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Estado Superior e Bondade Suprema1

Texto atribuído a Nagarjuna
Do livro "A Grinalda Preciosa".
Traduzido do tibetano e editado por
Jeffrey Hopkins e Lati Rinpoche
com a colaboração de Anne Klein.
Tradução em português de Duílio Colombini.

Inclino-me diante do onisciente,
Livre de todos os defeitos,
Ornado de todas as virtudes,
O único amigo de todos os seres.

Ó Rei, hei de expor práticas unicamente
Virtuosas para gerar em vós o Dharma,
Porque as práticas se firmarão
Num receptáculo do Dharma excelente.

Em quem pratica primeiro o estado superior,
Surge mais tarde a bondade suprema;
Pois, alcançado o estado superior,
Gradualmente se chega à bondade suprema.

Considera-se o estado superior como felicidade;
A bondade suprema, como liberação;
Fé e sabedoria constituem, em suma,
A quintessência de seus processos.

Por meio da fé, o homem confia-se às práticas;
Por meio da sabedoria, conhece verdadeiramente;
Da ambas, sabedoria é a principal,
Sendo a fé o seu pré-requisito.

Aquele que não negligencia as práticas
Por causa de desejo, ódio, medo ou ignorância
É tido como alguém de fé — um receptáculo
Digno da bondade suprema.

Depois de analisar a fundo
Todos os feitos do corpo, fala e mente,
Aquele que realiza o que é benéfico para si
E para outros, e sempre pratica, é sábio.

Não matar, não mais roubar,
Respeitar a mulher do próximo,
Abster-se completamente da fala mentirosa,
Ríspida, indiscreta e que causa desavença.

Abandonar a cobiça, as intenções
Nocivas e as opiniões de niilistas
Tais são as dez brancas sendas de ação,
Sendo negros os seus opostos.

Não beber substâncias inebriantes,
Ter meios de vida honestos, não prejudicar,
Levar em conta o dar, honrar o honorável
E amar — é isto em suma, a prática.

Prática não significa 
Mortificar o corpo,
Pois isso não deixa de causar dano
A outros e tampouco os ajuda.

Aquele que não estima a senda do Dharma excelente —
Radiante de ética, generosidade e paciência —
Injuria seu corpo e envereda 
Por falsos caminhos como atalhos da floresta;

Emaranhando seu corpo em viciosas 
Aflições, ele adentra por um longo tempo
Na pavorosa floresta da existência cíclica,
Em meio a árvores de seres sem fim.

Uma vida curta decorre do matar;
Muita aflição, do dano cometido;
Poucos recursos, do roubar;
Inimigos, do adultério.

Da mentira deriva a calúnia;
Da difamação, a desunião de amigos;
Da rispidez, o ouvir desagradável;
Da tagarelice, a perda de respeito pelo que se diz.

A cobiça destrói as aspirações do homem;
Intenção nociva gera temor;
Idéias errôneas conduzem a más opiniões
E beber, à confusão da mente.

Do não dar resulta a pobreza;
Do errado meio de vida, a fraude;
Da arrogância, uma linhagem ruim;
Do ciúme, parca beleza.

Uma cor desagradável advém da ira;
A estupidez, de não perguntar ao sábio.
O principal fruto disso tudo
É uma migração nefasta para os humanos.

Oposto aos conhecidos frutos
Dessas não-virtudes,
É o surgimento de efeitos
Causados por todas as virtudes.

Desejo, ódio, ignorância e
As ações por eles geradas são não-virtudes.
Não-desejo, não-ódio, não-ignorância
E as ações que geram são virtudes.

Das não-virtudes advêm todos os sofrimentos
E, do mesmo modo, todas as más migrações;
Das virtudes, todas as felizes migrações
E os prazeres de todos os nascimentos.

Desistir das não-virtudes
E empenhar-se sempre nas virtudes,
Com corpo, fala e mente —
Estas são conhecidas como as três formas de prática.

Com tais práticas, fica-se livre de tornar-se
Habitante dos infernos, fantasma faminto ou animal;
Renascendo como humano ou deus, alcança-se
Grande felicidade, fortuna e domínio.

Através das concentrações, incomensuráveis e sem forma,
O homem experimenta a bem-aventurança de Brahma e semelhantes.
Tais são, em suma, as práticas
Para o estado superior e seus frutos.

