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O estado de auto-perfeição Namkhaï Norbu Rinpoche Tradução para o português: Maria Heleosina Ribeiro Pessôa Alguém que comece a desenvolver interesse sobre os ensinamentos pode tender a distanciar-se da realidade das coisas materiais como se os ensinamentos fossem algo completamente dissociado da vida cotidiana. Freqüentemente, no fundo de tudo isso, existe uma atitude de desistência e fuga de seus próprios problemas, com a ilusão de que se pode ser capaz de encontrar alguma coisa que ajudará miraculosamente a transcender tudo aquilo. Mas os ensinamentos baseiam-se no princípio de nossa atual (real, verdadeira) condição humana. Temos um corpo físico com todos os seus vários limites: a cada dia temos que comer, trabalhar, descansar, etc. Esta é nossa realidade, e não podemos ignorá-la. Os ensinamentos do Dzogchen não são nem uma filosofia, nem uma doutrina religiosa, nem uma tradição cultural. Compreender a mensagem dos ensinamentos significa descobrir sua própria condição verdadeira, despida de todas as autodecepções e irrealidades que a mente cria. O verdadeiro significado do termo tibetano Dzogchen, "Grande Perfeição", refere-se ao estado primordial de cada indivíduo e não a qualquer realidade transcendente. Muitos caminhos espirituais têm como base o princípio da compaixão, do benefício aos outros. Na tradição budista Mahayana, por exemplo, a compaixão é um dos pontos fundamentais da prática, associada ao conhecimento da verdadeira natureza do fenômeno, ou "vacuidade". Algumas vezes, entretanto, a compaixão pode ser algo construído e temporário por não entendermos o verdadeiro princípio dela. Uma compaixão genuína, não artificial, só pode surgir após termos entendido nossa verdadeira condição. Observando nossos limites, nossos condicionamentos, nossos conflitos, etc, tornamo-nos verdadeiramente conscientes do sofrimento dos outros, e, então, nossa própria experiência se torna a base ou o modelo para que possamos entender melhor e ajudar os outros à nossa volta. A única fonte de todo tipo de benefício para os outros é estar consciente de nossa própria condição. Quando sabemos como nos ajudarmos e como lidar com nossa situação podemos realmente beneficiar outros, e nosso sentimento de compaixão surgirá espontaneamente, sem que tenhamos necessidade de nos atrelarmos a regras de comportamento de qualquer doutrina religiosa. O que queremos dizer com, "estando consciente de nossa própria condição real"? Significa nos observarmos, descobrindo quem somos, quem acreditamos que somos, e qual a nossa atitude para com os outros e para com a vida. Se nós apenas observarmos os limites, os julgamentos mentais, as paixões, o orgulho, o ciúme, e os apegos com os quais nós nos fechamos ao longo de apenas um dia, de onde surgem, em que estão enraizados? Sua fonte é nossa visão dualística, e nosso condicionamento. Para ser capaz de ajudar tanto a nós mesmos quanto aos outros precisamos ultrapassar todos os limites nos quais estamos enclausurados. Esta é a verdadeira função dos ensinamentos. Qualquer ensinamento é transmitido através da cultura e conhecimento dos seres humanos. Mas é importante não confundir qualquer cultura ou tradição com os ensinamentos em si, porque a essência dos ensinamentos é o conhecimento da natureza do indivíduo. Qualquer cultura pode ser de grande valor porque é o meio que capacita as pessoas a receberem a mensagem de um ensinamento, mas não é o ensinamento em si. Tomem o exemplo do Budismo. Buda viveu na Índia, e para transmitir seu conhecimento ele não criou uma outra forma de cultura, mas usou a cultura do povo indiano de seu tempo como base para comunicação. No "Abhidharmakosha",¹ por exemplo, encontramos conceitos e noções, tais como a descrição de Monte Meru e os cinco continentes, que são típicos da cultura antiga da Índia, e que não seria considerado de importância fundamental para a compreensão do ensinamento de Buda em si. Podemos ver um outro exemplo deste tipo na forma completamente nova que o Budismo adquiriu no Tibet após sua integração com a cultura nativa tibetana. De fato, quando Padmasambhava introduziu o Vajrayana no Tibet ele não eliminou as práticas rituais usadas na antiga tradição Bön, mas soube como usa-las, incorporando-as às práticas do Budismo tântrico. Se alguém não sabe como compreender o verdadeiro significado de um ensinamento através de sua própria cultura, pode confundir