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O desenvovimento do ego de Chögyam Trungpa Rinpoche
do livro "Além do Materialismo Espiritual" Visto que vamos examinar agora o caminho budista do principio ao fim, desde a mente do principiante até a do iluminado, tenho para mim que será melhor começar por alguma coisa concreta e realística, ou seja, o campo que vamos cultivar. Seria tolice estudar assuntos mais adiantados antes de nos familiarizarmos com o ponto de partida, a natureza do ego. Temos um dito no Tibet segundo o qual não adianta apanhar a língua enquanto a cabeça não estiver devidamente cozida. Toda prática precisa dessa compreensão básica do ponto de partida, o material com que estamos trabalhando. Se não conhecermos o material com que estamos trabalhando, nosso estudo será inútil; as especulações sobre a meta se tornarão mera fantasia. Tais especulações poderão assumir a forma de idéias avançadas e descrições de experiências espirituais, mas apenas exploram os aspectos mais fracos da natureza humana. nossas expectativas e desejos de ver e ouvir algo colorido, algo invulgar. Se começarmos nossos estudos com esses sonhos de experiências extraordinárias, esclarecedoras e dramáticas, desenvolveremos nossas expectativas e preconceitos de modo que, mais tarde, quando estivermos realmente trabalhando no caminho, teremos a mente muito mais ocupada com o que será do que com o que é. É destrutivo e injusto para as pessoas o jogo com suas fraquezas, expectativas e sonhos, em lugar de se apresentar o ponto de partida realístico do que elas são. É necessário, portanto, começar pelo que somos e por que estamos procurando. Todas as tradições religiosas, de um modo geral, lidam com esse material, aludindo, seja ao alaya-vijnana, seja ao pecado original, à queda do homem ou a base do ego. A maioria das religiões se refere a esses assuntos de modo um tanto pejorativo, mas não me parece coisa tão chocante ou terrível Não devemos envergonhar-nos do que somos. Como seres sencientes temos antecedentes maravilhosos, que podem não ser particularmente iluminados, tranqüilos ou inteligentes. Não obstante, temos um solo muito bom para cultivar, em que podemos plantar qualquer coisa Por conseguinte, ao tratar deste assunto, não estamos condenando nem tentando eliminar nossa psicologia do ego; estamos simplesmente reconhecendo-a, vendo-a como ela é. Com efeito, a compreensão do ego é o fundamento do Budismo. Vejamos, pois, como se desenvolve o ego. Fundamentalmente, só existe o espaço aberto, o solo básico, o que realmente somos. É esse o estado primordial de nossa mente, antes da criação do ego, havendo abertura básica, liberdade básica, espaço, e temos agora, como sempre tivemos, essa abertura. Tomemos, por exemplo, nossa vida e nossos padrões de pensamento cotidianos. Quando vemos um objeto, ocorre no primeiro instante súbita percepção sem lógica nem conceituação em relação a ele; apenas o percebemos no campo aberto. Então, de imediato, caímos em pânico e passamos a correr desorientadamente, tentando acrescentar-lhe alguma coisa, ou encontrar um nome para ele, ou ainda achando uma classificação para que possamos localizá-lo e categorizá-lo. Pouco a pouco, as coisas se desenvolvem a partir desse ponto. Esse desenvolvimento não assume a forma de uma entidade sólida. Ao contrário, um desenvolvimento ilusório, a crença equivocada num "eu" ou "ego". A mente confusa tende a ver-se como coisa sólida, em funcionamento, mas não passa de um conjunto de tendências e eventos. Na terminologia budista, esse conjunto é conhecido como os cinco skandhas ou as cinco pilhas [montes, agregados]. Assim, talvez possamos acompanhar o desenvolvimento dos cinco skandhas. O ponto inicial é a existência de um espaço aberto, que não pertence a ninguém. Há sempre a inteligência primordial ligada ao espaço e à abertura. Vidya, que significa "inteligência" em sânscrito; precisão, agudeza, agudeza com o espaço, agudeza com o lugar em que se pode colocar coisas, trocar coisas. Poderíamos dizer