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Mente da Atividade, Natureza da Mente

de Chagdudu Tulku Rinpoche
Comentários de Dilgo Khyentse Rinpoche
Extraído do livro Portões da Prática Budista


Na tradição budista, fazemos distinção entre compreensão intelectual, experiência instável e realização estável. A compreensão intelectual, como um remendo mal costurado que vai cair com o tempo, é temporária. Se formos adiante em nossa prática, poderemos ter um vislumbre da verdadeira natureza da mente, mas, como a névoa, ele se dissipará. O que buscamos alcançar com nosso trabalho é uma realização imutável como o espaço, que por sua própria natureza nunca se altera.

Quando cresce a nossa compreensão da impermanência e da qualidade ilusória da existência, começamos a observar os fenômenos sem projetar nossas falsas suposições; com o tempo, passamos a reconhecer o estado desperto intrínseco, aberto e nu, como a nossa verdadeira natureza e a verdadeira natureza da realidade.

Para ter acesso a experiência daquilo que é natural, comece reconhecendo a impermanência em cada ação do seu corpo, em cada palavra da sua fala, em cada movimento da sua mente. Ao movimentar sua mão, reconheça na mudança de posição uma demonstração de impermanência. Primeiro, ela estava do lado esquerdo, depois do direito. Com sua respiração, reconheça a Impermanência, à medida que ela vai e vem, vai e vem. Com a prática, o processo intelectual deliberado de olhar para cada coisa e pensar, "Isto é impermanente", evolui para um conhecer natural, espontâneo, da constante manifestação das mudanças. Isso ameniza nossa atitude em relação à realidade; começamos a apreciar a verdade das metáforas do Buda que descrevem os fenômenos como ilusões ou imagens de um sonho, como alucinações, ecos ou arco-íris — aparentes, mas não tangíveis nem corpóreos —, como reflexos da lua sobre a água; brilhantes, porém não sólidos.

Nossa compreensão convencional está baseada em suposições que foram passadas a nós, suposições que dependem de formas convencionais de percepção. Fomos ensinados a dar nome às coisas, atribuindo-lhes uma realidade que não possuem. A mente convencional é muito linear, pulando de um pensamento para outro, Podemos nos imaginar como pensadores multifacetados, cujas idéias formam algo como um mosaico, mas somos tão somente seres que mudam muito depressa. Todos os conceitos e pensamentos que surgem na mente, na verdade toda a nossa experiência da realidade, não é muito diferente de desenhos feitos com o dedo sobre a superfície da água. No próprio ato em que uma imagem está sendo criada, ela deixa de existir.

A crença na solidez das nossas experiências produz apego c aversão, os quais, por sua vez, alimentam perpetuamente o fogo do samsara até que a realidade fica parecendo um inferno devorador. Compreender a verdade das nossas experiências é como deixar de pôr lenha na fogueira. As chamas não desaparecem imediatamente, mas sem combustível, o fogo lentamente vai morrendo.

Sem apego e aversão, não somos confundidos pelo jogo de atração e repulsão dos fenômenos. Aí, nessa abertura natural — o espaço claro da mente ao final de um pensamento, antes que o próximo apareça — está o estado desperto.

Grandes praticantes alcançaram a iluminação trazendo contínuamente consciência para seu trabalho. Durante todo o dia, por doze anos, o mestre indiano Tilopa prensou sementes de gergelim para fazer óleo. Com cada movimento, seu estado desperto permanecia inteiramente presente; não escapava para o passado nem para o futuro, não se perdia em vôos da imaginação. O mesmo acontecia com Togtzepa, um praticante que cavava valas: a cada movimento, ele mantinha o estado desperto.

Semelhantemente, muitos dos oitenta e quatro mahasiddhas da Índia, praticantes altamente realizados, exerciam profissões comuns. Enquanto trabalhavam, eles meditavam. Não importava o que faziam. Como repousavam em seu estado desperto, em meio às atividades a que se dedicavam, eles desenvolveram a capacidade de transformar fogo em água, água em fogo, atravessar paredes e voar pelo ar. Em vez de ficarem sujeitos à realidade ordinária, eles se tornaram senhores dela. Evidentemente, a finalidade da meditação não é transformar água em fogo, mas essas capacidades são subprodutos que aparecem naturalmente quando cortamos nosso apego às percepções ordinárias da realidade.

Certa vez, o filho de um rei foi ter com um iogue para receber instruções sobre meditação. Depois que o iogue lhe mostrou um método, o menino disse, "Isso não dará resultado para mim. Mas eu conheço música. Haveria uma meditação que eu pudesse praticar, enquanto toco meu instrumento?"

