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Praticando nas relações
Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro"Sempre Zen"

A mente do passado é inapreensível;
A mente do futuro é inapreensível;
A mente do presente é inapreensível.

Sutra Diamante

O que é tempo? Existe tempo? O que podemos dizer a respeito de nossa vida cotidiana em relação ao tempo, ao não-tempo, ao não-ser? O que podemos aprender a respeito dos relacionamentos sobre esse não-tempo, não-ser?

Costumamos pensar que uma dharma palestra, um concerto, ou qualquer acontecimento da vida tem um começo, um meio e um fim. Mas se, a qualquer instante desta palestra, por exemplo, eu parar, onde estarão as palavras que acabei de pronunciar? Elas simplesmente não existem. Se eu parar em algum momento posterior, onde estarão as palavras que terão sido ditas até aquele minuto? Não existem. E quando a palestra estiver encerrada, onde estará a palestra? Não há palestra. Só restam traços de memória em nossos cérebros. E essa memória, seja lá o que for, é fragmentada e incompleta; só nos recordamos de partes da experiência concreta. Podemos afirmar o mesmo de um concerto; aliás, podemos afirmar a respeito de tudo que faz um dia, de tudo que é nossa vida. Neste exato momento, onde está nosso passado? Ele não existe.

Bem, de que modo isso se aplica aos relacionamentos, a nossas relações com todas as coisas e pessoas, a nossa relação com a almofada em que nos sentamos, ao nosso desjejum, àquele indivíduo, ao escritório, aos nossos filhos?

O modo como costumamos ter as relações é o seguinte:

"Esse relacionamento está ali, do lado de lá, e supostamente deve proporcionar-me bem-estar. No mínimo, não deve me incomodar". Em outras palavras, tornamos o relacionamento um sorvete, que existe para me conferir prazer e conforto. São muito poucos os que consideram as relações sob um outro prisma, que não o "Te peguei. E agora você sabe muito bem o que é para fazer". Portanto, quando costumamos nos preocupar com as relações, não estamos falando das partes boas. Muitas vezes, estas podem até ser mais presentes. Porém, aquilo que nos interessa é o lado desagradável. "Não deveria estar aqui." Quando digo "desagradável", englobo desde um tédio aborrecido até estados mais intensos que esse.

Bem, como é que tudo está relacionado com o não-tempo, com o não-ser?

Suponhamos uma discussão no café da manhã. Na hora do almoço ainda estamos aborrecidos. Não estamos só aborrecidos, mas contamos para todas as pessoas a esse respeito, para obter consolo, simpatia, endosso, e estamos o tempo todo em nossa cabeça. "Quando nos encontrarmos hoje à noite vou realmente ter de discutir isso com ele; de

fato precisamos ver isso de novo." Então, houve a discussão do café da manhã, o aborrecimento da hora do almoço, e o futuro também. O que iremos fazer com relação a toda essa encrenca?

Na verdade o que existe aqui? O que realmente é agora? Enquanto estamos almoçando, onde está a discussão do café? Onde? "A mente do passado é inapreensível." Onde está? O jantar, que é o momento em que por fim resolveremos a questão (para nossa satisfação, é claro), onde está? "A mente do futuro é inapreensível." Não existe.

O que existe? O que é real? Existe só meu aborrecimento neste instante, que é a hora do almoço. Minha história descrevendo os acontecimentos da manhã não é o que aconteceu. É minha história. Real é a dor de cabeça, o incômodo na barriga. Minha lamúria é uma manifestação dessa energia física. Fora da experiência física não há mais nada que seja real. Não sei se isso é real, mas é tudo que podemos dizer a respeito.

Há poucas semanas, uma moça (não praticante de zen) veio conversar comigo e queria me contar o que seu marido lhe havia feito três semanas antes. Ela estava muito, muito aborrecida. Estava tão mal que quase não conseguia falar. Então, eu lhe perguntei: "Onde está seu marido agora?". "Ah, ele está trabalhando." "E onde está o aborrecimento, onde está a discussão, onde estão?" "Bem, eu estou lhe contando." Eu disse: "Mas onde está? Mostre-me". "Bem, não posso lhe mostrar, mas estou lhe contando. Foi isso o que aconteceu." "Mas quando foi isso?" "Há três semanas." "E onde está?" "Oh..." Ela estava ficando cada vez mais aflita. Finalmente, conseguiu enxergar que aquela aflição não tinha a menor realidade. Depois comentou: "Se isso é tudo o que existe, de que maneira consertarei meu marido?".