um espaçoso salão em que há lugar para dançar, em que não corremos o risco de derrubar nem tropeçar em coisas, pois o espaço é completamente aberto. Nós somos esse espaço, nós "somos um" com ele, com vidya, inteligência e abertura. Mas se o somos durante o tempo todo, de onde veio a confusão, para onde foi o espaço, o que aconteceu? Na realidade, nada aconteceu. Apenas nos tornamos demasiado ativos naquele espaço. Por ser vasto, ele nos convida a dançar; mas a nossa dança torna-se um pouco ativa demais, principiamos a girar mais do que o necessário para expressar o espaço. Nesse ponto, nos tornamos conscientes de nós mesmos, cônscios de que "eu" estou dançando no espaço. A essa altura, o espaço deixa de ser espaço como tal. Faz-se sólido. Em lugar de "sermos um" com ele, percebemos o espaço sólido como entidade separada, tangível. Essa é a primeira experiência de dualidade; o espaço e eu, eu estou dançando neste espaço, e essa vastidão é uma coisa sólida, separada. Dualidade significa "o espaço e eu", mais do que a completa identificação com o espaço. Assim, nasce a "forma", o "outro". Ocorre, então, uma espécie de desmaio, no sentido de que nos esquecemos do que estávamos fazendo. Há uma lacuna. Tendo criado o espaço solidificado, somos engolfados por ele e começamos a perder-nos nele. Há um escurecimento e, depois, repentinamente, um despertar. Quando despertamos, recusamo-nos a ver o espaço como abertura, recusamo-nos a ver-lhe a qualidade suave e arejada. Ignoramo-lo completamente, e a isso se chama avidya. "A"; significa "negação", vidya; significa "inteligência", avidya; significa "não-inteligência". Porque essa extrema inteligência se transformou na percepção do espaço sólido, porque essa inteligência luminosa, aguda, precisa e fluente, se tornou estática, dá-se-lhe o nome de avidya, ou seja, "ignorância". Ignoramos deliberadamente. Não nos satisfazemos apenas em dançar no espaço, mas queremos ter um parceiro e, assim, escolhemos o espaço por parceiro. Se escolhermos o espaço por parceiro de dança, haveremos de querer, evidentemente, que ele dance conosco. A fim de tê-lo como parceiro, temos de solidificá-lo e ignorar-lhe a qualidade fluente, aberta. Isso é avidya, ignorância, ignorar a inteligência. É o ápice do Primeiro skandha, a criação da ignorância-forma. Com efeito, este skandha, o skandha da ignorância-forma tem três aspectos ou fases diferentes que podemos examinar empregando outra metáfora. Suponhamos que, no princípio, haja uma planície aberta, um simples deserto sem nenhuma característica especial. Eis aí como somos, o que somos. Somos muito simples e básicos. E, todavia, há um sol que brilha, uma lua que brilha, e haverá luzes e cores, a textura do deserto. Haverá alguma sensação da energia que brinca entre o céu e a terra. E, assim por diante, indefinidamente. Depois, estranhamente, surge de improviso, alguém para notar tudo isso. Como se um dos grãos da areia espichasse o pescoço para fora e principiasse o olhar à sua volta. Nós somos o grão de areia, chegando à conclusão do nosso estado de separação. Este é o "nascimento da ignorância" em seu primeiro estágio, uma espécie de reação química. A dualidade começou. À segunda fase da forma-ignorância dá-se o nome de "a ignorância nascida no interior". Tendo reparado que somos isolados, sobrevém a sensação de que sempre fomos assim. É uma inépcia, o instinto da constrangedora consciência de si mesmo. É também uma desculpa para permanecermos independentes, um grão de areia individual. Um tipo agressivo de ignorância, embora não exatamente agressivo no sentido de colérico; ele ainda não se desenvolveu tanto assim. Trata-se antes de agressão no sentido de nos sentirmos desajeitados, desequilibrados e, por isso mesmo, de tentarmos garantir o nosso território, de criar um abrigo para nós. É a atitude do indivíduo confuso e separado, e isso é tudo. Nós nos identificamos como separados da paisagem básica do espaço e da abertura. O terceiro tipo de ignorância é a "ignorância que se observa", que