá! Onde está? Quando vocês saem daqui, onde está? O reino de Buda é a experiência direta de seu corpo e de sua mente. Não é uma outra coisa, ou um outro lugar. Dõgen Zenji disse: "Esta é a Verdade. Não busque a Verdade em nenhum outro lugar". Onde vocês podem buscá-la?

Não há paraíso perdido, assim como não há nenhum a ser recuperado. Por quê? Porque você não pode evitar este momento. Você pode não estar desperto para ele, mas ele está sempre aí. Você não pode evitá-lo. Só pode evitar vê-lo.

Quando as pessoas sabem que estão quase morrendo, qual é o elemento que muitas vezes desaparece? O que desaparece é a esperança de que a vida enfim se torne aquilo que desejaríamos que fosse. E então que conseguem perceber como é "delicioso" o morango, porque é isso o que existe, este momento, aqui e agora.

Sabedoria é perceber que não há o que se buscar. Se você vive com uma pessoa difícil, isso é o nirvana. Perfeito. Se é infeliz, então é. Não estou dizendo que devamos ser passivos e não reagir. Se assim fosse, estaríamos tentando segurar o nirvana como estado fixo, mas ele nunca é fixo, está em perpétuo movimento de mudança. Não há a implicação de "não reagir". Mas os atos provenientes dessa compreensão estão isentos de raiva e de julgamento. Nenhuma expectativa, apenas uma ação pura e compassiva.

O sesshin é em geral uma batalha com o fato de que não queremos de modo nenhum que nossa experiência seja o que é. Definitivamente, não a sentimos como o estado iluminado. Todavia, a prática paciente do sentar, afastando-nos de toda e qualquer conceituação — "E duro, é maravilhoso, é entediante, isto não deveria estar acontecendo comigo" — permite-nos que, com o tempo, percebamos

a Verdade de nossas vidas. O primeiro dia de um sesshin é todo dedicado à primeira lista. A mente aposta corrida com todas as complicações que hoje compõem nossa vida, nossos desejos, nossas frustrações, mais a fadiga do primeiro dia e, em geral, um certo desconforto físico. Todas as idéias pelas quais temos predileção são assaltadas e invadidas no sesshin.

Estamos sempre buscando uma maneira de circundar esses problemas, para chegar até o paraíso distante. Mas, outra vez as palavras de Dõgen Zenji devem ser ouvidas:

"Abra mão de seu corpo e de sua mente". Essa frase lembra-nos que devemos apenas manter clara a consciência de todas as condições do corpo e da mente, observando nosso desejo de ir em busca de prazer e de evitar a dor. Porém, ambos estão aqui, neste momento presente. Por isso ele afirma: "Lance sua vida no reino de Buda". Lance sua vida; seja este momento apenas; cesse todo julgamento. Basta de fugir dele, de analisá-lo. Basta sê-lo. Ele reafirma: "Esta é a Verdade. Não busque a Verdade em nenhum outro lugar". Por quê? Por que não podemos buscá-la em nenhum outro lugar? Não há nenhum outro lugar para buscá-la porque não existe mais nada que aconteça, a não ser quando? Bem aqui. Bem agora. Nossa própria natureza é a própria iluminação. Podemos acordar e olhar?




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