Bem, a questão é que construímos um elaborado sistema de emoções e dramas, por crermos no tempo que tem passado, presente e futuro. Todos fazem ou fizeram isso. E, creiam, não é nada fácil. As pessoas colocam-se num tal estado — eu também passei por essa situação — que mal conseguem agir; não conseguem tomar conta de suas obrigações e precisam ficar doentes, física e mentalmente.

Bem, isso quer dizer que não faremos nada se ficarmos aflitos? Não, fazemos o que fazemos. Fazemos o que fazemos de modo definitivo e, a cada momento, estamos fazendo o melhor que nos é possível.

Porém, a ação com base na confusão e na ignorância leva diretamente a mais confusões, aflições e ignorância. Não é nem bom, nem mau, e todos nós procedemos assim, sem exceção. Portanto, em nossa ignorância, em nossa crença de que a vida é linear — "Isso aconteceu ontem" e "Olha só, vai continuar do mesmo jeito por muito tempo"

— vivemos num mundo de queixas como vítimas ou agressores, no que parece ser um mundo hostil.

Entretanto, apenas uma coisa, uma única coisa cria esse mundo hostil: nossos pensamentos, nossas imagens e fantasias. Elas criam um mundo de tempo, espaço e sofrimento. No entanto, se tentarmos encontrar o passado e o futuro que nossos pensamentos alimentam, descobriremos que é impossível, pois são inapreensíveis.

Um certo aluno me disse que vem subindo as paredes desde que me ouviu falar sobre a questão do tempo, porque está em busca de seu passado. Comentou: "Se não existe passado e futuro e não consigo nem apreender o presente — quer dizer, tento apreendê-lo e ele já se foi —então quem sou?". Boa pergunta. Todos podem se fazer essa questão. "Quem sou eu?"

Tomemos um pensamento típico, daquele que todos têm: "Bill me dá nos nervos". Já existe Bill e eu, e essa sensação nos nervos, essa emoção. Bill, eu e a raiva. Está tudo exposto. Neste preciso momento criei Bill, criei eu e, de algum jeito, a partir disso, existe esse incômodo.

Bem, vamos, porém, dizê-lo de outro jeito. "EuIBillraiva." Tudo junto. "EuBillraiva." Só a experiência, como é, justamente agora. E sempre descobriremos que, se somos apenas a experiência, a solução está contida nela. E nem sequer contida nela; a experiência em si e a solução não são duas coisas separadas. Porém, no minuto em que dizemos: "Ela me dá nos nervos"; "Ele me enche"; "Ele fez isso"; "Ela fez aquilo", "Isso me deixa nervosa, aborrecida, me magoa realmente", então existe você, a outra pessoa, e aquilo que você está remoendo. Ao invés disso: não existe coisa alguma, exceto este momento agora, perfeitamente inapreensível, euvoceraiva. Ser apenas isso: a solução aqui-agora torna-se óbvia.

Mas, enquanto ficarmos girando em nossos pensamentos, por exemplo, "Bill me dá nos nervos", estamos diante de um problema. Vocês notam que a sentença tem um começo, um meio e um fim e, dela, vem esse mundo hostil, ameaçador e separado de mim.

Vejam, não há nada errado com nossas sentenças. Todos precisamos viver num mundo relativo; parece que tem café da manhã, almoço e jantar. Não há nada de errado com o mundo conceitual relativo. O que é "errado" é não o enxergarmos tal como é. Quando isso acontece, pegamos nossos amigos e parceiros de maneira muito parecida com o modo como sintonizamos um canal de TV.

Por exemplo, encontramos uma bela moça e dizemos:

"Hum, ela se parece com o Canal X e sempre fico calmo e tranqüilo quando assisto a esse canal. Sei o que esperar dele, um pouco deste tipo de coisa e daquele, alguns noticiários, posso ficar bastante à vontade com essa pessoa tipo Canal X". Então, ficamos juntos e, durante um certo tempo, tudo corre bem. Há muita facilidade e acordo. Parece que é uma ótima relação.

