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Louca Sabedoria

de Chögyam Trungpa Rinpoche
do livro "Crazy Wisdom", Shambala pub. 1991
Traduzido por Eduardo Padma Dorje em 03/09/2001


1. Padmasambhava e o Materialismo Espiritual

O assunto com que vamos trabalhar aqui é extraordinariamente difícil. É possível que algumas pessoas fiquem extraordinariamente confusas. Ou podem também obter algo. Nós estaremos discutindo Guru Rinpoche, ou como ele é freqüentemente chamado no ocidente, Padmasambhava; estaremos observando sua natureza e os diversos estilos de vida que ele desenvolveu no processo de trabalhar com alunos. Este assunto é muito sutil, e alguns aspectos dele são muito difíceis de colocar em palavras. Espero que ninguém considere essa minha humilde tentativa como um retrato definitivo de Padmasambhava.

Para começar, nós provavelmente precisamos de alguma introdução básica com relação a quem Padmasambhava foi; como ele entra no contexto do Dharma (ensinamentos budistas) em geral; e como ele veio a ser admirado pelos tibetanos em particular.

Padmasambhava foi um professor indiano que trouxe os ensinamentos completos do Dharma budista ao Tibete. Ele permanece nossa fonte de inspiração ainda agora, aqui no ocidente. Nós herdamos seus ensinamentos, e desse ponto de vista, acho que poderíamos dizer que Padmasambhava está vivo e passa bem.

Suponho que a melhor forma de caracterizar Padmasambhava para as pessoas de um contexto ocidental ou cristão é dizer que ele foi um santo. Vamos discutir a profundidade de sua sabedoria e de seu estilo de vida, sua forma habilidosa de se relacionar com os alunos. Os alunos com que ele tinha que lidar eram tibetanos, que eram um povo extraordinariamente selvagem e inculto. Ele foi convidado a vir ao Tibete, mas os tibetanos mostraram pouquíssimo conhecimento sobre como receber e dar boas vindas a um grande guru de outra parte do mundo. Eles eram muito teimosos e muito práticos e diretos - muito terrenos. Eles criaram todos os tipos de obstáculos à atividade de Padmasambhava no Tibete. Porém, os obstáculos não vinham apenas do povo tibetano, mas também de diferenças no clima, relevo, e da situação social como um todo. De alguma forma, a situação de Padmasambhava é muito semelhante a nossa própria situação aqui. Os americanos são hospitaleiros, mas por outro lado há um aspecto muito selvagem e duro na cultura americana. Espiritualmente, a cultura americana não nos leva a apenas apresentar a luz brilhante e esperar que seja aceita.

Assim há uma analogia aqui. Nos termos dessa analogia, os tibetanos são os americanos, e Padmasambhava é ele mesmo.

Antes de entrar em detalhes a respeito da vida e ensinamentos de Padmasambhava, penso que seria apropriado discutir a idéia de um santo na tradição budista. A idéia de um santo na tradição cristã e a idéia de um santo na tradição budista são um tanto conflituosas. Na tradição cristã, um santo é geralmente alguém que tem comunicação direta com Deus, ou que talvez esteja completamente intoxicado com a divindade e por isso seja capaz de dar certas seguranças ao povo. As pessoas podem olhar para o santo como um exemplo de consciência ou desenvolvimento mais elevados.

O enfoque budista à espiritualidade é bem diferente. É não-teísta. Não sustenta o princípio de uma divindade externa. Assim não há possibilidade de obter promessas da divindade e trazê-las de lá para cá. O enfoque budista à espiritualidade está ligado com um despertar interior ao invés de nos relacionarmos com algo exterior. Assim a idéia de um santo como alguém que é capaz de se expandir e se relacionar com um princípio externo, conseguir algo disso, e então compartilhá-lo com os outros é difícil ou não existe do ponto de vista budista.

Um santo no contexto budista - por exemplo, Padmasambhava, ou outro grande ser como o próprio Buda - é alguém que nos dá um exemplo do fato de que seres humanos completamente comuns e confusos podem despertar a si próprios; eles podem se inteirar e acordar a si próprios através de uma situação qualquer da vida. A dor, sofrimento de todos os tipos, a miséria e o caos que fazem parte da vida, começa a acordá-los, sacudi-los. Tendo sido sacudidos, eles começam a questionarem-se: "Quem sou eu? O que sou eu? Como todas estas coisas estão acontecendo?" Então eles vão adiante e percebem que há algo neles que está fazendo estas perguntas, algo que é, de fato, inteligente e não exatamente confuso.