Como afirmam os vitoriosos [buddhas], os Dharmas
Da bondade suprema são profundos,
Sutis e atemorizantes
Para crianças despreparadas.

"Eu não sou, eu não serei.
Eu não tenho, eu não terei",
Isto assusta toda criança
E mata o medo no sábio.

Disse [o Buddha,] aquele que fala só para auxiliar os seres,
Que todas essas [opiniões]
Surgiram da concepção de "eu"
E estão envolvidas com a concepção de "meu".

"O 'eu' existe, o 'meu' existe."
Em definitivo, tais concepções são errôneas,
Pois nem uma nem outra estão [fundamentadas]
Por uma consciência verdadeira e correta.

Os agregados mentais e físicos surgem
Da concepção de "eu" que, de fato, é falsa.
Como poderia o que cresceu
De uma falsa semente ser verdadeiro?

Assim, vistos os agregados como não verdadeiros,
A concepção de "eu" é abandonada,
E devido a tal abandono
Os agregados não voltam a surgir.

Da mesma forma que
A imagem de um rosto
Depende de um espelho para ser vista,
Mas na realidade não existe [como um rosto],

Assim a concepção de "eu" existe
Dependente dos agregados;
Porém, como a imagem de um rosto,
Na realidade o "eu" não existe.

Assim como sem depender de um espelho
a imagem de um rosto não é vista,
assim também o "eu" não existe
sem depender dos agregados.

Quando o superior Ananda
Alcançou o que isso significa,
Conquistou o olho do Dharma e ensinou-o 
Continuamente aos monges.

Há uma falsa concepção de "eu"
Enquanto os agregados são mal compreendidos;
Quando tal concepção de "eu" inexiste,
Há ação que resulta em nascimento.

Com essas três sendas causando-se mutuamente
Umas às outras, sem começo, meio ou fim, 
A roda da existência cíclica
Gira como a "roda" de um tição.

Porque tal roda não advém de um si-próprio, de um outro,
Nem de ambos, no passado, no presente ou no futuro,
A concepção de um "eu" cessa
E, por conseguinte, ação e renascimento.

Então, aquele que vê como causa e efeito
São produzidos e destruídos,
Não considera o mundo
Como realmente existente ou não-existente.

Por isso, aquele que ouviu, mas não examina
O Dharma que destrói todo o sofrimento,
E teme o destemido estado,
Estremece devido à ignorância.

O fato de que tudo isto não existe no nirvana
Não vos apavora [a vós, um praticante]. 
Por que sua existência
Aqui explanada vos causaria temor?

"Na liberação não há 'eu' e não há agregados."
Se a liberação é assim afirmada,
Por que a remoção, aqui, de um "eu"
E dos agregados não é apreciada por vós?

Se o nirvana não é uma não-coisa,
Como poderia ter a "qualidade de uma coisa"?
À extinção da falsa noção 
De coisas e não-coisas chama-se nirvana.

Em suma, a afirmação dos partidários do niilismo,
"As ações não produzem frutos",
Considera-se uma visão errônea,
Sem mérito e conducente a migração infeliz.

Em suma, a afirmação dos partidários da existência [relativa],
"Há frutos das ações",
Considera-se uma visão correta,
Meritória e conducente a felizes migrações.

Porque "é" e "não-é" são desfeitos pela sabedoria,
Há uma passagem para além de mérito e demérito;
Isso — dizem os excelentes — é liberação,
Tanto das migrações felizes quanto das infelizes.

Compreendendo a produção [do sofrimento] como causada,
Passa-se para além da não-existência;
Compreendendo a cessação [do sofrimento] como causada,
Não mais se assevera a existência.

As causas prévia e simultaneamente [com seus efeitos] produzidas
São não-causas; de fato, pois não há causas,
Visto que a produção existente de modo inerente não é 
Conhecida nem em termos convencionais, nem em termos absolutos.

Quando há isto, aquilo surge,
Como o baixo quando há o alto.
Quando isso é produzido, também aquilo,
Como a luz de uma chama.

Quando há "alto", deve haver "baixo",
Eles não existem por sua própria natureza,
Do mesmo modo que sem uma chama
Tampouco surge a luz.

Havendo então percebido que os efeitos resultam
De causas, assevera-se o que aparece
Nas convencionalidades do mundo
E não se aceita o niilismo.

