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Feliz Ano Novo

do livro "A Doutrina Zen da Não-Mente"
de Daisetz Teitaro Suzuki


Seja como for, o Zen está sempre próximo da nossa experiência cotidiana, sendo esse o significado da declaração de Nansen (Nan-ch’van) e de Baso (Ma-tsu): sua mente (pensamento) cotidiana é o Tao. "Quando temos fome, comemos; quando temos sono, dormimos." Nessa ação direta, onde não há agentes intermediários, como acontece no reconhecimento de objetos, na consideração do tempo, na deliberação de valores etc., o Inconsciente se afirma negando-se. A seguir, apresento casos de funcionamento prático do Inconsciente como foi experimentado pelos mestres que tentaram com dificuldade ensiná-lo a seus discípulos.

1. Perguntaram a Hsiang-nien, de Chou-chan (925-992):

— De acordo com o Sutra, todos os Budas saem deste Sutra; que Sutra é este?

— Mais baixo, mais baixo — disse o Mestre.

— Como devo cuidar dele?

— Trate de não manchá-lo.

Para tomar este mondo mais claro para o leitor, "este Sutra" não significa necessariamente o Prajnaparamita, em que se encontra esta frase; pode significar a natureza-própria de Hui-neng ou a Mente Original de Huang-po, ou ainda qualquer coisa geralmente considerada como a Realidade Última da qual se originou todas as coisas. O monge então pergunta o que é essa Grande Fonte de todas as coisas. Como já disse antes, o conceito de uma Grande Fonte com existência separada em algum lugar é o engano fundamental em que todos incorremos ao tentar interpretar intelectualmente a nossa experiência. Por natureza, o intelecto levanta uma série de antíteses no labirinto das quais ele se perde. Sem dúvida, o monge foi vitima dessa contradição fatal, sendo muito provável que ele tenha levantado a voz ao perguntar: "Que Sutra é este?" Dai a advertência do mestre: "Mais baixo, mais baixo." O texto não diz se essa advertência foi logo tomada como amostra da fonte do próprio Buda, mas a pergunta seguinte: "Como cuidar dele?", mostra que o monge penetrou um pouco no assunto. "O quê?", "Por quê?", "Onde?" e "Como?", todas estas perguntas são irrelevantes quando se trata da compreensão fundamental da vida. Nossa mente, porém, está saturada com elas e isso é uma desgraça que pesa sobre todos nós. Hsiang-nien, ciente disso, não tentou utilizar-se de soluções intelectuais. A resposta ("mais baixo"), tão obviamente prática, valeu como uma explicação.

2. Um monge perguntou a Hsiang-nien:

— O que é O Corpo do espaço?

Espaço pode ser traduzido, aqui, por céu ou Vazio; os povos antigos o consideravam uma espécie de realidade objetiva, e o monge, então, pergunta o que é que sustenta esse Vazio, qual é o Corpo em volta do qual o imenso Vazio se mantém seguro. Na realidade, porém, a pergunta não se refere ao Vazio do espaço, mas ao estado mental do monge — estado que ele atingira provavelmente depois de uma longa prática de meditação à moda convencional, isto é, eliminando da consciência os pensamentos e os sentimentos. Ele teria imaginado, provavelmente, como tantos budistas e leigos, que deveria haver um ser que, indefinível e no entanto compreensível de algum modo, sustentasse o não-sustentado.

A isso, o mestre respondeu:

—Seu velho mestre está abaixo dos seus pés.

— Como, reverendo, o senhor está abaixo dos pés de seu próprio aluno?

Ao que o mestre respondeu:

— Que sujeito cego!

A pergunta do monge é de certo modo bastante obscura, e se Hsiang-nien fosse um filósofo, teria feito um longo discurso. Sendo, porém, um mestre prático de Zen, lidando com as coisas que experimentamos no cotidiano, ele simplesmente levou em consideração a relação espacial verificada entre ele e o discípulo; como isso não fosse de pronto entendido e mais uma pergunta lhe fosse feita, aborreceu-se e despediu o aluno com uma exclamação de desprezo.

