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Sem esperança
Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro"Sempre Zen"

Há poucos dias fui informada que um amigo se suicidara, alguém que eu não via há muitos anos. Já naquela ocasião o suicídio era tudo que ele conseguia mencionar e, por isso, não me espantei com a notícia. Não que para mim a morte seja uma tragédia. Todos morremos; essa não é a tragédia. Talvez nada seja uma tragédia, mas penso que podemos afirmar que viver sem apreciar a vida é, pelo menos, uma pena.

É uma oportunidade preciosa a que temos, estarmos vivos como seres humanos. Tem sido dito que a chance de ter um vida humana é algo como ser escolhido como um grão de areia dentre todos os grãos de uma praia.

É uma rara oportunidade e, no entanto, de algum modo, como no caso do meu amigo, acontece algum erro. Parte desse erro está presente em todos nós, na medida em que não damos o justo valor ao mero fato de estarmos vivos.

Hoje, portanto, quero falar a respeito de não ter esperança. Parece terrível, não é? Mas, na verdade, não é nenhum pouco terrível. Uma vida vivida sem esperança é pacífica, alegre e compadecida. Enquanto nos identificarmos com esta mente e este corpo — e todos fazem isso —esperaremos que aconteçam coisas que, em nossa opinião, tomarão conta de nosso corpo e de nossa mente. Esperamos ter sucesso. Esperamos ter saúde. Esperamos alcançar a iluminação. Há todo tipo de coisa que esperamos nos aconteça; e, evidentemente, toda forma de esperança consiste em dimensionar o passado e projetá-lo no futuro.

A pessoa que já praticou o sentar, seja qual for o período que durou sua prática, sabe que não existe passado ou futuro, exceto em nossa mente. Não há nada além do si-mesmo e o si-mesmo está sempre aí, presente. Não está oculto. Corremos para todo lado como loucos, tentando encontrar algo chamado si-mesmo, esse maravilhoso e oculte si-mesmo. Onde ele estará oculte? Esperamos por alguma coisa que venha tomar conta desse pequenino si-mesmo porque não nos damos conta de que já somos si-mesmo. Nada há a nossa volta que não seja si-mesmo. O que estamos procurando?

Há poucos dias um aluno me emprestou um livro que continha um texto de Dõgen Zenji chamado Tenzo Kyõkun. São suas idéias do que um tenzo — o cozinheiro-chefe —deve ser: quais as qualidades e a vida que um tenzo, a seu ver, deve ter.

Do ponto de vista do Dõgen Zenji, o tenzo deve ser um dos mais maduros e meticulosos alunos do monastério. Se sua prática não é aquela que um tenzo deve ter, então, segundo o Dõgen Zenji, a vida de todo o monastério sofre. É claro que o autor, ao descrever essas qualidades desejáveis no tenzo além das instruções de como ele deve proceder em seu trabalho, não está apenas se referindo a ele. Está se pronunciando sobre a vida de todo e qualquer estudioso do zen, de qualquer bodhisattva. Por isso é uma leitura muito instrutiva e pertinente.

O que é que descobrimos, então, enquanto ele descreve a vida de um tenzo iluminado? Alguma visão mística? Algum estado de vertiginosa entrega? Absolutamente não. Há muitos parágrafos sobre como separar a areia do arroz ou o arroz da areia. Explicações muito, muito detalhadas. Não há nada na administração da cozinha que Dõgen Zenji tenha deixado de fora. Ele escreve sobre onde colocar as conchas, como pendurá-las etc.

Quero mostrar-lhes um parágrafo: "A seguir, você não deve, descuidadamente, jogar fora a água que restou depois da lavagem do arroz. Antigamente, empregava-se um saco de pano para filtrá-la antes de jogá-la fora. Depois de terminar a lavagem do arroz, coloque-o na panela. Tome muito cuidado para que um camundongo não caia por acidente lá dentro. Em nenhuma circunstância permita que alguém que, por acaso, estiver passando pela cozinha ponha o dedo na panela ou olhe lá dentro"7.

O que Dõgen Zenji está nos dizendo? Ele não escreveu isso apenas para o tenzo. O que podemos todos nós aprender?

