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Sutra dos Doze Elos e do Caminho do Meio

Ensinamentos do Mestre Thich Nhat Hanh
Retiro de 21 dias em Plum Village
de 2 a 21 de junho, 2000

Ensinamentos transmitidos por
Annabel Laity em 14 junho, 2000
Transcrição e tradução de Tenzin Namdrol


Querida Sangha,

Vamos começar esta manhã com uma meditação guiada. Não será preciso manter os olhos fechados para esta meditação, na verdade, olhem para as mãos ou para a pele em qualquer lugar do corpo ou se quiserem para a pele da pessoa que está ao se lado.

Inspirando tenho consciência da minha inspiração, expirando tenho consciência apenas da minha expiração, inspirando, expirando.

Pausa

Inspirando, estou consciente de meus antepassados humanos, pais, avós, bisavós etc. até ao primeiro antepassado humano que se pôs de pé. Expirando, tenho consciência dos meus antepassados presentes na minha pele, expirando, sorrio aos meus antepassados presentes na minha pele.

Pausa

Inspirado tenho consciência dos antepassados pertencentes às espécies animais na mina pele, expirando sorrio às espécies animais que também são meus antepassados e contribuíram para esta pele que é hoje a minha. Pele de meus antepassados animais, sorrio.

Pausa

Inspirando estou consciente de antepassados botânicos na minha pele, as árvores, as ervas, outras plantas; expirando sorrio aos antepassados botânicos na minha pele.

Pausa

Inspirando, tenho consciência de meus antepassados do reino mineral, a terra e as pedras, os minerais provenientes da água, expirando, sorrio aos meus antepassados minerais que se encontram na minha pele.

Pausa

Inspirando, tenho consciência de meus antepassados espirituais na minha pele, a pele na sola dos pés sobre os quais aprendi a andar, como as solas dos pés do Buda, a pele nos meus dedos que aprendi a tocar com plena atenção como ensinaram meus antepassados espirituais. Expirando, sorrio aos meus antepassados espirituais na minha pele porque sei que cada célula da minha pele é portadora da minha consciência.

Pausa

Inspirando, sei que a minha pele não é a minha pele, ela é feita de tudo de que não sou eu. Expirando, sorrio á pele da minha Sangha, a pele da minha pele. Sorrindo à pele da Sangha.

Pausa

Queridos Amigos,

Na semana passada, estudamos o sutra dirigido a Kaccayana, a parte do sutra que diz, "isto é assim porque aquilo é assim" que é uma demonstração dos Doze Elos, nidanas. O significado raiz da palavra nidana é "atar" e quer dizer "fundamento, base" o que vem a ser "causa," por vezes traduzido para o inglês pela palavra "elo", como numa corrente. Foi a forma que o Buda encontrou para nos ajudar a contemplar este ensinamento, "isto é porque aquilo é; isto não é, porque aquilo não é," de uma forma mais concreta. Contudo aprendemos ao recitar o Prajnaparamitaridayasutra que não devemos nos enredar na verdade absoluta dos Doze Elos. Assim, hoje tentaremos contemplar os Doze Elos sem nos enredarmos num ponto de vista.

A palavra avidya, em sânscrito, quer dizer, "difuso, invisível, desconhecido," e é traduzida em inglês por ignorância, desconhecimento. Sabemos pouco sobre a nossa pele. Não temos uma noção exata do que seja, mas se pararmos para observa-la profundamente podemos remover a ignorância que se encontra na nossa pele. Existe sempre muita ignorância associada à nossa pele, ou podemos dizer, na nossa pele. É claro que esta ignorância também está em outras partes do corpo, na nossa mente, no que toca a nossa mente, ignorância no tocante às partes do nosso corpo. Existe ignorância no tocante aos corpos da nossa Sangha, outros membros da nossa Sangha e mentes de outros membros da nossa Sangha. É o que quer dizer avidya.