3. Em outra ocasião, Hsiang-nien foi abordado por alguém que lhe pediu:

— Sou seu humilde discípulo e durante muito tempo andei atormentado com um problema que não resolvi; o mestre teria a bondade de considerá-lo?

O mestre respondeu bruscamente:

— Não tenho tempo a perder com deliberações ociosas.

O monge não se satisfez com essa resposta, pois não sabia como devia interpretá-la; e perguntou:

— E por que isso acontece com o senhor, reverendo?

E o mestre:

— Quando quero andar, ando; quando quero sentar, sento.

Muito simples: ele fazia o que tinha vontade de fazer, não precisava resolver coisa alguma. Entre os seus atos e o seu desejo não se interpunham intermediários morais ou intelectuais — não havia "mente" a interferir — e, consequentemente, ele não tinha problemas que lhe molestassem a paz de espírito. Sua resposta somente poderia ser prática e objetiva.

4. Um monge perguntou a Hsiang-nien:

— Qual é o seu olho que não engana as pessoas?

Esta é uma tradução livre; o que, na realidade, o monge pede é uma explicação da atitude mental franca e genuína do mestre, a que controla todas as suas experiências. Nosso olho está, em geral, encoberto pela poeira de todos os tipos e a refração da luz causada por esse fato deturpa a visão correta das coisas.

O mestre respondeu imediatamente, dizendo:

— Olhe, olhe o inverno chegando!

Este mondo deu-se provavelmente em algum mosteiro situado numa montanha, cercado de árvores despidas de folhas e tremendo ao vento, enquanto mestre e discípulo podiam olhar as nuvens carregadas de neve, Era cena a proximidade do inverno; não havia dúvida quanto a isso.

Mas o monge ficou imaginando se por trás disso não haveria mais alguma coisa e perguntou:

— O que isso significa, fundamentalmente?

O mestre, com naturalidade, respondeu:

— Que depois teremos a doce brisa da primavera.

Não há nisso qualquer alusão a conceitos complexos de metafísica, mas a um simples fato de observação, narrado na linguagem a mais comum. Nas mãos de um filósofo ou de um teólogo, a pergunta do monge pode ter um tratamento diferente; mas o olho do mestre zen está sempre atento aos fatos da experiência, acessíveis a toda gente e por ele mesmo verificáveis sempre que ele quiser. Qualquer espécie de misticismo lhe é estranho; o misticismo está na cegueira de quem o procura.

Estas passagens bastam para demonstrar a atitude do mestre zen diante das perguntas ditas metafísicas ou teológicas que atormentam o coração inclinado à religiosidade de tantas pessoas; também demonstram o método que eles empregam ao lidar com perguntas, na formação de seus discípulos. Nunca recorrem a discussões de natureza altamente abstrata, mas consideram suas experiências cotidianas, agrupando-as geralmente em "visto, ouvido, pensado e conhecido". A idéia deles é que em nosso ‘pensamento cotidiano" (ping-chang hsin), o Inconsciente deve ser pelo menos compreendido; pois não há ligação alguma entre ele e o que denominamos "visto, ouvido, pensado ou conhecido". Qualquer destes atos se alinha com o Inconsciente. Mas, para impressionar meus leitores a ponto de enfadá-los, citarei mais alguns exemplos:

5. Um monge perguntou a Ta-tung, de T’ou-tzu Shan:

— Quando o príncipe Nata devolver todos os seus ossos ao pai e toda a sua carne à mãe o que restará de seu Corpo Original?

Ta-tung atirou ao chão o bastão que tinha nas mãos.