se vigia. há um sentido de nos vermos como um objeto externo, o que nos conduz à primeira noção do "outro". Estamos começando a relacionar-nos com um mundo chamado "externo". É por isso que os três estágios da ignorância constituem o skandha da forma-ignorância; estamos começando a criar o mundo das formas. Quando falamos de "ignorância", não queremos, de maneira alguma, dizer estupidez. Em certo sentido, a ignorância é muito inteligente, mas é uma inteligência bidirecional. Isto é, reagimos meramente às nossas projeções em lugar de diretamente limitar-nos a ver o que é. Não há nenhuma situação de "deixar ser", porque ignoramos o que somos durante o tempo todo. Esta é a definição básica de ignorância. O desenvolvimento seguinte é o estabelecimento de um mecanismo de defesa para proteger nossa ignorância; esse mecanismo é a Sensação, o Segundo Skandha. Desde que já ignoramos o espaço aberto, gostaríamos de sentir as qualidades do espaço sólido a fim de trazer completa satisfação à índole gananciosa que estamos desenvolvendo. Claro está que o espaço não significa apenas o espaço nu, pois contém cor e energia Há intensas e magníficas exibições de cor e energia, belas e pitorescas. Mas nós as ignoramos. Em vez disso, há apenas uma versão solidificada daquela cor; e a cor passa a ser cor capturada, e a energia passa a ser energia capturada, porque nós solidificamos todo o espaço e o transformamos no "outro". Assim, começamos a estender a mão e a perceber as qualidades do "outro". Fazendo-o, asseguramo-nos da nossa existência. "Se posso sentir aquilo ali, conseqüentemente estou aqui".Toda vez que acontece alguma coisa, estendemos a mão para sentir se a situação é sedutora, ameaçadora ou neutra. Toda vez que ocorre uma repentina separação, uma sensação de não conhecer a relação entre "isto" e "aquilo", tendemos a procurar sentir o chão. Tal é o mecanismo de sensação extremamente eficiente que começamos a estabelecer o Segundo Skandha. O mecanismo seguinte, destinado a reforçar o estabelecimento do ego é o Terceiro Skandha, Percepção-Impulso. Começamos a nos fascinar pela nossa própria criação, cores e as energias estáticas, queremos nos relacionar com elas e, dessa maneira, gradativamente, principiamos a investigá-las. Para podermos investigar com eficiência, é preciso haver uma espécie de sistema de quadro de distribuição, um controlador do mecanismo da sensação. Esta transmite suas informações ao quadro central de distribuição, que é o ato da percepção. De acordo com as informações, nós fazemos julgamentos, nós reagimos. A nossa reação favorável, contrária ou indiferente é automaticamente determinada pela burocracia da sensação e da percepção. Se percebermos a situação e ela nos parecer ameaçadora, nós a empurraremos para longe. Se nos parecer atraente, puxá-la-emos para junto de nós. Se nos parecer neutra, nós lhe seremos indiferentes. São esses os três tipos de impulsos: ódio, desejo e estupidez. Assim sendo, a percepção se refere à recepção de informações do mundo exterior e o impulso se refere à nossa resposta a essas informações. O desenvolvimento seguinte é o Quarto Skandha, Conceito. A Percepção Impulso é uma reação automática à sensação intuitiva Entretanto, esse tipo de reação automática realmente não basta a uma defesa destinada a proteger nossa ignorância e a garantir nossa segurança. A fim de proteger-nos e enganar-nos completa e adequadamente, precisamos do intelecto, da capacidade de nomear e categorizar as coisas. Assim, rotulamos coisas e eventos qualificando-os de "bons", "maus", "belos", "feios", etc., de acordo com o impulso que julgamos apropriados a eles. Nessas condições, a estrutura do ego se torna gradativamente mais e mais pesada, mais e mais forte. Até este ponto o desenvolvimento do ego tem sido apenas um processo de ação e reação; mas de agora em diante, aos poucos, o ego se desenvolve para além do instinto simiesco e toma-se mais sofisticado. Começamos a experimentar a especulação intelectual, confirmando-nos ou interpretando