Isto acontece em nossas vidas. Sentimos confusão - parece ser confusão - mas o que a confusão nos traz é algo válido de explorar. As questões que fazemos em meio à nossa confusão são questões potentes, dúvidas que realmente temos. Perguntamos: "Quem sou eu? O que sou eu? O que é isto? O que é a vida?" e assim por diante. Então exploramos mais adiante e perguntamos: "De fato, quem sobre a face da terra perguntou aquilo? Quem é essa pessoa que perguntou ‘Quem eu sou?’ Quem é a pessoa que perguntou ‘O que é?’ ou mesmo ‘o que é o que?’" E persistimos nesse questionamento, cada vez mais profundamente. De certa forma, esta é a espiritualidade não-teísta no seu sentido mais amplo. As inspirações externas não nos estimulam a nos modelarmos para mais inspirações externas. Pelo contrário, as situações externas que existem nos falam de nossa própria confusão, e isso nos faz pensar mais, pensar mais profundamente. Assim que começamos a fazer isto, então é claro surge o outro problema: já que descobrimos quem ou o que somos, como aplicamos o que aprendemos em nossas situações cotidianas? Como colocamos isto em prática?

Parece haver dois enfoques possíveis aqui. Um é tentar viver como gostaríamos de ser. O outro é tentar viver o que nós somos. Tentar viver como gostaríamos de ser é como fingir que somos um ser divino ou uma pessoa realizada, ou o que quer que possamos chamar de modelo. Quando percebemos o que há de errado conosco, qual é nossa fraqueza, quais são nossos problemas e neuroses, a tentação automática é tentar agir exatamente da forma oposta, como se nunca tivéssemos ouvido algo a respeito de estarmos errados ou confusos. Dizemos a nós mesmos: "Pense positivo! Aja como se você estivesse bem". Apesar de sabermos que algo está errado conosco no nível da situação cotidiana, no nível da pia da cozinha, consideramos isso pouco importante. "Vamos esquecer estas ‘más vibrações,’ dizemos. "Vamos pensar do outro jeito. Vamos fingir que somos bons."

Este enfoque é conhecido na tradição budista como materialismo espiritual, que significa não ser realista, ou para usar o jargão hippie, viajar. "Vamos esquecer o mal e fingir que somos bons". Poderíamos classificar como materialismo espiritual qualquer enfoque - seja budista, hindu, judaico ou cristão - que nos conceda técnicas para tentarmos nos associar com o bom, o melhor - ou o bem definitivo, o divino.

Quando nos associamos com o bem, isso nos faz felizes. Nos deleitamos. Pensamos, "Finalmente encontrei uma resposta!" Essa resposta é que a única coisa a fazer é nos considerarmos como já estando livres. Então, tendo estabelecido a posição de que já estamos livres, apenas temos que deixar todas as coisas fluírem.

Então adicionamos mais um toque para reforçar nosso materialismo espiritual: tudo que nós não conhecemos ou não compreendemos em relação com a busca espiritual nós ligamos com descrições nas diversas escrituras sobre o que está além da mente, além das palavras, inefável - o Self inefável, ou qualquer outra coisa. Associamos nossa própria falta de compreensão a respeito das coisas que estão acontecendo conosco com essas coisas inexpressíveis. Dessa forma nossa ignorância se torna a maior descoberta de todas. Podemos ligar essa "grande descoberta" com alguma suposição doutrinária; por exemplo, "o salvador" ou alguma interpretação das escrituras.

Onde não sabíamos nada a respeito de algo, agora "sabemos" algo que na verdade não sabemos. Há algo a nossa frente agora. Não podemos descrevê-lo em termos de palavras, conceitos, ou idéias, mas descobrimos que, para começar, é apenas uma questão de virarmos algo bom. Então temos essa coisa com que começamos: podemos diretamente e deliberadamente traduzir nossa confusão como algo que não é confuso. Fazemos isto porque estamos buscando prazer, prazer espiritual. Ao fazer isto, afirmamos que o prazer que estamos buscando é de uma natureza inconcebível, porque na verdade não temos idéia de que tipo de prazer espiritual vamos obter com essa manobra. E todas as interpretações espirituais das escrituras que referem-se ao incognoscível podem ser aplicadas ao fato de que não sabemos o que estamos tentando fazer espiritualmente. Ainda assim, já estamos totalmente envolvidos em convicções espirituais, porque suprimimos nossas dúvidas originais sobre o que e quem nós somos - nossa sensação de que talvez não sejamos coisa alguma. Suprimimos isto; podemos nem mais saber nada disso.

