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Essência e riscos da consciência objetiva

Texto de Karlfried Graf Dürckheim
Extraído do livro "O Zen e nós"

A visão da vida baseia-se no "eu", no sentido em que afirmamos: "Eu sou eu." É o princípio de identidade, portanto, que estimula a consciência objetiva, de onde provêm as raízes da visão da realidade. Quando pensa em si mesmo, o homem pensa em algo que ele identifica consigo mesmo, algo permanente e firmemente fincado no fluxo dos acontecimentos. E o homem "vê aquilo que o rodeia a partir do contexto desse "eu" ancorado nele mesmo. Essa visão consciente do eu determina e fixa as coisas. O homem pergunta: "O que é isto?" E responde, constatando: "Isto é tal coisa." E assim, entre perguntas e respostas desse eu, a vida se congela em fatos fixos, destinados a serem consolidados e aos quais ele tem de se ater. Tudo é visto a partir do eu, tudo é válido e experimentado, e transforma-se então no objeto, por assim dizer. Tudo o que existe só se converte em algo real na medida em que é definido, encaixando-se nessa realidade objetiva. E só o que for definido por meio de conceitos pode ser objetivamente real e verdadeiro. Partindo desse enfoque, a realidade é apenas o que se pode organizar, fixar e definir num conceito. Tudo o que escapa a esse sistema não é mais real, ou já deixou de ser real.

A identificação do homem com o seu eu que define e o seu apego à consciência objetiva são afetados de duas maneiras: em primeiro lugar, ela tem uma visão bem definida, ou melhor, uma "teoria" relativa ao que deve ser visto e assumido como uma "realidade" determinante e pragmática do mundo, que indica o que tem significado e o que nao tem. Nessa sua visão do mundo, o homem só aceita como realidade o que ele constata como algo definido, o que existe "fora" dele mesmo. Do mesmo modo, ele próprio só terá uma existência válida e real na medida em que ocupa uma determinada posição a partir da qual possa se afirmar. Esse ponto de vista determina o sentido positivo ou negativo de tudo o que existe no mundo.

No sentido teórico, "objetividade" não tem nada que ver com os objetos materiais, porém é uma das maneiras pelas quais as coisas são levadas à consciência. A objetividade corresponde a uma forma específica de consciência. Nela rege o eu que determina e, de sua posição. define o objeto que imagina (que coloca diante de si) e do qual tomou consciência. A essa forma de consciência pertencem também os contrários. Pelo fato de o eu se definir como algo idêntico a si mesmo, ele vê todo o resto, simultaneamente, como uma oposição a esse eu, gerando assim o antagonismo característico da dualidade sujeito/objeto, próprio da consciência objetiva. E para o eu que fixa e define tudo o que há, imediatamente, como algo antagônico — como sendo "isto" e não "aquilo" —‘ a realidade percebida não é apenas objetiva, mas é também uma realidade ordenada, que contrasta com ele. Tanto a oposição ou antítese como a objetividade são categorias básicas da realidade construída a partir do eu que define. A consciência que percebe objetivamente e que opera com as antíteses ou os opostos, existe e desaparece junto com o fixo, tal como a realidade com a qual lida. Só em relação ao eu determinante, centro da consciência, e com relação a tudo aquilo que esse eu percebe, existe um aqui e um ali, um antes e um depois, um acima e um abaixo. E, assim, vemos que espaço e tempo são formas organizadoras dessa visão natural do mundo e do homem, cujas raízes estão no eu que define e que pertencem somente ao modo pelo qual a vida se vai tomando consciente em relação a esse eu. Mas o que acontece se esse eu desaparecer?

A pessoa identificada com o seu eu vê, naturalmente, a realidade que lhe é apresentada como uma realidade pura e indiscutível. E descarta como irreal tudo aquilo que ainda não se encaixou, ou que não pode se encaixar nessa realidade. Qualquer coisa que o abale ou que não possa ser definida objetivamente — na esfera do sentimento, da fé ou de uma vivência indizível — não é reconhecida nem pode ser, enquanto não for rotulada objetivamente. No máximo, trata-se de uma espécie de forma preliminar de consciência objetiva, a única autorizada a apreender a realidade como ela é. Do mesmo modo, o único sujeito capacitado a exercer essa apreensão é o eu incorporado nessa consciência. Aquilo que fundamentalmente escapa a esse eu basicamente também não é "nada". Se esse eu se anulasse, supõe-se que toda a realidade — inclusive o próprio eu — também desapareceria. Este enfoque da vida não oferece nenhuma saída para a dor de estar aprisionado na consciência objetiva. Assim pensa o homem cuja subjetividade se identifica com o seu eu. Mas trata-se de um pensamento errôneo, e a humanidade em geral se prende a esse erro. Persistir no erro, porém, é uma característica "ocidental", que se pode constatar até entre os homens mais instruídos; isso aprofunda o sofrimento espiritual do Ocidente. O reconhecimento desse erro é um dos fatores básicos de toda a sabedoria oriental. Eliminá-lo, e ensinar o caminho que leva ao alívio dessa dor, é o interesse universal e significativo do Zen.