nos, colocando-nos em certas situações lógicas, interpretativas. A natureza básica do intelecto é muito lógica. Haverá, obviamente, tendência para trabalhar em favor de uma condição positiva: confirmar nossa experiência, interpretar a fraqueza como força fabricar uma lógica de segurança, confirmar nossa ignorância. Em certo sentido, pode-se dizer que a inteligência primordial opera o tempo todo, mas está sendo empregada pela fixação dualista, a ignorância Nos estados iniciais do desenvolvimento do ego, essa inteligência opera como a agudeza intuitiva da sensação. Mais tarde, opera em forma de intelecto. Na realidade, parece não existir o ego; nada existe parecido com o "eu sou". Trata-se de acúmulo de uma porção de coisas. É uma "brilhante obra de arte", um produto do intelecto que diz: "Vamos dar-lhe um nome. Vamos chamá-lo de qualquer coisa, vamos chamá-lo "eu sou", o que é muito inteligente. "Eu" é o produto do intelecto, o rótulo que unifica num todo o desenvolvimento desorganizado e disperso do ego. O derradeiro estágio do desenvolvimento do ego é o Quinto Skandha, a Consciência. Nesse nível se processa uma amálgama: a inteligência intuitiva do Segundo Skandha, a energia do Terceiro e a intelectualização do Quarto se misturam para produzir pensamentos e emoções. Nessas condições, no nível do Quinto Skandha, encontramos os Seis Reinos assim como os padrões incontroláveis e ilógicos do pensamento discursivo. Esse é o retrato completo do ego. Foi a esse ponto que todos nós chegamos em nosso estudo da psicologia e da meditação budistas. Há uma metáfora na literatura budista comumente empregada para descrever todo esse processo, a criação e o desenvolvimento do ego. Refere-se a um macaco encerrado numa casa vazia, uma casa de cinco janelas, que representam os cinco sentidos. O macaco é curioso, vive enfiando a cabeça pelas cinco janelas e pulando para cima e para baixo, sem parar. É um macaco cativo numa casa vazia. Uma casa sólida, diferente da mata em que ele costumava saltar e balançar-se, diferente das árvores em que escutava o vento que se movia e o farfalhar das folhas e dos galhos. Todas essas coisas se tornaram completamente solidificadas. De fato, a própria mata passou a ser a sua casa sólida, a sua prisão. Em lugar de encarapitar-se numa árvore, o macaco curioso foi emparedado por um mundo sólido, como se uma coisa que flui, uma impressionante e bela catarata, se houvesse, de repente, congelado. A casa congelada, feita de cores e energias congeladas, está completamente imóvel. Esse parece ser o ponto em que o tempo começa como passado, futuro e presente. O fluxo das coisas torna-se tempo tangível, sólida idéia do tempo. O macaco curioso desperta do seu desmaio, mas não desperta completamente. Desperta para encontrar-se preso no interior de uma casa sólida, claustrofóbica, de apenas cinco janelas. Ele se aborrece, como se vivesse cativo num jardim zoológico por trás de barras de ferro, e procura explorar as barras, subindo e descendo por elas. O fato de haver sido capturado não tem muita importância; mas a idéia da captura é aumentada mil vezes em virtude do seu fascínio por ela. Quando estamos fascinados, o sentido da claustrofobia torna-se mais e mais vívido, mais e mais agudo, porque começamos a explorar o nosso aprisionamento. A fascinação, na verdade, é parte da razão por que ele permanece prisioneiro, capturado por ela. No principio, evidentemente, houve o súbito desmaio, que lhe confirmou a crença num mundo sólido. Mas agora, tendo aceitado a solidez como verdadeira, está preso na armadilha do seu envolvimento nela. É claro que o macaco curioso não investiga o tempo todo. Começa a ficar agitado, começa a sentir que algo é muito repetitivo e desinteressante e torna-se neurótico. Ávido de entretenimento busca sentir e apreciar a textura da parede, tentando certificar-se de que a aparente solidez é realmente sólida A seguir, certo de que o espaço é sólido, o macaco passa a se relacionar com ele, agarrando-o, repelindo-o ou ignorando-o. Se tentar