Com seu texto, Dõgen Zenji está repetindo uma famosa história. Se a entendermos, entenderemos na realidade o que é a prática zen. Quando jovem, ele se dirigiu à China para visitar monastérios, desejando praticar e estudar. Certo dia, num deles, numa tarde de junho que estava especialmente quente, ele viu o mais idoso dos tenzo trabalhando do lado de fora da cozinha. Ele estava espalhando cogumelos para que secassem sobre uma esteira de palha.

Estava usando uma vara de bambu e não tinha chapéu na cabeça. Os raios do sol estavam tão fortes que os ladrilhos do caminho queimavam os pés. (Ele) trabalhava sem parar e estava coberto de suor. Não pude evitar de sentir que aquele era um trabalho demasiado árduo para ele. Suas costas estavam curvadas num arco teso e suas longas sobrancelhas eram inteiramente brancas.

Aproximei-me e perguntei sua idade. Ele respondeu que tinha 68 anos. A seguir perguntei-lhe por que não usava um assistente.

Ele respondeu: "Os outros não são eu".

"O senhor tem razão", ponderei, "posso ver que seu trabalho é a atividade do Budadharma, mas por que está trabalhando tanto, sob um sol tão abrasador?".

Ele respondeu: "Se eu não o fizer agora, quando mais poderei fazê-lo?".

Não havia mais nada que eu pudesse dizer. Enquanto continuava atravessando aquela passagem, comecei a sentir profundamente o significado do papel do tenzo".

O tenso vetusto salientou: "Os outros não são eu". Consideremos este depoimento. O que ele está dizendo é que sua vida é absoluta. Ninguém pode vivê-la em seu lugar. Ninguém mais pode senti-la. Ninguém pode ofertá-la a ele. Meu trabalho, meu sofrimento, minha alegria são absolutos. Não há meios, por exemplo, de vocês sentirem a dor no dedo do meu pé, ou de eu sentir a dor no pé de vocês. Não há como. Vocês não podem engolir por mim. Não podem dormir por mim. Aí está o paradoxo: quando me aproprio inteiramente da dor, da alegria, da responsabilidade pela minha vida — quando enxergo com clareza este ponto — então estou livre. Não tenho esperanças. Não tenho necessidade de mais nada.

Porém, costumamos viver em vão, na esperança de que alguma coisa ou alguém faça nossa vida ficar mais fácil, mais agradável. Gastamos quase todo o nosso tempo tentando dispor a vida de tal sorte que a vontade venha a se tornar realidade. Quando, pelo contrário, a alegria de nossa vida está em fazer totalmente, e suportar, apenas, o que deve ser suportado, em fazer só o que tem de ser feito. Não é nem o que tem de ser feito: está ali para ser feito, então o fazemos.

Dõgen Zenji fala do si-mesmo que se instala naturalmente no si-mesmo. O que ele deseja dizer com isso? Que apenas a pessoa pode vivenciar a própria dor, a própria alegria. Se uma impressão que chega até sua vida não é recebida, naquele instante você morreu um pouquinho. Ninguém vive completamente assim, mas ainda não é preciso que percamos 90% das experiências de nossa vida.

"Se eu não o fizer agora, quando é que poderei fazê-lo?" Só eu mesmo posso tomar de mim todo o dia, da manhã à noite. Só eu posso receber vida. É esse contato, segundo a segundo, que constitui o tema sobre o qual Dôgen Zenji se pronuncia quando descreve o dia do tenso. Atentem para isso, para aquilo e para aquilo outro. Não é só lavar o arroz, mas fazê-lo com cuidado, grão por grão. Não é apenas jogar a água fora. Cada bocado de alimento. Cada palavra que pronuncio. Cada palavra que vocês pronunciam. Cada encontro, cada segundo. É isso. Não cantarolar distraído, com a mente em outra parte. Não fazer pela metade a limpeza da louça, nem qualquer outra coisa.

Lembro-me de uma época em que eu costumava devanear literalmente durante quatro a cinco horas todos os dias. Agora vejo com tristeza muitas pessoas desperdiçando a própria vida em devaneios. Por vezes é um sonho como o parceiro ou a parceira ideal; ficam sonhando o tempo todo. Mas quando nossa vida está nos sonhos e nas esperanças, então o que a vida pode nos oferecer — aquele homem ou aquela mulher logo ali à nossa frente, comuns, sem encantos especiais — essas maravilhas da vida, escapam-nos porque estamos na esperança de alguma coisa muito especial, de algum ideal. O que Dõgen Zenji está nos alertando é que a prática real não tem nada que ver com isso.

