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Vivenciar e comportamento
Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro"Sempre Zen"

Por vivenciar quero dizer aquele primeiro instante em que recebemos a vida, antes que a mente desperte. Por exemplo: antes que eu pense: "Olha uma camisa vermelha", existe apenas o ver. Podemos falar também de só ouvir, só tocar, só saborear, só pensar. Isso é o absoluto; podemos chamá-lo Deus, natureza Buda, o que vocês quiserem. Essa experiência, filtrada por meu mecanismo humano particular, cria meu mundo. Não podemos apontar coisa alguma no mundo, tanto dentro como fora de nós, que não seja o vivenciar. Mas não teríamos aquilo a que chamamos vida humana, a menos que esse vivenciar fosse transformado em comportamento. Por comportamento entendo o modo como algo se faz. Por exemplo, como ser

humano você faz si mesmo; você senta, anda, come, fala. Neste sentido, até tapetes têm comportamento: o comportamento do tapete é ficar apenas estendido. (Se o observássemos com um microscópio bastante potente, veríamos que ele não é absolutamente inerte. É um mar de energia que se move com uma velocidade assombrosa.)

Portanto, podemos distinguir o emergente — que é Deus, a natureza Buda, o absoluto, aquilo que simplesmente é — do mundo, que se forma de modo instantâneo, o outro lado do emergente. Na verdade, os dois lados são um só: o emergente e o que chamamos de mundo não são diferentes. Se na realidade conseguirmos entender isso, nunca mais teremos problemas na vida, porque fica evidente que não existe nem passado nem futuro, e observamos que tudo aquilo com o que nos preocupamos é pura bobagem.

Em geral, só temos uma vaga noção consciente de nosso experimentar. Mas sabemos com uma certa imprecisão que, de um jeito ou de outro, nosso comportamento e nossas vivências se interligam. Se estou com dor de cabeça e me comporto de modo irritado, talvez percebo que existe uma ligação entre a cabeça latejante e meu comportamento irritadiço. Por isso, embora não estejamos plenamente conscientes de nossa própria vivência, pelo menos não nos vemos tão distanciados de nossa experiência. Porém, se as outras pessoas estão irritadas, é possível que separemos o comportamento que estão apresentando de suas experiências. Não podemos senti-las; e, por isso, julgamos sua conduta. Se pensamos: "Ela não deveria ser tão arrogante", só enxergamos seu comportamento e o julgamos porque não estamos cientes de sua verdade (suas experiências, suas sensações corporais de medo). Entramos no nível das opiniões pessoais em relação à arrogância.

• Comportamento é o que observamos. Não podemos observar experiências. No momento em que temos uma observação a respeito de um evento, ele é passado; a experiência nunca está no passado. Por isso é que os sidras

dizem que não podemos tocá-la, vê-la, ouvi-la, pensar a respeito dela, porque no minuto em que tentarmos fazer isso, o tempo e a separação terão se instaurado (nosso mundo fenomênico). Quando observo meu braço levantando-se, ele não é eu. Quando observo meus pensamentos, eles não são eu. Ao pensar "Este sou eu", tento proteger esse "eu". Aliás, tudo o que eu observar a meu respeito (mesmo que seja um fenômeno interessante com o qual eu esteja intimamente associado) não é eu. Esse é o meu comportamento, o mundo fenomênico; quem eu sou está apenas vivenciando a si, para sempre desconhecido. No momento em que o denomino, ele se vai.

Contudo, comportamento e vivência não são fundamentalmente distantes. Quando vivencio você (vê-lo, tocá-lo, ouvi-lo), você é meu vivenciar só isso. Mas a tendência humana é não parar aí; em vez de você ser apenas minha experiência daquele momento, a ela acrescento minhas opiniões sobre o que parece que você está fazendo; nesse instante, separei-me de você. Quando o mundo parece algo separado, penso que tenha de ser examinado, analisado e julgado, Ao vivermos dessa maneira, em vez de a partir do experimentar em si, estamos numa grande confusão. Temos de ter memória, temos de ter conceitos; mas se não entendermos sua natureza, se não os usarmos de maneira adequada, criamos o caos.

Tal como nós, outros indivíduos estão simplesmente experimentando o que parece ser comportamento. No entanto, consideramos suas experiências como comportamento. Só enxergamos o comportamento deles, e não temos consciência de suas experiências. Na verdade, o vivenciar é universal porque é isso que somos. Quando pudermos enxergar a tolice de nossa vinculação aos pensamentos e às opiniões, e aumentarmos o tempo que vivemos experimentando, seremos mais capazes de sentir a verdadeira vida — o verdadeiro vivenciar — de uma outra pessoa. Quando temos uma vida que não é dominada por opiniões

pessoais, mas, ao contrário, é um puro vivenciar, então começamos a nos importar com todos, conosco e com os outros. Não poderemos mais então considerar os outros como objetos, como macacos comportamentais que não passam de seus comportamentos.

A prática consiste em retornarmos ao puro vivenciar. Disso emergirão um pensamento e uma ação muito adequados. O mais comum, no entanto, é sermos incapazes de fazê-lo e, em lugar de tal atitude, devemos agir de conformidade com os pensamentos e as opiniões que rodopiam em nossa cabeça, isto é, levando-nos para trás.

Quase sempre vemos as outras pessoas como mero comportamento. Não estamos interessados no fato de seu comportamento não poder separar-se de seu vivenciar. Conosco, conseguimos essa percepção em certa medida, porém não totalmente. No zazen, vemos que apenas uma fração de nós mesmos nos é conhecida e, conforme essa capacidade de vivenciar for aumentando, nossas ações irão transformar-se; começarão a vir não só tanto de nossos condicionamentos e recordações como da própria vida tal e qual ela é, neste instante.

Essa é a verdadeira compaixão. Quanto mais vivermos como nosso vivenciar mais veremos que, apesar de termos um corpo e uma mente que se comportam de determinadas maneiras, existe algo (uma não-coisa) em que corpo e mente estão contidos. Intuímos que todos se encontram numa situação semelhante. Embora o comportamento de outra pessoa possa ser irresponsável e talvez nos oponhamos de maneira firme à sua conduta, somos — nós e o outro — intrinsecamente o mesmo. Só na proporção em que tivermos uma vida composta por experiências é que teremos possibilidade de compreender a vida do outro. A compaixão não é nem uma idéia, nem um ideal; é um espaço informe e todo-poderoso que, com o zazen, cresce cada vez mais.

Esse espaço está sempre presente. Não é algo que tenhamos de buscar, ou tentar obter. É sempre o que somos, porque é nosso experimentar. Não podemos ser outra coisa além disso, mas podemos encobrir essa verdade com nossa ignorância. Não temos de "encontra?’ nada; por esse motivo foi que Buda disse que, depois de quarenta anos ele não tinha alcançado nada, O que há para ser alcançado? O que está sempre aqui.




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