Tendo suprimido este embaraço do ego que nos dá apoios para o desconhecido, a natureza daquilo que não conhecemos, terminamos com dois jogos de confusão acontecendo: um jogo do desconhecido e um jogo do desconhecido transcendental. Ambos fazem parte do materialismo espiritual. Não sabemos quem somos, mas sabemos que gostaríamos de ser algo ou alguém. Decidimos ir em frente com o que gostaríamos de ser mesmo apesar de não sabermos de fato o que seja. Este é o primeiro jogo. Então, por cima disto, ligado ao fato de ser algo, também gostaríamos de saber que há algo a respeito do mundo ou do cosmos que corresponde a este "algo" que somos. Temos a sensação de encontrar este algo que gostaríamos de conhecer, mas de fato não conseguimos compreendê-lo, então ele se torna um desconhecido transcendental. Já que não podemos compreendê-lo, dizemos, "Vamos transformar esta confusão maior e gigantesca na espiritualidade da infinitude de Deus", ou algo assim.

Isto nos dá alguma compreensão do materialismo espiritual. O perigo do materialismo espiritual é que sob sua influência fazemos todos os tipos de suposições. Primeiro, há a suposições domésticas ou num nível pessoal, que fazemos porque queremos ser felizes. Em segundo lugar, há as suposições espirituais que fazemos porque aquela descoberta gigantesca, transcendental, permanece misteriosa. Isso nos leva a maiores suposições: não sabemos o que vamos realmente conquistar ao alcançar aquela coisa desconhecida, mas ainda assim, damos a ela alguma descrição vaga, tal colo "estar absorvido no cosmos". E já que ninguém ainda foi tão longe, se alguém questiona nossa descoberta da "absorção no cosmos", nós apenas adicionamos mais alguma lógica ou buscamos reforços nas escrituras ou outras autoridades.

O resultado disso tudo é que terminamos confirmando a nós mesmos e confirmando a experiência, e a proclamando verdadeira. Ninguém pode questioná-la. Em algum ponto, não há lugar para qualquer tipo de questionamento. Toda nossa visão se torna estabelecida sem espaço para qualquer questionamento. Isso é o que chamamos de atingir a egoidade, como oposto de atingir iluminação. Nesse momento, se eu quiser praticar minha agressão e paixão em você, e você não aceitá-las, isso é culpa sua. A única forma que me resta para ajudá-lo é reduzi-lo a uma cabeça encolhida, tirar seu cérebro e coração. Você se torna um mero fantoche sob meu comando.

Este é um retrato rude do materialismo espiritual. É o primeiro de dois enfoques possíveis: tentar viver como você gostaria de ser. Agora vamos falar sobre o segundo enfoque possível, tentar ser o que você é.

Esta possibilidade está ligada com ver nossa confusão, nossa miséria e dor, mas não transformar essas descobertas numa resposta. Ao invés disso, exploramos adiante, mais profundamente, sem procurar uma resposta. É um processo de trabalho com nós mesmos, com nossas vidas, com nossa psicologia, sem procurar por uma resposta, mas vendo as coisas como elas são - vendo o que acontece em nossas cabeças diretamente e simplesmente, totalmente literalmente. Se somos capazes de nos comprometermos com um processo como este, então há uma tremenda possibilidade de que nossa confusão - o caos e a neurose que permeiam nossa mente - possam se tornar ainda outra base de investigação. Então olhamos mais e mais profundamente. Não transformamos qualquer coisa num ponto principal ou numa resposta de qualquer tipo. Por exemplo, podemos pensar que porque descobrimos uma certa coisa que está errada conosco, que deve ser isso, que isso deve ser o problema, que deve ser a resposta. Não. Nós não nos fixamos nisto, vamos além. "Porque isso é assim?" Olhamos mais adiante. Perguntamos "Porque isso é assim? Porque há espiritualidade? Porque há despertar? Porque há este momento de alívio? Porque há uma coisa como descobrir o prazer da espiritualidade? Porque, porque, porque?" Vamos mais fundo e sempre mais além, até que alcançamos o ponto onde não há resposta. Não há sequer uma pergunta. Tanto o questionamento quanto a resposta morrem simultaneamente em determinado ponto. Elas começam a se esfregar tão perto que se curto-circuitam de alguma forma. Nesse ponto, tendemos a desistir da esperança por uma resposta, ou por qualquer outra coisa, aliás. Não temos mais nenhuma esperança, nem mesmo uma. Estamos puramente desesperançosos. Poderíamos chamar isso de transcender a esperança, se você quiser colocar em termos mais gerais.

Esta desesperança é a essência da louca sabedoria. É desesperançosa, profundamente sem esperança. Está além da desesperança. (Claro que seria possível, se tentarmos transformar essa desesperança em si mesma em algum tipo de solução, tornar-se confuso novamente.)