Mas, oh espanto, o que sucede depois de algum tempo? De certa maneira, o Canal X mudou para o Canal Y, com muita irritação e raiva; às vezes, para o Z, com sonhos e fantasias. O que estou fazendo durante esse tempo todo? Vejam, eu estava fingindo que era apenas uma pessoa Canal X, mas não, parece que passo muito tempo no Canal A, onde vejo desenhos animados para crianças, principalmente sobre o príncipe e a princesa dos meus sonhos. Porém, tenho outros canais ~ com o o B, com desastres iminentes, depressão, fugas. As vezes, justo quando estou soturno, depressivo e retraído, ela está fantasiando, toda leve. Não combina muito bem. Outras vezes, parece que todos os canais estão no ar ao mesmo tempo. Temos uma grande confusão, muito barulho, e um ou os dois parceiros fogem ou recuam.

O que fazer? Estamos agora em meio a nossa habitual confusão, nosso cenário costumeiro. Temos de tentar dar um jeito nisso, não é? De algum modo, antes tudo era feliz, por isso, o que temos a fazer, evidentemente, é levar-nos ambos de volta ao Canal X. E dizemos para ela: "Você tem de ser deste jeito; você deve fazer isso; essa é a pessoa por quem me apaixonei". Por um certo tempo, os dois fazem um esforço, porque no Canal X reina uma paz artificial (e muito tédio). Na realidade, a maioria dos casamentos parece assim depois de algum tempo. Alguém comentou que é possível distinguir quem é casado até num restaurante: é o casal que não conversa.

É interessante que a pergunta que ninguém faz, quando as estações ficam cruzadas, seja: "Quem ligou os canais? Quem é a fonte de toda essa algazarra?". Em certo sentido, não há nada de errado com os canais, mas nunca perguntamos quem os ligou. Quem aciona nossas ações? Qual é a fonte? Essa é a pergunta-chave a ser feita.

Se não fizermos essa indagação e o sofrimento piorar de maneira considerável, pode ser que simplesmente abandonemos a relação e passemos a buscar uma outra, tipo Canal X: porque se esse é o canal de que gostamos, nossa tendência será ir em busca de um outro igual. Tudo isso serve não só para relações íntimas, mas também para as que temos no escritório, durante as férias, em qualquer lugar. É isto que fazemos.

Após vários episódios infelizes como esses, talvez comecemos a considerar a totalidade de nossa vida. Uma vez ou outra, uma pessoa realmente rara e afortunada começa a examinar toda essa questão do que está fazendo com a própria vida e a formular as questões essenciais: "Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou?".

Pode ocorrer que descubramos, para nossa grande tristeza, que depois de termos vivido com alguém por muito tempo nunca a conhecemos de fato, sequer a encontramos. Isso aconteceu comigo por quinze anos. Há quem viva uma existência inteira sem jamais ter encontrado o parceiro. De vez em quando seus canais encontram-se, mas essas pessoas nunca.

Pode ser que tenhamos sorte e encontremos um bom professor. Na tradição budista o ensinamento de Buda diz:

"Elimina completamente toda dor. Essa é a verdade, não é mentira". Talvez não tenhamos a menor noção do que significa, mas, se estivermos entre os afortunados, poderemos começar uma prática inteligente no esforço de entender o ensinamento.

Um zazen inteligente significa trocas sutis constantes, graduais, primeiro nos níveis mais grosseiros, depois para os mais sutis, e para mais sutis ainda, e assim por diante. Inicia-se enxergando através do que denominamos personalidade, a respeito da qual estivemos falando. Começamos a olhar de fato nossas mentes, nossos corpos, nossos pensamentos, as percepções sensoriais, tudo que acreditávamos ser nossa pessoa.

A primeira parte de nossa prática é como se estivéssemos no meio de uma rua apinhada e confusa; mal conseguimos localizar um espaço vazio e já todo o trânsito está se dirigindo para aquele local. Confunde e assusta. É assim que a vida se parece para a maioria. Estamos tão ocupados em sair dos apertos que estão vindo em nossa direção, que não conseguimos compreender como estamos presos naquele trânsito. Mas, se observarmos durante um certo tempo, começaremos a ver que existem espaços aqui e ali no trânsito. Pode ser até que consigamos chegar na calçada para ter uma visão mais objetiva. E, independente do quão fechado for esse engarrafamento, começaremos a notar algumas áreas abertas.

O terceiro passo, então, pode ser entrar em um edifício e subir até o 3° andar, para olhar o tráfego lá embaixo. Agora ele realmente parece outro. Podemos enxergar suas direções, para onde está se encaminhando. Notamos que, de certo modo, não tem nada que ver conosco, apenas está acontecendo.