A pergunta era realmente séria, em vista do peso conceitual que encerra, pois refere-se à doutrina do anatman, como é chamada. Quando os cinco skandhas são destruídos, para onde vai a pessoa que se supunha estar por trás da combinação desses skandhas? Dizer que os cinco skandhas são por natureza vazios e que a combinação deles é uma ilusão não basta para aqueles que não experimentaram realmente esse fato. Eles querem ver o problema resolvido de acordo com a lógica que eles aprenderam desde o despertar da consciência. Eles esquecem que é a própria lógica que os enreda nesse beco-sem-saída intelectual, do qual não sabem sair. O ensinamento do anatman é a expressão de uma experiência e de modo algum uma conclusão lógica. Por muito que eles tentem alcançá-la com suas sutilezas lógicas, eles falham, ou então seu raciocínio carece da força necessária de uma convicção decisiva.

A começar pelo Buda, foram muitos os mestre do Abhidharma que exauriram todos os seus poderes de raciocínio com o fito de estabelecer logicamente a teoria do anatman; mas quantos, budistas ou não, deixavam-se realmente persuadir intelectualmente por essa teoria? Se alguma certeza eles têm sobre esse ensinamento, essa certeza lhes vem da experiência e não do fato de formar teorias. No caso do Buda, uma convicção real e pessoal sobreveio primeiro; depois, veio a construção lógica, para dar apoio à convicção. Na verdade, não importava muito que essa construção fosse satisfatoriamente completada, pois a convicção, isto é, a própria experiência, era um fato consumado.

Á posição assumida pelos mestres zen é esta. Eles deixam o aspecto lógico da questão para os filósofos e se contentam com as conclusões tiradas de suas próprias experiências interiores. Eles protestam quando um lógico tenta negar a validade de suas experiências, já que é dever do lógico provar o fato, com os instrumentos de que pode dispor; se o lógico não consegue realizar o seu trabalho a contento, isto é, confirmar logicamente uma experiência, a falha é dele e é ele, então, quem deve descobrir um uso mais eficiente dos instrumentos de seu oficio. Nosso grande erro é querermos impor a lógica aos fatos, quando são os fatos que engendram a lógica.

6. Um monge perguntou a Fu-ch’i:

— Quando as condições (tais como os quatro elementos, os cinco Skandas etc.) se dispersam, voltam todos ao Vazio; mas para onde volta o próprio Vazio?

Esta é uma pergunta de natureza igual à da citada acima, a respeito do Corpo Original do príncipe Nata. Sempre procuramos alguma coisa além ou atrás da nossa experiência, esquecendo que esta busca é uma regressão infindável em todos os sentidos, para dentro ou para fora, para cima ou para baixo. O mestre zen está alerta a isso e evita as complicações.

Fu-ch’i exclamou:

— Ó irmão!

e o monge respondeu: — Sim, mestre.

O mestre então perguntou:

— Onde está o Vazio?

O pobre monge estava ainda à procura de imagens conceituais e fracassou completamente ao conceber uma idéia sobre o paradeiro do Vazio.

Então, fez novo pedido:

— Tenha a bondade de me falar sobre isso, mestre.

O mestre não tinha mais o que dizer; mas, enigmaticamente, concluiu:

— É como um persa provando uma pimenta vermelha.

Nesse tempo, isto é, no período T’ang, a capital da China devia estar cheia de gente vinda de muitos países do Ocidente, como no caso em que encontramos várias referencias a persas (po-ssu) na literatura zen. Mesmo o Bodhidharma, fundador do Zen-budismo na China, era tido por muitos como persa, querendo o termo indicar talvez que se tratava simplesmente de um estrangeiro. Evidentemente, alguns historiadores chineses do período T’ang não distinguiam os persas dos hindus. Por um "persa provando uma pimenta vermelha", o mestre quer dar a entender a sua incapacidade de expressar a experiência com palavras adequadas na língua chinesa, tal como aconteceria a um estrangeiro.