O processo é um de ir além e mais fundo sem qualquer ponto de referência da espiritualidade, sem qualquer ponto de referência de um salvador, sem qualquer ponto de referência de bondade ou maldade - sem qualquer ponto de referência de qualquer tipo! Finalmente poderemos alcançar o nível básico da desesperança, de transcender a esperança. Isso não significa que viramos zumbis. Nós ainda temos todas as energias; temos a fascinação da descoberta, de ver este processo desabrochar continuamente. Este processo de descoberta automaticamente se recarrega de forma que continuamos indo mais fundo. Este processo de ir mais fundo é o processo da louca sabedoria, e é isso que caracteriza um santo na tradição budista.

Os oito aspectos de Padmasambhava que nós vamos discutir estão ligados com tal processo de penetração psicológica, de cortar através da superfície do reino psicológico e então cortar além através das outras superfícies mais profundas, e assim por diante. Este é o processo que nos envolvemos ao discutir a vida de Padmasambhava, os oito aspectos de Padmasambhava, e a louca sabedoria.

Neste contexto vemos que o enfoque budista à espiritualidade é um de violentamente cortar através de qualquer chance que possamos encontrar de nos confirmarmos em qualquer estágio particular de desenvolvimento no caminho espiritual. Quando descobrimos que fizemos algum progresso no caminho espiritual, esta descoberta de progresso é em si considerada como um obstáculo para ainda maior progresso. Assim não temos chance de descansar, relaxar, ou nos congratular de qualquer forma. É uma jornada espiritual direta, incessantemente violenta. E essa é a essência da espiritualidade de Padmasambhava.

Padmasambhava tinha que lidar com o povo tibetano daquela época. Você bem pode imaginar. Um grande mago e erudito indiano, um grande Vidhyadhara, ou mestre tântrico, vem à Terra das Neves, o Tibet. Os tibetanos pensam que ele vai ensiná-los algo belo sobre conhecer a essência da mente. As expectativas cultivadas pelos tibetanos são enormes. O trabalho de Padmasambhava é cortar através das múltiplas camadas de expectativas, através de todas suas suposições sobre o que a espiritualidade deveria ser. Finalmente, ao fim da missão de Padmasambhava no Tibet, quando ele se manifestou como Dorje Trolö, todas estas camadas de expectativas haviam sido completamente cortadas. Os tibetanos começaram a perceber que espiritualidade é cortar através da esperança e do medo bem como uma descoberta repentina da inteligência que surge com esse processo.

ALUNO: Qual é a diferença entre louca sabedoria e apenas estar louco? Algumas pessoas poderiam apenas querer sair por aí sendo loucas e confusas e se desculpando dizendo que isso é louca sabedoria. Então, qual é a diferença?

TRUNGPA RINPOCHE: Bem, isto é o que estive tentando explicar durante toda minha palestra, mas vamos tentar de novo. No caso da loucura comum, estamos constantemente tentando ganhar o jogo. Podemos até mesmo tentar transformar a loucura em alguma espécie de credencial para seguirmos adiante. Podemos tentar magnetizar pessoas com paixão ou destruí-las com agressão, etc. Há um jogo constante acontecendo na mente. O jogo da mente - estratégias constantes acontecendo - pode nos dar algum tipo de alívio ocasionalmente, mas este alívio teria que ser mantido por ainda mais agressão. Este tipo de loucura tem que se manter o tempo todo, continuamente.

No caso da loucura primordial da louca sabedoria, não nos permitimos sermos seduzidos por paixão ou excitados pela agressão de forma alguma. Nos relacionamos com essas experiências como elas são, e se algo surge no meio daquela mediocridade total e começa a se transformar em uma "grande coisa", então o cortamos - sem nenhuma referência com respeito ao que é bom ou mau. Louca sabedoria é apenas a ação da verdade. Corta tudo. Nem mesmo tenta traduzir falsidade em verdade, porque isso em si mesmo é um tipo de corrupção. É violento, porque se você quer a verdade completa, se você quer ser completamente, absolutamente íntegro, então qualquer sugestão de olhar as coisas em seus próprios termos, interpretá-la em seus termos, não é válida de examinar. Por outro lado, o enfoque comum da loucura é completamente ligado nesse tipo de coisa - transformar qualquer coisa que surja de forma a entrar no seu esquema. Você faz aquilo ser o que você quer que seja, o que você mesmo quer ver. Mas a louca sabedoria surge completamente acurada no momento das coisas como elas são. Esse é o estilo de ação de Padmasambhava.

ALUNO: Como a disciplina se relaciona com ser o que você realmente é? Eu pensava que disciplina significava impor algo a você mesmo.