a forma externa da tradição religiosa e a essência de sua mensagem. Tomemos o exemplo de uma pessoa ocidental interessada no Budismo e que vai à Índia a procura de um mestre. Lá ele encontra um mestre tibetano tradicional que vive em um monastério isolado e que desconhece a cultura ocidental. Quando se pede a esse mestre para ensinar, ele seguirá o método que usa para ensinar tibetanos. Mas a pessoa ocidental tem algumas grandes dificuldades para ultrapassar, a começar pelo obstáculo do idioma. Talvez ele receba uma iniciação importante e será envolvido por uma atmosfera especial, pela "vibração" espiritual, mas não compreenderá seu significado. Atraído pela idéia de um misticismo exótico ele poderá permanecer uns poucos meses no monastério, absorvendo uns poucos aspectos da cultura e costumes religiosos tibetanos. Quando ele retornar ao ocidente estará convencido de que entendeu o Budismo e sente-se diferente daqueles que o cercam, agindo como um tibetano. Mas a verdade é que para um ocidental praticar um ensinamento que vem do Tibet não há necessidade de que se torne semelhante a um tibetano. Ao contrário, é de fundamental importância que ele saiba como integrar aquele ensinamento com sua própria cultura a fim de ser capaz de transmiti-lo, em sua forma essencial, a outros ocidentais. Mas freqüentemente, quando as pessoas se aproximam de um ensinamento oriental, acreditam que sua própria cultura não tem qualquer valor. Esta é uma atitude muito equivocada, porque sua cultura tem seu valor, relacionado com o ambiente e as circunstâncias em que ela surgiu. Nenhuma cultura pode ser tachada de melhor do que a outra; isso depende sim do indivíduo, se ele usufruirá maior ou menor vantagem dela em termos de desenvolvimento interior. Por esta razão é inútil transferir regras e costumes para um ambiente cultural diferente daquele do qual eles surgiram. Os hábitos e o ambiente cultural de uma pessoa são importantes para o indivíduo para torna-lo capaz de compreender um ensinamento. Você pode transmitir um estado de compreensão usando exemplos conhecidos para o ouvinte. Se "tsampa" com chá tibetano for servido a um ocidental, ele provavelmente não terá idéia de como come-lo. Um tibetano, por outro lado, que come tsampa desde criança, não terá esse problema, e imediatamente misturará o tsampa com o chá e o comerá. Da mesma maneira, se uma pessoa não conhece a cultura através da qual o conhecimento é transmitido, é difícil compreender sua mensagem essencial. Este é o valor do conhecimento de cada cultura em particular. Mas os ensinamentos envolvem um estado interior de conhecimento que não deve ser confundido com a cultura através da qual é transmitido, ou com seus hábitos, costumes, sistema político e social, etc. Os seres humanos criaram culturas diferentes em épocas e lugares diferentes, e alguém que esteja interessado nos ensinamentos deve estar consciente disto e saber como trabalhar com as diversas culturas, sem entretanto tornar-se condicionado por suas formas externas. Por exemplo, aqueles que já têm uma certa familiaridade com a cultura tibetana poderiam pensar que para praticar Dzogchen tenham que se converter tanto ao Budismo quanto ao Bön, porque o Dzogchen se espalhou através destas duas tradições religiosas.Isto mostra como é limitada a nossa maneira de pensar. Se decidirmos seguir um ensinamento espiritual, estamos convencidos de que é necessário para nós mudar alguma coisa, tal como nossa maneira de vestir, de comer, de agir, etc. Mas o Dzgchen não pede a ninguém para aderir a alguma doutrina religiosa ou para entrar para uma ordem monástica, ou para aceitar cegamente os ensinamentos e se tornar "dzogchenista". Todas estas coisas podem, de fato, criar obstáculos ao verdadeiro conhecimento. O fato é que as pessoas estão tão acostumadas a colocar rótulos em tudo de forma que elas são incapazes de entender qualquer coisa que não se enquadre dentro de seus limites. Deixe-me dar um exemplo pessoal. De vez em quando eu encontrarei um tibetano que não me conheça bem, e que me fará a seguinte pergunta, "a que escola você pertence?". No Tibet, ao longo dos séculos, surgiram quatro tradições budistas tibetanas principais, e se um tibetano ouve um mestre, ele está convencido de que o mestre deve necessariamente pertencer a uma destas tradições. Se respondo que sou um praticante de Dzogchen, esta pessoa presumirá que pertenço à escola Nyngmapa, na qual os textos