Estamos novamente dizendo que o zazen, que o sentar, é a iluminação. Por quê? Porque um segundo após o outro, enquanto estamos na prática, é só isso. O vetusto tenso espalhando algas: eis uma vida apaixonada, passá-la preparando comida para os outros. Na realidade, todos nós estamos o tempo todo preparando alimento para os outros. Esse "alimento" pode ser datilografar, fazer exercícios de matemática ou física, tomar conta de nossos filhos. Entretanto, levamos nossa vida com essa atitude de consideração por nosso trabalho? Ou estamos sempre esperando que "em algum lugar tenha de haver mais do que isto"? Sim, estamos todos nessa expectativa.

Nós não só esperamos, como na realidade entregamos nossa vida a essa esperança, a esses pensamentos e a essas fantasias em vão. Quando eles não "produzem" para nós os resultados, ficamos ansiosos e até mesmo desesperados.

Um de meus alunos contou-me uma boa história faz pouco tempo. Trata-se de um homem que estava sentado no telhado porque uma enchente invadia sua aldeia. A água já estava no nível do telhado quando vieram salvá-lo num bote a remo. A equipe esforçou-se muito para conseguir chegar até ele e quando finalmente conseguiram, gritaram para que descesse e entrasse no bote. Ele respondeu: "Não, não. Deus virá salvar-me". A água continuava elevando-se, cada vez mais e ele subia cada vez mais para o topo do telhado. A água estava muito turbulenta, mas um outro bote ainda conseguiu aproximar-se dele. De novo suplicaram-lhe que entrasse no bote para se salvar. E mais uma vez ele respondeu: "Não, não, não. Deus irá salvar-me. Estou rezando. Deus irá salvar-me!". Enfim quando a água já estava praticamente cobrindo-o todo, só sua cabeça estava de fora. Veio um helicóptero, que pairou exatamente sobre ele. Chamaram-no: "Venha logo. Essa é sua última oportunidade! Suba!". Ele ainda comentou: "Não, não, não. Deus irá salvar-me!". Por fim sua cabeça submergiu e ele se afogou. Quando chegou ao céu, queixou-se a Deus: "Deus, por que Você não me salvou?". Deus disse: "Mas Eu tentei: mandei dois botes a remo e um helicóptero".

Passamos muito tempo procurando uma coisa chamada verdade. E ela não existe, exceto em cada segundo, em cada atividade de nossa vida. Contudo, nossa vã esperança por um lugar de descanso em algum lugar faz com que ignoremos e desconsideremos aquilo que temos bem à nossa frente. Por isso, nos sesshins, no zazen, o que significa não ter esperança?

Claro que significa fazer realmente o zazen, apenas sentar. Não há nada de errado com os sonhos e as fantasias. Apenas não se apeguem a eles; considerem como são irreais e afastem-se. Permaneçam com a única coisa que é real: a vivência da respiração, do corpo e do meio imediato.

No entanto, ninguém quer abandonar a esperança. Para ser honesta, ninguém irá abandoná-la de uma vez e pronto. Mas podemos ter períodos nos quais, durante algumas horas ou minutos, existe só o que está aí, somente o fluir. Então, permanecemos mais em contato com a única coisa que nunca teremos, que é nossa vida.

Portanto, se praticarmos dessa forma, qual a recompensa que teremos? Se de fato praticarmos desse jeito, tudo que temos será levado embora. O que obteremos em troca? A resposta é clara: nada. Contudo, não tenhamos expectativas e esperanças. Não obteremos coisa alguma. Obteremos nossa vida, é claro, mas isso já temos. Portanto, não sejamos como aquele meu amigo que não consegue apreciar a vida e sua prática. Esta vida é o nirvana1. Onde pensávamos que ela estaria?

Lembremo-nos do velho tenzo. Se praticarmos do modo como ele espalhava as algas, então seremos recompensados com esse absolutamente nada.


Notas:

1. Nirvana é a extinção da ignorância, o desejo e o despertar da Paz e da Liberdade interiores, O termo também pode ser empregado no sentido de um retorno à pureza origina! da natureza de Buda depois da dissolução do corpo físico. E a perfeita liberdade de um estado incondicionado.



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