TRUNGPA RINPOCHE: A disciplina mais difícil é ser o que você é. Constantemente tentar ser o que você não é, é muito mais fácil, porque fomos treinados a colocar seja a nós mesmos seja aos outros, nas categorias adequadas. E se você retira isto, a coisa toda fica muito irritante, muito chata. Não há espaço para se convencer a qualquer coisa. Tudo é bem simples.

ALUNO: Você geralmente faz uso de seu senso de humor ao explicar as coisas.

Este senso de humor, do jeito que você usa, é o mesmo que louca sabedoria?

TRUNGPA RINPOCHE: Não é bem isso. O senso de humor ainda tende muito para o outro lado, na direção de esperança e medo. É uma mentalidade dialética, onde a louca sabedoria é um enfoque geral.

ALUNO: Como nos relacionamos com esperança e medo através da disciplina da prática espiritual?

TRUNGPA RINPOCHE: Este é um bom ponto, na verdade. Desse ponto de vista, tudo que é violento - tudo que não conhece esperança e medo - relaciona-se com a prática espiritual.

2. O Trikaya

Já discutimos dois enfoques possíveis com relação à espiritualidade: materialismo espiritual e transcender o materialismo espiritual. O estilo de Padmasambhava é transcender o materialismo espiritual, desenvolver sanidade básica. Desenvolver sanidade básica é um processo de trabalharmos em nós mesmos no qual o caminho em si se torna a base de trabalho ao invés do resultado. O caminho em si é o que nos inspira constantemente, ao invés de, como no caso da cenoura e do burrico, promessas sobre certas realizações que estão em frente. Em outras palavras, para tornar isto completamente claro, a diferença entre materialismo espiritual e transcender o materialismo espiritual é que no materialismo espiritual as promessas são utilizadas como uma cenoura mantida na frente do burrico, levando-o a todos os tipos de jornadas; ao transcender o materialismo espiritual, não há uma finalidade. A finalidade existe em cada momento de nossa situação cotidiana, em cada momento de nossa jornada espiritual.

Desta forma, a jornada espiritual se torna tão excitante e bela como se já fossemos um Budha. Há constantes descobertas, constantes mensagens, constantes avisos. Há também constante cortar, constantes lições penosas - tanto quanto prazerosas. A jornada espiritual de transcender o materialismo espiritual é uma jornada completa ao invés de uma que depende de uma finalidade externa.

É essa natureza completa da jornada que discutiremos em relação com a vida de Padmasambhava. Esta natureza completa pode ser descrita em termos de certos aspectos: contém espaço básico, ou totalidade; contém energia e brincadeira; e também contém aplicação pragmática, ou lida com as situações da vida como elas são. Nós temos três princípios ali: a totalidade como a completa percepção do ambiente no caminho, um percepção lúdica no caminho, e a percepção prática do caminho. São estas as três categorias que se desenvolvem.

Antes de entrar em detalhes sobre os oito aspectos de Padmasambhava, seria bom discutir estes três princípios em termos de como Padmasambhava manifesta-os a nós como um caminho.

Primeiro, temos que olhar mais de perto na natureza do próprio caminho. O caminho é nosso esforço, a energia que colocamos nas situações diárias cotidianas; consiste de nossa tentativa de trabalhar com as situações diárias cotidianas como um processo de aprendizado - independentemente de nossa situação ser criativa ou destrutiva. Se você derrama um copo de café na mesa da pessoa do seu vizinho ou se você passa o sal para alguém, é a mesma coisa. Estes são acontecimentos que ocorrem o tempo todo nas situações de nossa vida. Estamos constantemente fazendo coisas, constantemente nos relacionando com as coisas ou rejeitando as coisas. Há uma brincadeira constante. Não estou particularmente falando sobre espiritualidade nesse momento, mas apenas sobre a existência cotidiana: estes eventos que ocorrem o tempo todo nas situações de nossa vida. Este é o caminho.

O caminho não precisa necessariamente ser rotulado como espiritual. É apenas uma simples jornada, a jornada que contém troca com a realidade disto e daquilo - ou com a irrealidade, se você preferir. Relacionar-se com essas trocas - o processo da vida, o processo de ser - é o caminho. Podemos estar pensando em nosso caminho em termos de atingir a iluminação ou atingir a egoidade, não interessa. Em qualquer dos casos, nunca estamos aprisionados em uma forma qualquer. Podemos pensar que ficamos presos. Podemos nos sentir entediados com a vida e etc; mas nós nunca realmente ficamos chateados ou realmente ficamos presos. A repetição da vida não é realmente repetitiva. É composta de acontecimentos constantes, situações que se desenvolvem continuamente, o tempo todo. Este é o caminho.