Dzogchen foram preservados. Algumas pessoas, por outro lado, como realmente aconteceu, sabendo que escrevi alguns livros sobre Bön com o objetivo de reavaliar a cultura nativa do Tibet, diriam que sou um Bonpo. Mas Dzogchen não é uma escola ou seita, ou sistema religioso. É simplesmente um estado de conhecimento que os mestres têm transmitido além dos limites da tradição de uma seita ou monástica. Na linhagem dos ensinamentos Dzogchen têm existido mestres pertencentes a todas as classes sociais, incluindo fazendeiros, nômades, nobres, monges, e grandes figuras religiosas, de todas as tradições espirituais e de seitas. O quinto Dalai Lama, por exemplo, enquanto mantinha perfeitamente as obrigações de sua elevada posição religiosa e política, foi um grande praticante de Dzogchen. Uma pessoa que esteja realmente interessada nos ensinamentos tem que entender seu princípio fundamental sem que se torne condicionado pelos limites de uma tradição. As organizações, instituições, e hierarquias que existem nas várias escolas freqüentemente se tornam fatores que nos condicionam, mas isto é algo difícil para nós notarmos. O verdadeiro valor dos ensinamentos está além de todas as estruturas que as pessoas criam, e para descobrir se os ensinamentos são realmente uma coisa viva para nós, precisamos observar em que medida nós nos libertamos de todos os fatores que nos condicionam. Algumas vezes podemos acreditar que nós compreendemos os ensinamentos, e que sabemos como aplica-los, mas na prática continuamos condicionados por atitudes e princípios doutrinários que estão longe da verdadeira (real) compreensão da nossa verdadeira condição. Quando um mestre ensina Dzogchen, ele esta tentando transmitir em estado de conhecimento. O objetivo do mestre é despertar o estudante, abrindo a consciência do indivíduo para o estado primordial. O mestre não diria "Siga minhas regras e obedeça aos meus preceitos!". Ele diria, "Abra seu olho interior e observe a si mesmo. Pare de procurar uma lâmpada externa para ilumina-lo, mas acenda sua própria lâmpada interna. Assim os ensinamentos irão viver em você, e você nos ensinamentos". Os ensinamentos precisam tornar-se um conhecimento vivo em todas as atividades cotidianas do indivíduo. Esta é a essência da prática, e ao lado disso não há nada em particular para ser feito. Um monge, sem abandonar seus votos, pode praticar perfeitamente bem o Dzogchen, como um padre católico, um balconista, uma operária, etc, sem ter que abandonar seu papel na sociedade, porque o Dzogchen não modifica a pessoa a partir de seu exterior. Na verdade ele as acorda internamente. A única coisa que um mestre Dzogchen pedirá é que o indivíduo observe a si próprio, para alcançar a consciência necessária para aplicar os ensinamentos no cotidiano. Toda religião, todo ensinamento espiritual, tem seus princípios filosóficos básicos, seu jeito característico de ver as coisas. Na filosofia Budista, por exemplo, sugiram diferentes sistemas e tradições, freqüentemente discordando entre si apenas sobre sutilezas de interpretação dos princípios fundamentais. No Tibet estas controvérsias filosóficas persistem até hoje, e os textos polêmicos resultantes constituem agora um corpo inteiro de literatura. Mas no Dzogchen nenhuma importância é dada às opiniões e convicções filosóficas. A forma de ver no Dzogen não está baseada no conhecimento intelectual, mas na consciência do indivíduo de sua verdadeira condição. Todo mundo geralmente tem sua própria forma de pensar e suas próprias convicções sobre a vida, mesmo que nem sempre consigam defini-los filosóficamente. Todas as teorias filosóficas que existem foram criadas pelas mentes dualistas equivocadas dos seres humanos. No domínio da filosofia, que hoje é considerada verdadeira, amanhã pode se considerada falsa. Ninguém pode garantir a validade de uma filosofia. Por causa disto, qualquer forma intelectual de ver o que quer que seja é parcial e relativa. O fato é que não existe verdade a ser buscada ou confirmada logicamente; em lugar disto o que o indivíduo deve fazer é descobrir o quanto a mente continuamente limita a si próprio numa condição de dualismo. O dualismo é a raiz verdadeira de nosso sofrimento e de todos os nossos conflitos. Todos os nossos conceitos e crenças, não importa quanto profundos possam parecer, são como redes que nos aprisionam no dualismo. Quando descobrimos nossos limites temos que tentar ultrapassa-los, desligando-nos