7. Um monge procurou T’ou-tzu e perguntou-lhe:

— Vim de um lugar distante especialmente para ver-te. Podes ter a bondade de me dar uma palavra de instrução?

Ao que o mestre respondeu:

— Estou ficando velho e hoje estou com dor nas costas.

Que palavra de instrução é esta? Para um peregrino chegado de longe, do lugar mais remoto do país, que veio especialmente para ouvir uma palavra de instrução do velho mestre, "estou com dor nas costas" parece uma resposta de pouco-caso — de muito pouco-caso mesmo. Mas tudo depende de como se encara a questão. Visto que o Zen lida com a nossa experiência diária, esta alusão do velho mestre à sua dor nas costas deve ser encarada como uma indicação direta do próprio Inconsciente primário. Se o monge já tivesse refletido detidamente sobre esse assunto, teria visto imediatamente em que direção T’ou-tzu tentava conduzir-lhe o olhar.

Mas este é um ponto em que se deve tomar cuidado com esta idéia de Inconsciente. Embora eu já tenha recomendado diversas vezes que se tomasse cuidado com esse assunto, mais uma vez vou citar T’ou-tzu.

Um monge perguntou-lhe:

— O que dizer de um pensamento que ainda não nasceu?

Isso se refere a um estado de consciência em que, variados todos os pensamentos, prevalece o Vazio; o monge deseja saber se essa é a experiência zen; provavelmente, ele pensa ter chegado à realização.

Mas a resposta do mestre foi:

— Isso é realmente absurdo !

Houve outro monge que abordou um outro mestre com a mesma pergunta e recebeu a seguinte resposta:

— E isso, de que serve?

Evidentemente, o mestre não tinha uma explicação para o estado de inconsciência concebido pela maior parte dos budistas.

Em outra ocasião, perguntaram a Tou-tzu:

— Que me dizes do tempo que precede o canto do galo dourado?

Essa expressão pretende deixar perceber o mesmo ponto de vista expresso pelos dois monges de quem falamos.

T’ou-tzu disse: — Não há som.

— E depois do canto? — insistiu o monge.

E o mestre:

— Toda a gente fica sabendo que horas são.

Temos aí duas respostas banais e gostaríamos de saber onde pode estar esse misterioso, ardiloso, incompreensível Zen.

Pensar que o Zen seja misterioso é o primeiro grande equivoco que a maioria comete a seu respeito. Justamente por causa deste equívoco, o Inconsciente não consegue agir à sua maneira inconsciente, e a verdadeira saída se perde em confusões conceituais. A mente fica dividida entre dois conceitos opostos e o resultado é uma preocupação desnecessária. O que se segue é um exemplo de como evitar a contradição, ou melhor, um exemplo de como viver a contradição, pois a vida é, na realidade, uma série de contradições.

Um monge perguntou a T’ou-tzu: — O ano-velho acabou e chegou o ano-novo; não haveria alguma coisa sem relação alguma com um ou outro?

Como já vimos, o Zen é sempre prático e se alimenta dos acontecimentos do cotidiano. O passado passou e o presente está aqui, mas este presente também logo será passado; de fato, já passou. O tempo é uma sucessão dessas duas idéias contraditórias e tudo o que acontece nesta vida abraça o passado e o presente. Não se pode dizer que pertença a um ou a outro, pois não pode ser cortado em pedaços. Como, então, um fato do passado atravessa para o presente e ao mesmo tempo nos permite ter uma idéia completa do fato como coisa completa? Quando o pensamento se divide assim, nada podemos concluir. Cabe, portanto, ao Zen decidir a questão da maneira mais conclusiva, que é a maneira mais prática.

Por isso, o mestre responde à pergunta do monge:

— Sim.

Quando o monge insiste na pergunta: — Qual é ela?

O mestre diz:

— Com a noticia do ano-novo, o mundo inteiro parece rejuvenescer e todas as coisas cantam: Feliz Ano-Novo.




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