Deste ponto de vista, o caminho é neutro. Não é inclinado para um lado ou para o outro. Há uma constante jornada acontecendo, que começa no momento da separação básica. Começamos a nos relacionar em termos de "o outro", "eu", "meu", "nosso", e etc. Nós começamos a nos relacionar com as coisas como entidades separadas. O outro é chamado "eles" e esta coisa é chamada "eu". A jornada começa bem aí. Esta foi a primeira criação de samsara e nirvana. Logo no princípio, quando decidimos nos conectar de alguma forma com a energia das situações, nos envolvemos numa jornada, no caminho.

Depois disso, desenvolvemos uma forma determinada de nos relacionarmos com o caminho, e o caminho se torna condicionado entre ou a espiritualidade ou o mundano. Em outras palavras, espiritualidade não é realmente o caminho, mas espiritualidade é uma forma de condicionar nosso caminho, nossa energia.

Condicionar nosso caminho acontece em termos das três categorias que já mencionei. Acontece, por exemplo, em termos da totalidade da experiência, a primeira categoria. Este é um aspecto de como nos relacionamos com nosso caminho - em termos da totalidade de nossa experiência. O caminho está acontecendo de qualquer forma, então nos relacionamos com ele de uma determinada forma, tomamos uma atitude particular com respeito a ele. O caminho então se torna ou um caminho espiritual ou um caminho mundano. Esta é a forma com que nos relacionamos ao caminho; é assim que começa nossa motivação. E nossa motivação tem um padrão tríplice.

Na tradição budista, estes três aspectos do caminho são chamados dharmakaya, sambhogakaya e nirmanakaya. O condicionamento do caminho acontece em termos destes três aspectos. O processo contínuo do caminho tem uma atitude total determinada. A jornada toma um padrão que tem um elemento de sanidade básica total nela. Esta sanidade total, ou qualidade iluminada, não é particularmente atrativa no sentido usual. É a sensação de completa abertura que já discutimos. É essa abertura total e completa que nos torna capazes de transcender esperança e medo. Com esta abertura, nos relacionamos com as coisas como elas são ao invés de como gostaríamos que elas fossem. Esta sanidade básica, este enfoque que transcende esperança e medo, é a atitude da iluminação.

Esta atitude é muito prática. Não rejeita o que surge no caminho, e não se torna apegada ao que surge no caminho. Ela apenas vê as coisas como elas são. Assim esta é uma abertura total e completa - completa boa-vontade de olhar no que quer que surja, trabalhar com isto, e relacionar-se com isso como parte do processo geral. Esta é a mentalidade dharmakaya do espaço que tudo permeia, de incluir tudo sem inclinações. É uma forma mais ampla de pensar, uma forma mais grandiosa de ver as coisas, em oposição a ser mesquinho, pequeno.

Estamos falando do enfoque dharmakaya enquanto não nos relacionamos com o mundo como nosso inimigo. O mundo e nossa situação oportuna; é aquilo com que temos que trabalhar. Nada que surja nos faz lutar com o mundo. O mundo é a situação extraordinariamente rica que está aqui; ela é cheia de recursos para nós. Este enfoque básico de generosidade e riqueza é o enfoque dharmakaya. É um pensar totalmente positivo. Esta visão mais ampla é a primeira atitude em relação ao caminho.

Então temos a segunda atitude, ligada com o sambhogakaya. As coisas são abertas e espaçosas e trabalháveis como já dissemos, mas há algo mais. Nós também precisamos nos relacionar com as fagulhas, a energia, os raios e a vivacidade que toma lugar dentro desta abertura. Esta energia, que inclui agressão, paixão, ignorância, orgulho, inveja, e assim por diante, também precisa ser reconhecida. tudo que surge no reino da mente tem que ser aceito como a luz cintilante que brilha através da massiva natureza do caminho espiritual. Brilha constantemente, nos surpreende constantemente. Há ainda outro canto de nosso ser que é tão vivo, tão enérgico e poderoso. Há descobertas acontecendo o tempo todo. Esta é a forma sambhogakaya de se relacionar com o caminho.

Assim o caminho contém o sentido mais amplo da total aceitação das coisas como elas são; e o caminho também contém o que poderíamos chamar fascinação com as excitantes descobertas dentro das situações. É válido repetir aqui que não estamos colocando nossas experiências em escaninhos de virtuoso, religioso ou mundano. Estamos apenas nos relacionando com as coisas que acontecem nas situações de nossa vida. Estas energias e paixões que encontramos em nossa jornada nos apresentam com contínuas descobertas de diferentes facetas de nós mesmos, diferentes perfis de nós mesmos. Neste ponto, as coisas se tornam bem interessantes. Enfim, não somos tão vazios ou achatados como pensávamos que éramos.