Depois de avidya, temos a palavra pacchaya, que sabemos ser um verbo em sânscrito. Creio que pacchaya neste contexto é um adjetivo, avidya pacchaya é o adjetivo plural que concorda com samkhara. Depois aprendemos que o gerúndio é pratytiasamutpada, a palavra que vimos ontem e que quer dizer originação dependente ou surgindo em simultaneidade. Esta palavra provém da raiz sânscrita pratyaya, a seguir temos a palavra pratytiasamutpada, também em sânscrito. Ut quer dizer surgindo e pada quer dizer surgir, sam quer dizer junto e pratytia, repousar em algo pré-existente. Aqui temos o verbo ir e pratya quer dizer retroceder. Assim, esta palavra pratytia (sânscrito) e aqui a palavra pali (ininteligível) que quer dizer co-surgimento dependente. A palavra sânscrito que temos aqui e que é um adjetivo quer dizer na verdade, "o que depende da ignorância são formações." Formações repousam na ignorância.

A nossa pele é uma formação, o nosso corpo é uma formação e sabemos que existem muitas formações da mente também. O nosso corpo é fruto de um tipo de ignorância e vem do reino mineral, de espécies de animais, dos nossos antepassados humanos, assim como dos nossos antepassados espirituais. O nosso corpo provém de todos estes elementos, mas desconhecemos, somos perfeitamente ignorantes, mas ele surge assim, sem que a sabedoria nem a clareza da mente participem da formação. Dizemos que estas formações são dependentes, porque repousam na ignorância.

Se com a prática eliminarmos a ignorância das formações elas se transformarão completamente. Formações se traduz por samkhara, e samkhara quer dizer o que se agregou, composto. Quando meditamos sobre a nossa pele eliminamos a ignorância da formação, a nossa pele já não é agregada da mesma maneira, não é a mesma formação. Assim podemos nos libertar de um ciclo porque a ignorância sobre o que sejam as formações torna-se um ciclo repetitivo que nos escraviza. Mas ao retirarmos certos elementos nos libertamos desta escravidão.

Samkhara, pacchaya, vijnyana, são palavras do Buda. Não sei se ele enunciou estas mesmas palavras porque falava maghadi e não pali, mas o que enunciou se assemelhava a estas palavras porque as línguas são parecidas. Isto quer dizer que a consciência depende da formação. Dizemos que a formação depende da ignorância e depois dizemos que a consciência depende da formação. No sutra mais remoto, no primeiro em que o Buda aludiu aos Doze Elos, não se faz alusão à ignorância, não se faz alusão às formações, samkhara. O Buda primeiro alude à consciência ou morte e velhice e faz o caminho inverso de apenas dez elos. Não é necessário que sejam doze. Assim a consciência depende de samkhara, o que quer dizer que se eliminarmos as formações não haverá mais consciência.

Se pensarmos que as formações de que são compostas a mente, sensações, percepções e todos os demais pensamentos positivos ou negativos, emoções que nos invadem e as formações corporais, se eliminarmos tudo isto a consciência não teria onde repousar. Certas pessoas quando ouvem falar na consciência de armazenamento tendem a pensar de que é base de tudo, como uma causa primordial, mas na verdade o Buda nos ensina que a consciência repousa nas formações. Se perguntarmos, sobre o quê repousam as formações, aprendemos que repousam muitas vezes na consciência e que eliminando a consciência não haverá mais formações. Como então?

Nagarjuna pediu-nos que utilizássemos a visão profunda para averiguar se as causas vêm antes do resultado e cita o exemplo da galinha e do ovo. Qual deles surgirá primeiro? Constatamos então que a causa não vem antes do resultado mas são simultâneos. Assim, quando nos referimos aos Doze Elos, um está interligado ao anterior, e o anterior está interligado ao que se segue mas esta visão não é satisfatória porque nos leva a crer que a consciência e as formações estão interligadas quando na verdade a ignorância também está interligada a elas e veremos então que cada um dos doze nidanas está interligado a cada um dos demais onze nidanas e assim são muitos os elos. Partindo de um elo temos outros onze interligados da mesma forma. Não estão interligados numa sucessão, nem tampouco em círculo. Assim, quando disse que as formações mentais ou as formações corporais surgem, passamos a estar conscientes do surgimento e uma vez que temos consciência do surgimento das formações mentais e corporais, a ignorância é eliminada..