agarrar o espaço a fim de possui-lo como sua própria experiência, sua própria descoberta, sua própria compreensão, isso é desejo. Ou, se o espaço lhe parece uma prisão, e ele tenta sair dela à murros e pontapés, lutando com vigor cada vez maior, isso é ódio. O ódio não é somente a mentalidade da destruição; mais do que isso, é uma sensação de defesa, de defesa de si mesmo contra a claustrofobia O macaco não sente necessariamente que há um adversário ou inimigo se aproximando; ele simplesmente deseja fugir da prisão. Finalmente, o macaco pode tentar não tomar conhecimento de que é prisioneiro ou de que existe algo de sedutor em seu ambiente. Age como se fosse surdo e mudo e, portanto, mostra-se indiferente e preguiçoso em relação ao que acontece ao seu redor. Isso é estupidez. Retrocedendo um pouco, podemos dizer que o macaco nasceu em sua casa ao despertar do desmaio. Não sabe como chegou àquela prisão, por isso presume que sempre esteve lá, esquecido de que ele próprio solidificou o espaço em paredes. Depois, sente a textura das paredes, o que é o Segundo Skandha, Sensação. Depois, relaciona-se com a casa em termos de desejo, ódio e estupidez, o Terceiro Skandha, Percepção-Impulso. Depois, tendo desenvolvido essas três maneiras de relacionar-se com a casa, o macaco se põe a rotulá-la e categorizá-la: "Isto é uma janela. Este canto é agradável. Aquela parede me assusta e é má". Desenvolve uma estrutura conceitual que lhe permite rotular, categorizar e avaliar a sua casa, o seu mundo, de acordo com o que sente por eles, se os deseja, se os odeia ou se lhes é indiferente. Esse é o Quarto Skandha, Conceito. O desenvolvimento do macaco até o Quarto Skanda foi razoavelmente lógico e previsível. Mas o padrão de desenvolvimento começa a se desagregar quando ele entra no Quinto Skandha, Consciência O padrão de pensamento torna-se irregular e imprevisível e o macaco começa a desvairar, a sonhar. Quando falamos em "desvario" ou "sonho", queremos dizer que estamos dando às coisas e aos acontecimentos um valor que eles podem não ter. Possuímos opiniões já definidas sobre o modo como são e deveriam ser as coisas. Isso é projeção: projetamos a nossa versão das coisas sobre o que está ali. Afundamos assim, completamente, num mundo de nossa própria criação, um mundo de valores e opiniões conflitantes. O desvario, nesse sentido, é uma interpretação errônea das coisas e dos eventos, que empresta ao mundo fenomenal significados que ele não tem. Isso é o que o macaco principia a experimentar no nível do Quinto Skandha. Tendo tentado fugir e fracassado, sente-se deprimido, indefeso, e vai-se tornando inteiramente louco. Porque está tão cansado de lutar, é uma tentação para ele se relaxar e deixar a mente vagabundear e desvairar. Esta é a criação dos Seis Lokas ou Seis Reinos. Há muita discussão na tradição budista acerca de seres infernais, seres celestiais, o mundo humano, o reino animal e outros estados psicológicos de ser. São estes os diferentes tipos de projeções, os mundos de sonho que criamos para nós. Tendo lutado e não conseguido fugir, tendo experimentado a claustrofobia e a dor, o macaco começa a almejar algo bom, algo belo e sedutor. Por isso, o primeiro reino com que começa a sonhar é o Deva Loka, o Reino dos Deuses, o "céu", lugar cheio de belas e esplendidas coisas. O macaco sonha sair andando de casa, caminhar por campos luxuriantes, comer frutos maduros, sentar-se e balouçar-se nas árvores, viver uma vida de liberdade e sossego. Começa a sonhar também com o Reino dos Asuras, ou Reino dos Deuses Invejosos. Tendo experimentado o sonho do céu, o macaco quer defender e conservar sua grande ventura e felicidade. Sofre a paranóia, preocupando-se que outros possam tentar roubar-lhe os tesouros e, assim, começa a sentir inveja. Orgulhoso de si próprio, satisfez-se com a sua criação do Reino dos Deuses, e isso o levou à inveja do Reino dos Asuras. Daí ele percebe também a qualidade quase terrena dessas experiências. Em vez de alternar simplesmente entre a inveja e