Então temos um terceiro tipo de relacionamento com o caminho, que está ligado ao nirmanakaya. Este é o aspecto prático básico de existir no mundo. Nós temos a totalidade, temos as várias energias, e agora temos que funcionar no mundo como ele é, o mundo cotidiano. Este último aspecto requer tremenda atenção e esforço. Não podemos apenas deixar a totalidade e a energia tomarem conta de tudo; temos que colocar alguma disciplina em nosso enfoque das situações da vida. Todas as disciplinas e técnicas descritas nas tradições espirituais estão ligadas a este princípio nirmanakaya de aplicação ao caminho. Há a prática da meditação, trabalhar com o intelecto, tomar mais interesse nos relacionamentos com os outros, desenvolver compaixão fundamental e um sentido de comunicação, e desenvolver conhecimento ou sabedoria que é capaz de olhar numa situação como um todo e perceber as maneiras através das quais as coisas podem ser trabalháveis. Estas são disciplinas nirmanakaya.

Colocados em conjunto, os três princípios, ou os três estágios - dharmakaya, sambhogakaya, nirmanakaya - nos concedem uma base completa para nossa jornada espiritual. Por causa deles, a jornada e nossa atitude com relação a ela se torna algo trabalhável, algo com que podemos lidar diretamente e de forma inteligente, sem ter que relegá-la a uma categoria vaga como o "mistério da vida".

Em termos de nosso estado psicológico, cada um destes princípios tem outra característica, que devemos mencionar aqui. Enquanto um estado psicológico, o dharmakaya é o ser básico. É uma totalidade na qual confusão e ignorância nunca existiram; é existência total que nunca precisa de um ponto de referência. O sambhogakaya é aquilo que continuamente contém a energia espontânea, porque nunca depende de nenhum tipo de energia de causa-e-efeito. O nirmanakaya é o contentamento auto-existente em relação ao qual nenhum estratagema com relação a como funcionar é necessário. Estes são os aspectos psicológicos da natureza de Budha que se desenvolvem.

Ao olhar para a vida de Padmasambhava e seus oito aspectos, encontraremos estes três princípios. Vendo estes princípios psicológicos em ação na vida de Padmasambhava pode nos ajudar a não considerar Padmasambhava puramente como alguma figura mítica que ninguém jamais encontrou. Estes são princípios que podemos trabalhar em conjunto, e cada um de vocês pode trabalhar neles em relação a si próprio.

ALUNO: Os oito aspectos da vida de Padmasambhava são oito estágios que podemos trabalhar ao tentar fazer uma revolução em nosso próprio desenvolvimento psicológico?

TRUNGPA RINPOCHE: Na verdade os oito aspectos não são realmente níveis de desenvolvimento lineares e sucessivos. O que temos é mais uma única situação com oito aspectos - um princípio central cercado por oito tipos de manifestação. Há oito aspectos para todos os tipos de situações.

Psicologicamente, poderíamos fazer algum tipo de revolução ao nos relacionarmos com isto. Perceba, como está descrito nas escrituras, Padmasambhava já era iluminado quando se manifestou como os oito aspectos. Os oito aspectos não eram sua jornada espiritual, ele estava se expressando, dançando com as situações. Ele já estava surgindo com suas expressões de louca sabedoria.

O que estou querendo dizer é que podemos encontrar todos estes oito aspectos em nós mesmos, numa única situação a ser trabalhada. Podemos nos conectar com eles. Podemos revolucionar com todos os oito simultaneamente.

ALUNO: Portanto, definitivamente não é uma progressão como os dez bhumis.

TR: Veja bem, estamos aqui falando sobre o caminho instantâneo, o caminho direito ou repentino do tantra. Esta é uma realização que não depende de um desmascarar externo construído e progressivo. É uma realização que se come de dentro para fora, ao invés de um desmascarar que toma lugar externamente. Comer de dentro é o enfoque tântrico. De certa forma, isso é mais sofisticado que os dez bhumis, ou estágios, do caminho do bodhisatva. Estamos discutindo mais o samadhi como-um-vajra do Budha e sua forma de se relacionar com as coisas, que é claro está ligada à natureza de Budha; estamos focando isto aqui como uma transmissão direta, repentina, um caminho direto, sem entrar nos paramitas ou no nos bhumis. O foco aqui é se considerar como já sendo um Budha. Budha é o caminho, e não a finalidade. Estamos trabalhando de dentro para fora. A máscara cai por si mesma.

ALUNO: Padmasambhava já era um Budha quando nasceu?