Aquele que refuta [causa e efeito como existentes d e modo inerente]
Não desenvolve [o ponto de vista da] existência,
[Asseverando] como verdadeiro o que não surge de convencionalidades;
Assim sendo, quem não se apóia na dualidade está liberto.

Uma forma vista à distância
É percebida claramente pelos que lhe estão perto.
Se uma miragem fosse água, por que
A água não seria vista por quem lhe está perto?

O modo pelo qual este mundo é visto 
Como real pelos que estão distantes,
Não é o mesmo visto pelos que estão perto,
[Para quem ele é] sem evidência, como uma miragem.

Do mesmo modo que uma miragem parece água, mas não é
Água e de fato não existe [como água],
Assim os agregados são como uma realidade,
Mas não são nem existem [como realidades].

Por ter acreditado que uma miragem 
Era água e ido então até lá [para constatar],
Um homem seria estúpido se concluísse
Que "a água não existe".

Aquele que concebe o quimérico mundo
Como existente ou não-existente
É, por conseqüência, ignorante.
Quando há ignorância, não se está liberado.

O partidário da não-existência sofre más migrações,
Mas felizes advêm aos partidários da existência [relativa];
Aquele que sabe o que é correto e verdadeiro
Não se apóia no dualismo e torna-se, pois, liberto.

Se, por conhecer o que é correto e verdadeiro,
Ele não assevera existência e não-existência,
E por isso [vós pensais] que ele crê na não-existência,
Por que não seria ele um partidário da existência [relativa]?

Se, por refutar a existência [inerente]
Não-existência então lhe advém,
Por que, por refutar a não-existência,
Existência não lhe adviria?

Os que confiam na iluminação
Não sustentam teses niilistas,
Nem agem ou pensam desse modo.
Como podem então ser considerados niilistas?

Perguntai aos que asseveram o mundo, aos samkhyas,
Aos seguidores-da-coruja e aos nirgranthas
Partidários do "eu" e dos agregados —
Se eles propõem que o que está além "é" e "não é".

Portanto, ficai sabendo que a ambrósia
Dos ensinamentos dos buddhas é chamada profunda —
Um Dharma singular que vai
Muito além de existência e não-existência.

Definitivamente, como poderia o mundo existir
Com uma natureza que transcendeu passado, presente
E futuro, que não desaparece quando destruída,
Não vem e não permanece por um instante sequer?

Porque na realidade
Não há vinda, ida ou permanência,
Que diferença existe, em última análise,
Entre o mundo [samsara] e o nirvana?

Se não há permanência, não pode haver 
Nem produção nem cessação.
Então, como poderiam produção, permanência
E cessação de fato existir?

Como as coisas são não-transitórias
Se estão sempre mudando?
Se não mudam,
Como podem então ser modificadas?

Elas se tornam momentâneas em virtude de sua
Parcial ou completa desintegração?
Porque a desigualdade não é compreendida,
Tal transitoriedade não pode ser admitida.

Quando algo deixa de existir devido à transitoriedade
Como pode qualquer coisa ser velha?
Quando uma coisa é não-momentânea devido à permanência,
Como pode algo ser velho?

Uma vez que um momento acaba,
Ele deve ter um começo e um meio;
Esta tríplice natureza de um momento significa
Que o mundo nunca perdura por um instante.

Além do mais, o começo, o meio e o fim
Devem analisar-se como um momento;
Portanto, começo, meio e fim
Não são [produzidos] por si mesmos nem por outros.

Por ter muitas partes, "um" não existe;
Não há nada que seja sem partes;
Além disso, sem "um" não existem "muitos",
E sem existência não há não-existência.

Se, em virtude de destruição ou de um antídoto,
Algo existente deixa de existir,
Como poderia haver destruição
Ou um antídoto sem algo existente?

Definitivamente, o mundo
Não pode desaparecer através do nirvana.
Perguntado sobre se o mundo teria um fim
O Vitorioso era silente.

Por não ter ensinado este Dharma profundo
A seres mundanos — que não eram receptáculos dignos —
Aquele que tudo sabe é conhecido
Como onisciente pelos sábios.

Então, o Dharma da bondade suprema
Foi ensinada pelos buddhas perfeitos —
Os videntes da realidade — como sendo profunda,
Inapreensível e sem fundamento [que não provém de uma base da qual as coisas existam inerentemente].