de qualquer tipo de convicção religiosa, política, ou social que possa nos condicionar. Nós temos que abandonar conceitos tais como "iluminação", "a natureza da mente", etc, até que não nos satisfaçamos mais com um conhecimento meramente intelectual, e até que nós não nos descuidemos mais de integrar nosso conhecimento com nossa existência verdadeira. Assim, é necessário começar o que sabemos, com nossa condição humana material. No ensinamento é explicado que o indivíduo é constituído de três aspectos: corpo, voz e mente. Estes constituem nossa condição relativa, que está sujeita ao tempo e à separação do sujeito e do objeto. Aquela que está além do tempo e dos limites do dualismo é chamada "condição absoluta", o verdadeiro estado do corpo, voz e mente. Para entrar nesta experiência, entretanto, é necessário primeiro entender nossa existência relativa. O corpo é algo verdadeiro para nós; é a forma material que nos limita dentro do domínio humano. Externamente ele encontra seu reflexo na sua própria dimensão material, com a qual está intimamente ligado. No Tantrismo, por exemplo, fala-se de correspondências precisas entre o corpo humano e o universo, com base no princípio de que são uma única energia. Quando pensamos em nós mesmos, a primeira coisa que pensamos é em nosso corpo e no nosso ser físico. Disto surge um sentimento de um Eu, nosso apego, e todos os conceitos de propriedade que decorrem disso, tais como, minha casa, meu país, meu planeta, etc. Através da dimensão material do corpo podemos compreender sua energia, ou a "voz", o segundo aspecto do indivíduo. Energia não é material, visível, ou tangível. É algo mais sutil e difícil de entender. Um de seus aspectos perceptíveis é vibração, ou som, e assim conhecido como "voz". A voz esta ligada à respiração, e a respiração à energia vital do indivíduo. No Yantra Yoga,4 movimentos do corpo e exercícios respiratórios têm como objetivo o controle dessa energia vital. A relação entre voz, respiração, e mantra pode ser melhor demonstrada através do modo como os mantras funcionam. Um mantra é uma série de sílabas cujo poder reside em seu som, através da pronúncia repetida das quais se pode obter controle de uma dada forma de energia. A energia do indivíduo está intimamente ligada à energia externa, e cada uma pode influenciar a outra. O conhecimento dos vários aspectos da relação entre as duas energias é a base das tradições rituais Bön, as quais até hoje têm sido um pouco descuidadas pelos estudiosos ocidentais. No Bön, por exemplo, considera-se que muitos distúrbios e doenças derivam de classes de seres que têm a capacidade de dominar certas formas de energia. Quando a energia de um indivíduo enfraquece, é como deixar uma porta aberta através da qual distúrbios de tais classes de seres passam. Assim é dada uma grande importância à manutenção da integridade da energia do indivíduo. Trabalhando de forma oposta, é possível influenciar a energia externa, desencadeando o que eles chamam de "milagres". Tal atividade é na verdade o resultado de ter-se o controle da própria energia, através da qual se obtém a capacidade do poder sobre os fenômenos externos. A mente é o aspecto mais sutil e oculto da nossa condição relativa, mas não é difícil notar sua existência. Tudo o que se tem a fazer é observar os pensamentos e como nos deixamos capturar no seu fluxo. Se alguém pergunta "O que é a mente?" - a resposta poderia ser de que é a mente que faz essa pergunta. A mente é um fluxo ininterrupto de pensamentos que surgem e desaparecem. É a capacidade para julgar, para racionalizar, para imaginar, etc, dentro dos limites do espaço e do tempo. Mas além da mente, além de nossos pensamentos, existe algo que chamamos a "natureza da mente", a verdadeira condição da mente, que está além de todos os limites. Se está além da mente, assim, como podemos chegar ao entendimento dela? Tomemos o exemplo do espelho. Quando olhamos no espelho vemos nele as imagens refletidas de muitos objetos que estão em frente dele; não vemos a natureza do espelho. Mas o que queremos dizer com esta "natureza do espelho"? Nós nos referimos à sua capacidade de refletir, definida por sua claridade, sua pureza, e sua limpidez, que são condições indispensáveis para a manifestação dos reflexos. Esta "natureza do espelho" não é algo visível, e a única maneira pela qual podemos compreender é através das imagens refletidas no espelho. Do mesmo modo, nós apenas sabemos