Se continuarmos subindo cada vez mais alto, terminaremos vendo que o trânsito é apenas padrões, e isso é lindo, em vez de assustador. É só o que é, e começamos a observá-lo como um magnífico panorama. Começamos a ver que as áreas de dificuldade fazem parte do todo e que não são, necessariamente, boas ou más; são só parte da vida. Após muitos anos de prática, atingiremos uma posição de onde poderemos apenas desfrutar aquilo que vemos, de nós mesmos e de tudo que existe tal e qual é. Podemos desfrutar tudo sem sermos capturados por esse movimento; assistimos e desfrutamos sua impermanência, seu fluir.

Avançamos mais ainda, depois, e atingimos o estágio de testemunhas de nossas vidas. Tudo está acontecendo, tudo é desfrutável e não estamos presos a nada. No estágio final de nossa prática, estamos de volta à rua, ao mercado e ao burburinho. Uma vez, porém, que vemos a confusão como ela é, estamos livres dela. Podemos amá-la, desfrutá-la, servi-la, e nossa vida é vista como aquilo que sempre foi: livre e liberta.

Aquele primeiro lugar, onde estamos presos bem no meio do trânsito e da confusão, é o ponto de partida para a maioria que se dispõe a uma prática. É desse ponto de vista que muitos enxergam as próprias relações como confusas, desconcertantes, amargas, pois estamos esperando que elas sejam aquele lugar onde podemos descansar do tráfego.

Contudo, ao tentarmos a prática com nossas relações, começaremos a observar que são nosso melhor caminho de crescimento. É nelas que podemos enxergar o que na realidade são nossa mente, nosso corpo, nossos sentidos, nossos pensamentos. Por que os relacionamentos constituem uma prática tão excelente? Por que nos ajudam a entrar naquilo que chamamos a lenta morte do ego? Porque, além de nossa prática formal de sentar, não há nada que supere os relacionamentos em termos de capacidade de demonstrar-nos onde estamos parados e ao que estamos nos apegando. Enquanto nossos botões estiverem sendo pressionados, temos grandes oportunidades de aprender e de crescer. Por isso, o relacionamento é uma grande dádiva, não porque nos torne felizes — com freqüência isso não acontece — mas porque qualquer relacionamento íntimo, se o virmos como prática, é o espelho mais nítido que podemos encontrar.

Podemos afirmar que eles são a porta aberta para nosso verdadeiro eu, o não-eu. Presas do medo, estamos sempre batendo a uma porta pintada, composta de nossos sonhos, nossas esperanças e ambições; e evitamos a dor do portão sem podão, a porta aberta de sermos e estarmos com o que é, seja o que for, aqui e agora.

Para mim é interessante constatar que as pessoas não enxergam qualquer conexão entre sua infelicidade e suas queixas, sua sensação de vítimas, a sensação de que todo mundo está fazendo alguma coisa contra elas. É incrível. Quantas vezes essa ligação foi indicada nas dharma palestras? Quantas vezes? E, não obstante, nosso medo nos impede de enxergar.

Só as pessoas inteligentes, vigorosas e pacientes acabarão descobrindo aquele posto fixo em torno do qual o

universo gira. Infelizmente, a vida para quem não consegue ver de frente o momento presente é sempre violenta e punitiva; não é agradável, e não se liga a mínima para ela. A verdade, porém, é que não é a vida e, sim, nós mesmos que criamos essa infelicidade. Se de fato recusarmo-nos a considerar aquilo que estamos fazendo — e lamento como é reduzido o número de pessoas que farão isso —então seremos punidos por nossas vidas. Ficaremos nos perguntando por que ela é tão dura conosco. Para quem, no entanto, praticar com paciência, sentar, sentar, sentar, e instalar a prática com firmeza em sua vida diária, para ele haverá, cada vez mais, um sabor de alegria numa relação em que o não-eu se encontra com o não-eu. Em outras palavras, a abertura encontra a abertura. É muito raro, mas acontece. E quando ocorre, não sei sequer se podemos aplicar o termo "relacionamento". Quem está ali para se relacionar com quem? Não se pode dizer que o não-eu se relaciona com o não-eu. Para esse estado, portanto, não há palavras. Nesse amor e compaixão atemporais, como disse o Terceiro Patriarca: "Não existe ontem, não existe amanhã, não existe hoje".




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