Atemorizados por esse Dharma sem fundamento,
Deleitando-se em um fundamento,
Sem ir além de existência e não-existência,
Seres não-inteligentes arruínam a si próprios.

Tementes da destemida morada,
Arruinados, eles arruínam os outros.
Ó Rei, agi de modo tal
Que os arruinados não vos arruínem.

Ó Rei, para que vós não sejais arruinado
Explicarei através das escrituras
O modo do supramundano —
A realidade que não se assenta no dualismo.

Esta profundidade que libera
E está além do vício e da virtude
Não foi experimentada pelos que temem o sem fundamento,
Pelos outros, os Vadeadores e nem mesmo por nós.

Uma pessoa não é terra, nem água,
Nem fogo, nem ar, nem espaço,
Não é consciência e nem tudo isso;
Em que a pessoa é diferente dessas coisas?

Assim como a pessoa não é um absoluto,
Mas um composto de seis constituintes,
Assim também cada um deles, por sua vez,
É um composto e não um absoluto.

Os agregados não são o "eu", não estão no "eu",
O "eu" não está nos agregados; sem os agregados, o "eu" não é,
Não está misturado com os agregados como o fogo e o combustível;
Portanto, como pode o "eu" existir?

Os três elementos não são a terra, não estão nela,
Ela não está neles, sem eles ela não é;
Uma vez que isto se aplica a cada um,
Eles, tais como o "eu", são falsos.

Por si mesmos, terra, água, fogo e ar
Não existem inerentemente;
Quando três estão ausentes, não pode haver um,
Quando um está ausente, também o estão os três.

Se, quando três estão ausentes, um não existe,
E quando um está ausente, os três não existem,
Então cada um por si mesmo não existe;
Portanto, como podem eles produzir um composto?

Por outro lado, se cada um existe por si mesmo,
Por que sem combustível não há fogo?
E ainda, por que não há água, ar ou terra
Sem motilidade, firmeza ou coesão?

Se [a resposta for] "sabe-se que o fogo não existe sem combustível, mas os outros três elementos existem independentemente]",
Como poderiam os três existir
Em si mesmos sem os outros? É impossível aos três 
Não estarem em conformidade com a originação interdependente.

Como podem os que existem por si mesmos
Ser mutuamente dependentes?
Como podem aqueles que não existem por si mesmos
Ser mutuamente dependentes?

Se não existem como elementos individuais,
Pois onde há um, lá estão os outros três,
Então quando não misturados, não estão num mesmo lugar,
E se misturados, deixam de existir individualmente.

Os elementos não existem individualmente.
Como poderiam, então, existir suas características individuais?
Os que não existem individualmente não podem predominar;
Suas características são consideradas convencionalidades.

Este modo de refutação aplica-se também
A cores, odores, sabores e objetos do tato,
A olho, consciência e forma,
Ignorância, ação e nascimento.

Agente, objeto, ação e número,
Posse, causa, efeito e tempo,
Curto e comprido e assim por diante,
Nome e portador-de-nome também.

Terra, água, fogo e ar,
Alto e baixo, virtude sutil e grosseira,
E por aí afora, diz o Vitorioso
Que cessam na consciência [da realidade].

As esferas da terra, água, fogo
E ar não aparecem
Antes essa indemonstrável consciência —
Senhora absoluta do ilimitado.

Aqui, alto e baixo, sutil e grosseiro,
Virtude e não-virtude
E nomes e formas,
Tudo deixa de ser.

O que não se conhecia é conhecido
Pela consciência como [a realidade] de tudo
O que apareceu antes. Assim sendo, esses fenômenos,
Mais tarde, deixam de estar na consciência.

Todos esses fenômenos relacionados a seres
Consideram-se como combustível para o fogo da consciência;
Eles são consumidos ao serem queimados
Pela luz do verdadeiro discernimento.

Mais tarde a realidade é apurada
Daquilo que antes era imputado pela ignorância;
Quando não se encontra uma coisa,
Como pode haver uma não-coisa?

Porque os fenômenos das formas
São apenas nomes, também o espaço é só um nome.
Sem os elementos como poderiam as formas existir?
Portanto, nem sequer "só-nome" existe.

Sentimentos, discriminações, fatores de composição
E consciências devem ser considerados
Do mesmo que os elementos são a pessoa;
Portanto os seis constituintes [do ser] carecem de natureza intrínseca.


  1. Extraído de www.dharmanet.com.br


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