"Lembre-se ao tocar", respondeu o iogue, "que o som é vacuidade, e a vacuidade é som. O som não está além da vacuidade; a vacuidade não está além do som". Nós também seremos capazes de transformar rapidamente a mente se trouxermos consciência a todas as nossas atividades. Se você está construindo alguma coisa, mantenha a mente presente a cada movimento do martelo. Não deixe que os pensamentos se interponham. Ao escrever, mantenha sua mente junto de cada movimento da caneta ou toque das teclas do computador. Não deixe que ela fique saltando de um lado para outro. Quando você estiver cortando lenha, mantenha a consciência junto de cada golpe do machado. Seja o que for que estiver fazendo. relaxe a mente. Nesse processo, repousamos suavemente em uma postura de abertura, imersos no que esta acontecendo, totalmente presentes, mas ao mesmo tempo cientes da exibição dos fenômenos. Um adulto que esteja a olhar crianças num parque, nunca perde a noção de que elas estão brincando, O adulto não se fixa, de forma deliberada, na atividade delas, dizendo, "Elas estão brincando, elas estão brincando, elas estão brincando". Há, porém, um reconhecimento, um conhecimento desse fato.

Com freqüência perdemos esse relaxamento da mente quando estamos completamente mergulhados em nosso trabalho; por exemplo, quando ficamos tão envolvidos com alguma coisa que estamos escrevendo, tal como se estivéssemos dentro das palavras. Ao repousarmos a mente, porém, há um pouco mais de espaço. E como estarmos um pouco fora do que está acontecendo, cientes de que é uma manifestação, uma exibição, mas sem nos distanciarmos e criarmos dualidade.

A vida dos grandes praticantes demonstra, repetidas vezes, que para manter sua prática do dharma uma pessoa não precisa renunciar ao mundo. Tampouco é preciso renunciar ao dharma para se manter envolvido com as atividades do mundo. É possível integrar ambas as coisas em uma única vida. Gradativamente, novas prioridades e um equilíbrio necessário aparecem.

Em minha vida, testemunhei quatro pessoas alcançarem o corpo de arco-íris na hora da morte; elas não moravam em monastérios, mas viviam com suas famílias. Quando tinha vinte e dois anos, presenciei um homem alcançar o corpo de arco-íris, e a maioria das pessoas sequer sabia que ele fazia prática espiritual. Não há necessidade alguma de qualquer exibição externa para se obter êxito no caminho espiritual. Não é o corpo que alteramos para nos tornarmos iluminados — é a mente.

Você pode adotar o estilo de vida de um eremita, abandonar sua preocupação com comida, roupa, riqueza, amigos, família, lar e mudar-se para uma montanha, dedicando-se inteiramente à meditação. Esse é um modo de praticar perfeitamente válido, Dentro do Vajrayana, porém, há um outro modo. Sua vida externa continua com a forma habitual. Você não deixa sua casa, não renuncia a nada, mas nunca se aparta da virtude, nunca se separa do dharma, da intenção de trazer benefícios ou do estado desperto.

Tilopa disse a seu aluno Naropa, "Você é aprisionado não pelas aparências, mas por seu apego às aparências; portanto, corte esse apego, Naropa". Nós nos conservamos presos ao samsara não simplesmente porque temos bens materiais, um posição elevada ou amigos, mas porque nos apegamos a essas coisas.

A prática tem que acontecer de forma consistente, bem ali onde a mente está ativa, bem ali junto de cada experiência de desejo, raiva ou alegria — a cada momento. Então sua meditação e o seu trabalho se unem — é uma espécie de casamento. Se você deseja resultados rápidos, não é suficiente meditar apenas uma ou duas horas por dia. Nunca pense, "Agora vou trabalhar; mais tarde vou meditar". Quem é que sabe se a sua vida vai durar tanto? É difícil adiarmos a visita do senhor da morte. Quando ele aparecer, não lhe dará ouvidos se você disser, "Sinto muito, mas tenho estado muito ocupado e agora preciso meditar. Dê-me só uma semana, um mês ou três anos".

Através de prática com devoção, desenvolvemos a capacidade de transformar condições negativas em condições que nos sustentem. Chamamos a isso "trazer as adversidades para o caminho", ou seja, não ser bloqueado, desviado ou avassalado por uma determinada coisa, mas ver nela uma oportunidade para prática.

Então, todo o mundo fenomênico serve como um professor, ajudando-nos a desenvolver nossas habilidades de lidar com a vida. Podemos tornar tudo o que acontece conosco parte do caminho. Provações se transformam em oportunidade para prática porque nos forçam a cultivar paciência. Aprendemos a aceitar adversidades com alegria porque compreendemos que, quando sofremos, purificamos carma. Uma única dor de cabeça pode purificar o que seriam centenas de anos de sofrimento em um dos remos dos infernos. Isso não quer dizer que rejeitemos a felicidade; antes, regozijamo-nos com ela e dedicamos nosso mérito aos outros seres, rezando para que a felicidade deles seja duradoura.

Às vezes, quando começam a fazer meditação, algumas pessoas me dizem que são um caso perdido, que é impossível controlar seus pensamentos. Eu lhes asseguro que isso é um sinal de melhora. A mente delas sempre foi revolta; acontece apenas que, finalmente, elas estão notando isso. No passado, elas deixavam sua mente vagar livremente, seguindo as correntes de pensamento que surgissem, fossem quais fossem. Agora, porém, que têm maior percepção do que ocorre na mente, elas podem começar a mudar.