o orgulho, começa a sentir-se à vontade, em casa, no "mundo humano", o "mundo terreno". O mundo cujos habitantes levam uma vida regular, fazem as coisas de maneira comum, de um modo mundano. É o Reino Humano. Entretanto, o macaco também sente que alguma coisa é meio obtusa, que alguma coisa não está fluindo direito, porque, à medida que progride do Reino dos Deuses para o Reino dos Deuses Invejosos e para o Reino dos Seres Humanos; e as suas alucinações se tomam mais e mais sólidas, todo esse desenvolvimento começa a parecer-lhe pesado e estúpido. Nesse ponto, ele nasce no Reino animal. Preferiria rastejar, mugir ou latir a desfrutar o prazer do orgulho ou da inveja. Esta é a simplicidade dos animais. A seguir, o processo se intensifica, e o macaco passa a experimentar uma sensação desesperada de inanição, porque realmente não deseja descer para nenhum dos reinos inferiores. Gostaria de voltar aos aprazíveis reinos dos deuses; e começa a sentir fome e sede, uma tremenda saudade do que se lembra de ter sido outrora. Esse é o Reino dos Espectros Famintos ou Reino dos Pretas. Ocorre, então, súbita perda de fé e o macaco se põe a duvidar de si mesmo e do seu mundo, começa a reagir com violência. Tudo é um terrível pesadelo. Compreende que o pesadelo não pode ser verdadeiro e começa a odiar-se por haver criado todo esse horror. É o sonho do Reino do Inferno, o último dos Seis Reinos. Em todo o correr do desenvolvimento dos Seis Reinos, o macaco experimentou pensamentos discursivos, idéias, fantasias e padrões inteiros de pensamento. Até o nível do Quinto Skandha, o seu processo de evolução psicológica foi muito regular e previsível. A partir do Primeiro Skandha, cada desenvolvimento sucessivo surgiu num padrão sistemático, como o sobrepor das telhas de um telhado. Mas agora o estado de espírito do macaco torna-se muito deformado e intranqüilo; subitamente esse quebra-cabeça irrompe, e seus padrões de pensamento tornam-se irregulares e imprevisíveis. Parece ser este o nosso estado de espírito quando chegamos aos ensinamentos e à prática da meditação. E é a partir desse ponto que devemos iniciar a nossa prática. Penso que é muito importante discutir a base do caminho – o ego, a nossa confusão – antes de falarmos em libertação e liberdade. Seria muito perigoso se eu me limitasse apenas a discutir a experiência da libertação. E por isso mesmo que começamos considerando o desenvolvimento do ego; é uma espécie de retrato psicológico de nossos estados mentais. Receio que não tenha sido especialmente agradável essa explanação; mas temos de enfrentar os fatos. Parece ser este o processo de trabalhar no caminho. P.- Pode explicar algo mais sobre o que chamou de desmaio? R: Não é nada particularmente profundo. Acontece apenas que, no nível do Primeiro Skandha, trabalhamos com muito afinco tentando solidificar o espaço. Trabalhamos tanto e com tanta pressa que a inteligência, de repente, sofre um colapso. Poderíamos dizer que isto é uma espécie de satori inverso, uma experiência inversa de iluminação, a experiência da ignorância. Entramos de repente num transe, em conseqüência de havermos trabalhado com tanto empenho. Toda essa solidez é alguma coisa que realmente realizamos, uma obra-prima. E, tendo-a realizado completamente, súbito nos vemos engolfados por ela. É uma meditação desse gênero, uma espécie de samadhi ao contrário. P: Crê que as pessoas devem ter consciência da morte para estarem realmente vivas? R: Não creio que tenhamos de estar particularmente conscientes da morte, no sentido de analisá-la, mas temos de ver o que somos. Tendemos, não raro, a procurar o lado positivo, a beleza da espiritualidade, e a ignorar-nos como somos. Esse é o maior perigo. Se estivermos empenhados na análise de nós mesmos, nossa prática espiritual estará tentando encontrar alguma conclusão final, uma derradeira auto-ilusão. A inteligência do ego é muito talentosa, ela pode distorcer qualquer coisa. Se nos apegarmos às idéias de espiritualidade, ou de auto-análise, ou de transcendência do ego, este se apossa imediatamente delas e as traduz em auto-ilusão. P.