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As Duas Verdades
Kalu Rinpoche


A crença errônea que dolorosamente condiciona a todos os seres na existência cíclica surge da ignorância. Essa ignorância é uma ausência de consciência sobre a verdadeira vacuidade da mente e das suas produções. De fato, a crença errônea é a ignorância sobre o verdadeiro modo de existência de todas as coisas.

Todas as coisas, todos os fenômenos, todos os objetos de conhecimento - isso é, o universo externo e todos os seus seres, tudo que experienciamos em termos de formas, sons, sabores, odores, objetos tangíveis e objetos da consciência mental - tudo o que somos e que podemos conhecer, manifesta-se pelo poder das tendências da mente, que são essencialmente vazias.

A mente não é existente ou não-existente. Do mesmo modo, os fenômenos que ela produz não são completamente ilusórios nem completamente reais. Como nós os experienciamos ordinariamente, eles são relativamente reais, mas de uma perspectiva absoluta, essa realidade relativa é ilusória.

Todas as coisas podem ser vistas de acordo com dois níveis de realidade: o nível relativo, ou convencional, e o nível absoluto, ou último. Estas duas verdades correspondem aos dois pontos de vista, às duas visões da realidade: a verdade ou visão relativa é convencional ou relativamente verdadeira, mas absolutamente ilusória; e a verdade ou visão absoluta é definitivamente verdadeira, a experiência autêntica além de toda ilusão.

Todas as percepções samsáricas são experiências da verdade relativa. O nirvana, que está além das ilusões e do sofrimento do samsara, é o nível da verdade absoluta. Portanto, por exemplo, as experiências de um ser do reino infernal são bastante reais do ponto de vista relativo, enquanto essas percepções são ilusórias de uma perspectiva absoluta. Isto significa que um ser que se encontra em um reino infernal realmente experiencia sofrimento lá: desta perspectiva, suas experiências e sofrimento são reais e totalmente infernais. Mas do ponto de vista absoluto, o inferno não existe; ele é realmente apenas uma projeção, uma produção da mente condicionada, cuja natureza é a vacuidade.

O sofrimento vem do reconhecimento da vacuidade das coisas, o que resulta em atribuirmos a elas uma realidade que verdadeiramente não têm. Este apego às coisas como sendo reais sujeita-nos a experiências dolorosas.

Podemos ter uma melhor compreensão disto ao usar o exemplo de um sonho. Quando alguém tem um pesadelo, essa pessoa sofre. Para o sonhador, o pesadelo é real; de fato, é a única realidade que o sonhador conhece. Mas ainda assim, o sonho não tem realidade tangível e não é verdadeiramente "real"; ele não tem realidade fora da mente condicionada do sonhador, fora do próprio karma do sonhador. Do ponto de vista último, é de fato uma ilusão. A ilusão do sonhador está em falhar no reconhecimento da natureza de suas experiências. Ignorante do que elas verdadeiramente são, o sonhador considera sua própria produção - as criações de sua própria mente - como sendo uma realidade autônoma; assim deludido, ele é amedrontado pelas suas próprias projeções e, portanto cria sofrimento para si mesmo. A delusão é perceber como real o que verdadeiramente não é. O Buddha Shakyamuni ensinou que todos os reinos da existência cíclica ou condicionada, todas as coisas, todas as experiências são, em geral, aparências ilusórias que não podem ser consideradas nem verdadeiramente reais, nem completamente ilusórias. Ele demonstrou essa natureza dual usando o exemplo da aparência da lua sobre a superfície de um copo d’água:

"A natureza de todas as coisas e todas as aparências é como o reflexo da lua sobre a água".

A lua refletida sobre a superfície da água é real enquanto for visível lá, mas sua realidade é apenas uma aparência relativa, ilusória, porque a lua sobre a água é apenas um reflexo. Não é verdadeiramente real nem completamente ilusória. Desta perspectiva, podemos nos referir à verdade relativa como a verdade das aparências. O Buddha Shakyamuni usou outros exemplos, dizendo que todas as coisas são como uma projeção, uma alucinação, um arco-íris, uma sombra, uma miragem, um reflexo no espelho, e um eco; fora da simples aparência resultante da "funcionalidade" dos fatores inter-relacionados, coisa alguma tem existência em, de ou por si mesma.

Compreender isto pode realmente nos ajudar porque, apesar de não terem existência verdadeira, nos apegamos a todas estas coisas como se fossem reais. O objetivo do ensinamento de Buddha é dissolver esta fixação, que é a fonte de todas as ilusões e é tão tenaz quanto o nosso condicionamento kármico.