TR: Ele era mais uma pessoa desperta do que um Budha completamente realizado. Ele era o princípio dharmakaya tentando se manifestar num nível sambhogakaya e então começando a se relacionar com o mundo lá fora. Assim ele poderia ser considerado uma pessoa que era um Budha potencial ao nascer e que então rompeu as barreiras para a concretização desse potencial destemida e impiedosamente. Ele atingiu iluminação instantânea num momento, e parece que poderíamos fazer o mesmo.

ALUNO: Isto está ligado com a idéia de ter que dar um salto que você fala tão freqüentemente?

TR: Isto tem mais a ver com a atitude de dar um salto do que realmente dar um salto. Você quer saltar, e então há a situação de saltar. A coisa importante aqui é o temperamento básico ou ponto de vista que você tem, ao invés da aplicação particular de como você lida com as coisas. É algo muito mais amplo do que isto.

ALUNO: Você falou muito sobre impiedosidade e destemor? Com relação a que somos implacáveis? Você apenas implacavelmente assume uma atitude psicológica particular?

TRUNGPA RINPOCHE: O ponto de ser implacável é que quando você é implacável, ninguém pode persuadi-lo. Ninguém é capaz de seduzi-lo numa direção pouco saudável. É implacável nesse sentido, e não no sentido convencional da agressão ilógica - tal como é o caso de Mussolini ou Hitler ou alguém desse tipo. Você não pode ser persuadido ou seduzido; você não aceitaria isto. Mesmo as tentativas de seduzi-lo produzem uma energia que é destrutiva na direção daquela sedução. Se você está completamente aberto e completamente excitado em termos de louca sabedoria, ninguém pode atraí-lo para seu território.

A: Então você mantém esta implacabilidade.

TR: Você não se mantém implacável. Sua implacabilidade é mantida pelos outros. Você não mantém coisa alguma. Você apenas está ali, e o que quer que surja, você apenas re-projeta. Tome o fogo por exemplo. Ele não possui seu poder de destruição. Aquilo apenas acontece. Quando você coloca algo no fogo ou tenta apagá-lo, seu poder ofensivo simplesmente surge. É a natureza orgânica ou química do fogo.

A: Quando estas coisas vêm até você, então você tem que ser implacável de forma a repeli-las, certo? Então parece que um julgamento tem que ser feito quanto a certo e errado, de forma que isso que surje a você seja percebido como positivo ou negativo, de forma a ser compassivo ou implacável.

TR: Não vejo assim. Este é o ponto principal do tipo transcendental de implacabilidade. Não necessita julgamento. A situação gera a ação. Você simplesmente reage, porque os elementos contêm agressão. Se lidarmos ou interferimos com os elementos de uma forma irreverente ou sem habilidade, eles rebatem.

A implacabilidade parece sobreviver num sentido de relatividade, "disto" versus "aquilo", mas de fato não é assim. É absoluta. Os outros apresentam uma noção relativa, e você corta. Este estado de ser não é num nível relativo de forma alguma. Em outras palavras, este absoluto corta através de todas as noções relativas que surgem, mas ainda assim permanece auto-contido.

A: Mas isso o tornaria muito isolado solitário

TR: Não, eu não acho, porque absoluto significa tudo. Assim você tem mais do que precisa, assim por dizer.

A: Você está dizendo que desesperança e destemor são a mesma coisa?

TR: Sim. Elas são a coisa definitiva, se você é capaz de lidar com elas. Elas são a coisa definitiva.

ALUNO: Como a implacabilidade se aplica a destruição do ego? Ser implacável parece tão pouco compassivo, quase egóico por si só.

TRUNGPA RINPOCHE: Bem, é a intensidade do ego que gera medidas "não-compassivas". Em outras palavras, quando a neurose e a confusão atingem um ponto extremo, a única forma de corrigir a confusão é a destruindo. Você tem despedaçar a coisa inteira completamente. O processo de destruição surge pela própria confusão ao invés de alguém pensar que é uma questão de alguém pensar ser uma boa idéia destruir a confusão à força. Nenhum outro pensamento está envolvido. A intensidade da própria confusão gera sua própria destruição. Implacabilidade é apenas colocar a energia em ação. É apenas deixar aquela energia queimar a si própria ao invés de você matar algo. Você deixa as neuroses do seu ego cometerem suicídio ao invés de matá-las. Isto é implacável. O ego está matando a si mesmo implacavelmente, e você está dando um espaço para que isso aconteça.

Isto não é guerra. Você esta ali, e portanto acontece. De outra forma, se você não está ali, há a possibilidade de todo tipo de bodes expiatórios e saídas secretas de todos os tipos. Mas se você está ali, você nem precisa de fato ser implacável. Apenas estar ali; do ponto de vista do ego, isto é implacável.




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