- Quando o macaco começa a desvairar, é conseqüência de alguma coisa que conheceu antes? De onde provém a alucinação? R: É uma espécie de instinto, um instinto secundário, o instinto simiesco que todos temos. Se houver dor, sonharemos com o prazer, para contrastar. Há o impulso inato de defender-nos, de estabelecermos o nosso território. P.- Providos apenas com o nível de consciência que temos agora, estaremos destinados a lutar e pelejar desesperançadamente nesse nível, a menos que possamos voltar ao espaço que o sr. descreveu? R: É claro que teremos de lutar o tempo todo, não há fim para isso. Poderíamos continuar falando, para todo o sempre, sobre a sucessão de lutas que teremos de suportar. Não existe nenhuma outra resposta, a não ser, como você disse, tentar encontrar novamente o espaço primordial. Se assim não for, estaremos presos na atitude psicológica deste em oposição àquele, o que é um obstáculo. Estamos sempre combatendo um adversário. Não há um só momento que deixemos de lutar. O problema é a dualidade, a guerra em termos de mim e meu adversário. A prática da meditação é uma forma completamente diferente de trabalhar. Temos de modificar toda a nossa atitude e maneira de conduzir a vida. Temos de mudar toda a nossa política, por assim dizer. Isso pode ser muito doloroso. De repente, começamos a compreender: "Se eu não lutar, como lidarei com meus inimigos? Estará tudo bem para mim se eu não lutar, mas que dizer deles? Eles, ainda assim, continuarão lá." Esse é o ponto interessante. P.- Ver a parede, reconhecer que estamos ali e não seguirmos adiante - parece uma posição muito perigosa. R: É precisamente esse o ponto: não é perigosa. Poderá ser dolorosa no momento em que compreendermos que a parede é sólida e que estamos presos por ela, mas é esse, justamente, o ponto interessante. P: Mas o sr. não acabou de dizer que o desejo de voltar ao outro estado, o espaço aberto, é instintivo? R: Afirmei sim, mas esse macaco não se deixará apenas ser outra vez. Ele luta continuamente, ou se envolve em alucinações. Nunca pára, nunca permite a si mesmo sentir realmente alguma coisa de maneira adequada. Aí é que está o problema. Eis por que o simples parar, o simples permitir uma lacuna, é o primeiro passo na prática da meditação. P.- Digamos que você tenha uma dificuldade, uma inibição, e está muito consciente dela. A inibição desapareceria pela simples razão de você ter consciência dela? R: O fundamental é não tentar imaginar o modo pelo qual escaparemos do nosso dilema, mas, por ora, precisamos pensar em todas aquelas salas claustrofóbicas em que nos encontramos. Esse é o primeiro passo no aprendizado. Temos de nos identificar realmente conosco e sentir-nos de modo correto, o que nos proporcionará inspiração para estudos posteriores. Seria melhor não falar, ainda, em libertar-nos. P. O Sr. diria que essas salas claustrofóbicas eram construções intelectuais? R: A intensidade da inteligência primordial nos provoca o tempo todo. Por conseguinte, todas essas atividades do macaco não devem ser consideradas como alguma coisa da qual devemos fugir, mas como um produto da inteligência primordial. Quanto mais tentarmos lutar, tanto mais descobriremos que as paredes são efetivamente sólidas. Quanto mais energia empregarmos na luta, tanto mais fortaleceremos as paredes, porque estas precisam da nossa atenção para se solidificarem. Toda vez que dermos mais atenção às pareces. mais sentiremos a desesperança da fuga. P.- O que o macaco percebe quando olha pelas cinco janelas da casa? R: Percebe o Leste, o Oeste, o Sul e o Norte. P.- Como lhe parecem? R: Como um mundo quadrado. P.- E fora da casa? R: Ele continua a ver o mundo quadrado, pela simples razão de vê-lo através de janelas. P. Não vê nada à distância? R: Poderia ver, mas é também uma imagem quadrada; é como pendurar um quadro na parede, não é? P.- O que acontece ao macaco quando toma um pouco de LSD ou de peiote? R: Ele já o tomou. |