Karma, Interdependência e Vacuidade

Dentro do conceito de karma, não há noção de destino ou fatalismo; apenas colhemos o que plantamos. Experienciamos os resultados de nossas próprias ações. A noção do karma está extremamente conectada com a do surgimento dependente, ou tendrel em tibetano. A corrente do karma também é a interação do tendrel, fatores interdependentes cujas causas e resultados mutuamente originam uns aos outros.

A palavra tibetana tendrel significa interação, interconexão, inter-relação, interdependência, ou fatores interdependentes. Todas as coisas, todas as nossas experiências, são o tendrel, o que quer dizer são eventos que existem por causa do relacionamento entre fatores inter-relacionados. Esta idéia é essencial para a compreensão do Dharma em geral e, em particular, para a compreensão de como a mente transmigra na existência cíclica.

Para compreender o que o é o tendrel, ou surgimento dependente, vamos pegar um exemplo. Quando você ouve o som de um sino, pergunte a você mesmo: o que faz o som? É o corpo do sino, o badalo, a mão que move o sino para cá e para lá, ou os ouvidos que escutam o som? Nenhum destes fatores produz sozinho o som; ele resulta da interação de todos estes fatores. Todos os elementos são necessários para o som do sino ser percebido, e eles não são uma sucessão, são simultâneos. O som é um evento cuja existência depende da interação daqueles elementos; isso é o tendrel.

Similarmente, todas as vidas condicionadas, todos os fenômenos do samsara, resultam de uma multiplicidade de interações que pertencem aos doze elos do surgimento dependente. Estes doze fatores dão origem uns aos outros, mutuamente. Não é que cada fator faz o próximo ocorrer, sucessivamente; como no exemplo do sino, eles são simultâneos, coexistentes. Para produzir uma existência condicionada, é necessário que os doze fatores estejam presentes ao mesmo tempo. O cativeiro de causas e resultados destes fatores interdependentes, que geram a ilusão, é a ação do samsara. Tudo dentro do samsara é o inter-relacionamento karmicamente condicionado; todas as nossas experiências são tendrel. A verdade das aparências criadas pelo cativeiro dos surgimentos dependentes é a verdade convencional ou dualista. É assim que ordinariamente vivemos: governados pelo karma. A natureza vazia do que existe no nível relativo é o que chamamos de verdade última.

Compreender verdadeiramente o surgimento dependente nos permite ir além do condicionamento do nível relativo, ou convencional, e atingir a paz e a liberdade da incondicionalidade. Quando você compreende completamente o surgimento dependente, você também compreende a vacuidade. E isso é a liberdade.

Portanto, a sabedoria, ou conhecimento, não está fundamentalmente separada da ilusão. Isso porque muitas vezes é dito que o samsara e o nirvana não são diferentes, e que uma forma de sabedoria é latente na ignorância. A lógica e a razão conduzem definitivamente a estas afirmações, que parecem ser contraditórias e ilógicas. A lógica e a razão podem ir até o infinito. Elas são parte do processo do samsara e conduzem definitivamente a contradições. Mesmo assim, já que são ferramentas que podem trazer a realização da verdade, elas são úteis e não devem ser rejeitadas, apesar delas serem eventualmente liberadas no momento da realização da vacuidade.

Mas tenha cuidado. A compreensão correta da vacuidade não é, de qualquer modo, niilista. Se decidirmos que todo é vazio e sem realidade, que o estado de buddha não tem existência real, que a causalidade kármica é vazia e que portanto não há razão para preocupação, isto seria uma visão niilista, pior até do que a visão que considera as coisas relativas como sendo verdadeiramente existentes. As concepções niilistas são um erro mais sério do que a concepção realista que considera os fenômenos como se existissem como aparecem.

A compreensão correta da vacuidade está entre os dois extremos do eternalismo (acreditar que as coisas sejam inerentemente ou verdadeiramente existentes) e o niilismo (acreditar que elas não existem). A visão do caminho do meio elimina as idéias errôneas e nos permite ir, definitivamente, para além das noções conceitualizadas sobre a realidade. Mas tome cuidado: imaginar a vacuidade fecha a porta para a iluminação.

O grande detentor da linhagem, Saraha, disse: "Considerar o mundo como sendo real é uma atitude brutal. Considera-lo como irreal é ainda mais selvagem".

E Nagarjuna disse: "Aqueles que apenas imaginam a vacuidade são incuráveis".




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