e temos experiência concreta daquilo que é relativo à nossa condição de corpo, voz e mente. Mas esta é a própria maneira de entender suas naturezas verdadeiras. Na verdade, falando do ponto de vista absoluto, não existe qualquer separação entre a condição relativa e a sua verdadeira natureza, da mesma maneira que um espelho e as imagens refletidas nele são de fato indivisíveis do todo. Contudo, nossa situação é tal que é como se houvéssemos saído do espelho e agora estivéssemos olhando para as imagens refletidas que estão aparecendo nele. Inconscientes de nossa própria natureza de claridade, pureza e limpidez, consideramos as imagens refletidas como reais, desenvolvendo aversão ou apego. Assim, em vez destas imagens constituírem um meio para descobrirmos nossa verdadeira natureza, elas se tornam um fator de condicionamento. E nós vivemos distraídos pelas condições relativas, atribuindo grande importância a tudo. Esta condição dualista, que é a situação geral de todos os seres humanos, é chamada "ignorância" nos ensinamentos. E mesmo uma pessoa que tenha estudado os conceitos mais profundos quanto "à natureza da mente", mas que não entendeu realmente sua condição relativa, pode ser definida como "ignorante", porque a "natureza da mente" para aquela pessoa permanece um conhecimento intelectual. Entender nossa verdadeira natureza não requer necessariamente o uso do processo mental de análise e racionalização. Uma pessoa que tem um conhecimento intelectual da natureza da mente permanecerá apegada, tal como qualquer outra pessoa, pelas imagens refletidas que aparecem e as julgarão como belas ou feias, permitindo a si mesmas serem presas pelo dualismo da mente. Nos ensinamentos Dzogchen o termo "conhecimento" denota um estado de consciência que é como um espelho, em que sua natureza não pode ser colorida pela imagem refletida nele. Quando nos encontramos a nós mesmos no conhecimento de nossa verdadeira natureza, nada nos condiciona. Tudo o que surge é vivenciado como parte das qualidades do nosso próprio estado primordial. Por esta razão o ponto fundamental não é abandonar ou transformar a condição relativa, mas compreender sua verdadeira natureza. Para este fim é necessário clarear (esclarecer, clarificar) todos os conceitos equivocados e falsificações que nós continuamente nos aplicamos. Nós temos um corpo material, que é extremamente delicado, e que tem muitas necessidades que temos que respeitar. Se estivermos com fome precisamos comer, se estamos cansados precisamos descansar, etc. Se não o fizermos, podemos desenvolver problemas de saúde sérios, porque os limites de nosso corpo são reais para nós. Nos ensinamentos, ultrapassar o apego ao corpo é ensinado de uma maneira ampla. Mas isto não significa que devemos romper abruptamente todos os limites e negar suas necessidades. O primeiro passo para ultrapassar este apego é entender a condição do corpo, e assim saber como respeita-lo. Isto também é verdade no que concerne ao funcionamento de nossa energia. Quando alguém ignora isso e tenta debater-se com seus limites naturais, os distúrbios resultantes podem espalhar-se facilmente para áreas do corpo ou da mente. Na medicina tibetana, por exemplo, algumas formas de loucura são consideradas como causadas pela circulação de uma energia vital sutil em lugares diversos daqueles em que usualmente fluiria. Problemas de energia são muito sérios. Nos tempos modernos atravessamos um período no qual existe uma maior disseminação de doenças, tal como câncer, que estão ligadas a desordens de energia. As formas oficiais de medicina ocidental, mesmo tendo identificado os sintomas de tal doença, não sabem qual a causa fundamental, porque eles não compreendem como a energia funciona. Na medicina tibetana estes tipos de distúrbios, assim como quando o curso do tratamento médico mostra ineficácia, são curados pela prática de mantra, que influencia e coordena a condição da energia do paciente através do som e da respiração. Paralelamente, no Yantra Yoga existem posições do corpo, métodos de controle da respiração, e concentrações mentais que podem ser usados para restabelecer desordens de energia. Os ensinamentos Dzogchen advertem para que o indivíduo nunca force a condição de energia de alguém, mas sempre esteja consciente de seus limites em todas as várias circunstâncias em que ele se encontre. Se algumas vezes o indivíduo não se sentir bem sentando para praticar, deve evitar se