Diz o homem ocidental: "Se esse eu deixasse de existir, não haveria para o homem mais nenhuma realidade digna desse nome." Diz o oriental: "Só a partir da extinção deste eu e da realidade a ele atribuída é que o verdadeiro ‘Ser’ se liberta, e só então surge a verdadeira realidade." E é de dentro dela que pode emergir o Eu essencial, o Eu superior e verdadeiro.

O Zen nos ensina que quando o homem "abandona" o seu eu habitual — e ele bem pode deixá-lo para trás — o que lhe resta não é de modo algum um "nada", porém, isto sim, a vida na sua totalidade, que se toma presente de uma outra maneira. O homem se transforma num indivíduo que já não percebe a vida como uma multiplicidade de objetos delimitados, mas converte-se num indivíduo no qual a vida se toma consciente "interiormente", transcendendo a objetividade e os contrários. Este novo enfoque implica uma expansão da consciência, um salto qualitativo necessário a certa altura do desenvolvimento humano. É o salto da pequena vida para a grande VIDA, do relativo para o Absoluto. Este salto para o Ser é a preocupação do Zen.

O momento de praticá-lo chega quando a hegemonia absoluta da consciência objetiva obscurece por completo a consciência interior primordial do ser, que o homem sustenta e abriga sem nenhuma intervenção da sua pane. Este é o ponto a que muitos chegaram atualmente. Neste ponto encontra-se precisamente o grande obstáculo, a pedra em que o ocidental tropeça, o desafio diante do qual ele recua: para liberar o seu verdadeiro Ser, como pode o homem questionar a concepção que não só serve de busca para a sua consciência objetiva, aquela que, aliás. permitiu que ele realizasse a sua obra com uma eficiência especificamente ocidental? Como resolver este dilema?

Houve um momento em que nossos antepassados medievais tiveram de romper a névoa que cobria as imagens da realidade construída pela mente pré-racional, e que impediam a visão clara da realidade. Dessa ruptura nasceu um novo homem, um homem desenvolto, que ficou de pé sozinho, que enfrentou a natureza e a observou a distância, reconhecendo objetivamente as estruturas dos conceitos racionais, para finalmente controlá-las. E agora é chegado o momento em que o homem

deve libertar-se, dispersando mais uma vez a névoa de um outro sistema fixo e, com um golpe audaz, abrir uma clareira que dê início a uma nova era. E novamente a neblina impede a visão dessa nova terra aberta pelo espírito em contínuo crescimento, que se propaga imensurável, espessa, que enrijece as suas forças, do mesmo modo como o fez na era passada, e que lhe conferiu a sua grandeza. Hoje a barreira são as forças da mente racional. As descobertas científicas, que avançam até desvendar os mais profundos mistérios da natureza, a tecnologia que literalmente bombardeia os céus, a capacidade organizadora em todos os âmbitos, e todo o progresso de que tanto se orgulha o homem ocidental, fez com que a forma de consciência que constitui a raiz de todo desenvolvimento — a consciência racional — se converta de tal modo na única válida que tudo aquilo que não é acessível à sua visão se toma questionável. Mas agora, valores novos, que detêm a chave do futuro, estão irrompendo do outro lado da natureza humana, no lado em que a razão não pode penetrar. Há mais sinais anunciando a chegada da Nova Era do que podemos supor. Mais pessoas do que suspeitamos têm experiências nas quais o seu verdadeiro Ser lhes fala, experiências que as comovem e alegram, conferindo-lhes um vislumbre instantâneo de uma outra realidade, mais profunda do que a conhecida até agora. Porém, quem pode nos ensinar, como ocidentais que somos, a levar essas experiências a sério?

Este é mais um significado do Zen. Todas as suas manifestações respiram o ar dessa outra realidade maior que pode se abrir para nós, quando nos livrarmos da consciência objetiva. E todos os esforços do Zen visam levar a sério essas experiências, e também o seu significado. Essas vivências, contudo, nunca são resultado de especulações teóricas:

elas irrompem inesperadamente da escuridão de um sofrimento existencial. Seu significado só se toma compreensível quando se reconhecem as causas que provocaram uma limitação na visão da realidade necessária à vida prática do homem atual.




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