Você pode se queixar de que meditação não é fácil. Mas lembre-se de que você está conduzindo sua mente como um cavalo selvagem para dentro do curral do estado desperto. Você terá certeza de que sua prática está dando resultado se não estiver mais tão dominado por suas emoções e confusão, se trouxer para todas as suas ações, onde quer que esteja, uma qualidade de abertura, de relaxamento e uma intenção de compaixão, permanecendo consciente dos movimentos da mente e da natureza de todas as coisas que acontecem à sua volta.

Certa vez, um aluno que estava tendo dificuldade com meditação veio à presença do Buda.

Quando o Buda perguntou qual era a profissão dele, o homem respondeu que era músico e tocava alaúde. O Buda perguntou: "Quando você está pondo as cordas no seu alaúde, você as estica com bastante força ou as deixa bem soltas?"

O homem respondeu, "Nenhuma das duas coisas. Se eu as esticar demais ou deixá-las soltas demais, o tom sairá errado. Tenho que encontrar um ponto de equilíbrio". Com isso, ele havia respondido sua própria pergunta sobre meditação. Quer seja em nossa prática ou em nosso trabalho, precisamos manter um equilíbrio — não ficaremos tensos e apegados demais, nem soltos e desleixados demais.

Conta-se a história de um ótimo lama que tinha um aluno bastante obtuso que fazia perguntas óbvias, mas nunca entendia direito as respostas. Um dia, o professor, com grande frustração, olhou para ele e disse, "Mas você não tem chifres" — querendo dizer, "Você não é uma vaca, você deveria entender o que eu estou dizendo".

O aluno, continuando a não entender, pensou que o professor quisesse dizer que ele deveria ter chifres. Levando isso a sério, entrou em retiro, visualizando, a cada dia, que possuía chifres. Três anos mais tarde, o professor perguntou a um assistente, "O que foi feito daquele meu aluno que não era tão brilhante?" Quando informado de que o aluno estava em retiro meditando, o lama exclamou, "Mas como ele pode estar meditando? Ele não sabe nada. Tragam-no aqui"

Um mensageiro foi então enviado para buscar o aluno. Ao chegar na caverna do retiro, ele espiou pela pequena porta e viu o aluno sentado lá dentro, com um belo par de chifres. O mensageiro chamou, "O seu professor quer vê-lo; venha, por favor".

O aluno se levantou para sair, mas não conseguiu fazer com que aqueles chifres enormes passassem pela pequena porta. Ele disse ao mensageiro, "Por favor, apresente minhas desculpas ao meu professor eu gostaria de ir até ele, mas não consigo sair da caverna por causa dos meus chifres".

O professor, ao ouvir o fato, disse, "Isso é maravilhoso! Diga a ele, agora, para meditar que não tem chifres"

Pela força da sua concentração, o aluno removeu os chifres em sete dias e voltou á presença do lama. Depois de receber instruções adequadas sobre meditação, ele muito rapidamente alcançou realização.

As pessoas dão muitos motivos para não fazerem prática espiritual. Algumas dizem que não acreditam nos ensinamentos; outras sentem que não estão prontas ou que não têm a capacidade necessária. Isso, porém, é um erro. Quer acreditemos ou não no samsara, é aqui que estamos. Quer acreditemos ou não no carma, nós o estamos criando. Quer acreditemos ou não nos venenos da mente, eles estão ai. Que vantagem há em não se acreditar em remédio? Quer estejamos ou não prontos para fazer prática, a morte e as doenças não vão nos esperar. Por que não nos preparar? Por que não desenvolver a capacidade de ajudar a nós mesmos e aos outros? Estamos prontos para beber veneno, mas não para tomar remédio.

Não meditar depois de termos recebido os ensinamentos é como comprarmos todas as nossas comidas preferidas, arrumá-las bem na cozinha, e então não comer. Vamos morrer de fome. Meditar é como comer: nossa despensa está cheia e nós partilhamos daquilo que coletamos.

Em vez de dizer, "Não tenho tempo hoje, amanhã vou meditar. Não tenho tempo nesta semana, vou fazer a semana que vem. Este ano tem sido muito corrido, vou deixar para o próximo ano", precisamos sentir uma necessidade imediata de fazer prática —agora mesmo, não apenas hoje, não apenas nesta hora, mas neste exato momento.

Agora, rezo para que a verdadeira natureza de todos os seres, sem exceção, seja revelada, para que cada um de nós veja com clareza a sua verdade inerente e fique livre dos grilhões do sofrimento e das dificuldades impostas pelas limitações da mente.

Vamos dedicar a esse fim todas as virtudes destes ensinamentos, das mudanças que vamos viver por termos sido expostos a estas verdades, e das mudanças que as pessoas á nossa volta vão atravessar por nos verem encarnar o que aprendemos.

Possam essas virtudes se irradiar em todas as direções, em ondas de benefícios.




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