colocar em luta contra ele próprio. Pode ser que haja algum problema em nossa energia que nós desconhecemos por traz de um sentimento nosso como esse. Em tais situações é importante saber como relaxar, e como dar espaço a si próprio, a fim de não bloquear o progresso de sua prática. Problemas de solidão, depressão, confusão mental, etc, também freqüentemente derivam de uma condição de desbalanceamento de nossa energia. A mente influencia tanto a condição do corpo como da energia, e ao mesmo tempo depende deles. Algumas vezes a mente está totalmente escravizada pela energia e não há nenhuma forma de balanceá-la sem limpar as desordens de energia primeiro. É muito importante entender a relação de interdependência entre mente e energia. Em todas as tradições budistas, quando se ensina alguém a meditar, explica-se que a respiração precisa ser lenta e profunda, a fim de favorecer o desenvolvimento de um estado de calma para a mente. Por outro lado, se observarmos uma pessoa nervosa cuja mente se encontra num estado agitado, notaremos certamente que sua respiração é curta e apressada. Algumas vezes é impossível acalmar a mente apenas pela meditação, e é necessário praticar respiração e movimentos de Yantra Yoga, a fim de re-coordenar a energia da pessoa. A imagem de uma gaiola é geralmente usada como exemplo para representar nossa condição relativa. Diz-se que um indivíduo assemelha-se a um pássaro preso e protegido por uma gaiola. A gaiola é aqui um símbolo de todos os limites de nosso corpo, voz e mente. Mas a gaiola no exemplo não é usada para indicar alguma situação anormal horrível, mas sim para descrever uma condição normal na qual o ser humano vive. O problema é que não estamos conscientes da situação em que realmente nos encontramos, e estamos de fato com medo de descobri-la, porque crescemos nessa gaiola desde pequenos. Consideremos a maneira como uma criança entra nesses limites. Durante os primeiros meses de vida, quando a criança ainda não sabe racionalizar ou falar, seus felizes pais embalam-na em seus braços e murmuram palavras doces para ela. Mas quando a criança começa a andar e querer tocar alguma coisa eles dizem, "Não toque nisso! Não vá lá!" Então a criança cresce, e é obrigada a limitar mais e mais sua maneira de se expressar, de sentar-se à mesa, de comer, etc. Os pais ficam orgulhosos disto, mas a verdade é que a pobre coisinha esta sendo introduzida completamente na maneira deles pensarem. E então, aos cinco ou seis anos de idade, a criança começa a ir à escola, com todas as regras e expectativas resultantes. A criança terá novas dificuldades a superar, mas irá gradualmente acostumar-se a esta gaiola adicional. Atualmente leva-se muitos anos para completar a gaiola que é indispensável para nós porque nos capacita a viver em sociedade. Então há muitos outros fatores condicionantes, tais como idéias políticas, crenças religiosas, os vínculos da amizade, do trabalho, etc. Quando a gaiola está suficientemente desenvolvida estamos prontos para viver nela, e nos sentirmos protegidos. Esta é a condição de cada indivíduo, e nós temos que descobri-la observando a nós mesmos. Quando estamos conscientes de nossos limites há a possibilidade de ultrapassa-los. Um pássaro numa gaiola gera seus filhotes na gaiola. Quando nascem, os passarinhos têm asas. Mesmo se, na gaiola, eles não podem voar, o fato de que eles nasceram com asas mostra que sua natureza verdadeira é ter contato com o espaço aberto do céu. Mas se um passarinho que viveu sempre numa gaiola de repente escapa de trás das grades, ele poderia encontrar um gato. Assim é necessário para o passarinho treinar um pouco em um espaço limitado, até que, quando ele se sinta pronto, pode alçar vôo definitivamente. É o mesmo conosco: mesmo se é difícil para nós ultrapassar todos os nossos limites em um instante, é importante saber que nosso estado verdadeiro está lá, além de todos os fatores condicionantes, e que nós realmente temos a possibilidade de redescobri-lo. Nós podemos aprender a voar além dos limites de nossa condição dualista, até que estejamos prontos para deixa-la para trás completamente. Podemos começar tomando consciência de nosso corpo, voz e mente. Entender nossa verdadeira natureza significa entender nossa condição relativa e saber como reintegrar com sua natureza essencial, de modo que nos tornemos novamente como um espelho que reflete qualquer objeto que seja, manifestando sua claridade. |