A consciência também repousa na ignorância, que repousa nas formações como vimos. Em inglês falamos da mente inconsciente ou da mente subconsciente, o que quer dizer algo que ignoramos, desconhecemos o seu conteúdo, desconhecemos as sementes que vamos semeando na nossa consciência, desconhecemos o que está transformando a nossa consciência, o que está surgindo na nossa consciência, não temos qualquer noção. Assim, pela própria definição, a consciência é ignorante. Mas ao eliminarmos da consciência a ignorância, especialmente nos níveis mais profundos de consciência, não será mais denominada consciência, mas sim, compreensão profunda ou visão profunda; deixou de ser consciência. Por isso, na psicologia budista subseqüente diz-se que a consciência pode ser transformada em sabedoria, na sabedoria do grande espelho que tudo reflete, como cantamos todos os dias quando cantamos que a água transparente reflete o que é real, o que é verdadeiro e todos os dias somos capazes de transformar a consciência no espelho da sabedoria no momento em que suspendemos qualquer atividade, nem que seja por uns segundos.

A consciência repousa no samkhara. Namarupa repousa na consciência. Namarupa quer dizer literalmente nome e forma. Nama refere-se à psicologia e rupa refere-se à formação fisiológica. Forma (rupa) é a palavra usada porque o nosso corpo pode ser visto com os nossos olhos, podemos ver cor e formato; o corpo no budismo é muitas vezes chamado de forma. É a manifestação da nossa pessoa que tem cor e forma, em oposição a outras manifestações que não têm cor nem forma, como sensações, percepções, formações mentais e consciência. Assim, forma é o corpo e nome são sensações, percepções, formações mentais e consciência. Forma e nome se agregam, surgem da consciência que repousa na ignorância. Com sorte podem vivenciar a união de nama e de rupa na meditação.

Acontece perguntarem se existe uma meditação em que não se tenha chão, não se tenha corpo, mas apenas consciência e se este é o estado a ser alcançado na prática do cotidiano. Na verdade, a meditação precisa de chão, ela é sempre a união do corpo e da mente. Meditamos quando a mente está verdadeiramente unida ao corpo, diz o Buda claramente num dos sutras e no Madhyamanikaya que a consciência está em cada célula do nosso corpo assim, neste sentido, a meditação tem chão e a consciência repousa no nosso corpo.

Os seis ayatanas repousam em namarupa. Quer dizer que os seis sentidos repousam juntos no corpo e na mente. Se não tivéssemos corpo e mente não teríamos sentidos porque nossos olhos repousam na forma tanto quanto na mente e o mesmo acontece com as nossas orelhas. No Prajnaparamita, quando recitamos, não existe olho, nem orelha, nem nariz e alguém se aproxima e dá um forte puxão no nosso nariz teremos de compreender verdadeiramente o que significa não há nariz.

Os sentidos repousam no corpo, mas também na mente. Sem a mente não teríamos o sentido de flores. Seis ayatanas, significam aquilo que vê e o que é visto, aquilo que ouve e o que é ouvido, aquilo que cheira e o que é cheirado, aquilo que saboreia e o que é saboreado, aquilo que toca e o que é tocado e aquilo que pensa e o que é pensado. Estas são seis ayatanas, as seis entradas; assim nossos olhos se assemelham a entradas e a árvore que vejo também é entrada. Este é o motivo porque no budismo se fala tanto em preservar os sentidos, preservar os olhos, as orelhas e porque devemos evitar certas entradas. O Buda dá como exemplo, e Sariputra também, de uma cidadela rodeada de uma muralha com sentinelas em cada portão que não admitem o ingresso de estranhos, selecionam quem pode entrar e excluem os forasteiros que possam invadir e pilhar a cidade. Permitem a entrada de ratos, camundongos e gatos porque sabem que não vão invadir a cidade.

Assim, as seis entradas existem porque corpo e mente existem. Porque estas seis entradas existem, existe contacto, sparsha. Tendo olhos, orelhas, nariz, língua, corpo e mente e se surgem cores e sons, são também formações. Formas, cores, sons e formações. Olhos, orelhas e nariz são formações. Se existem mas não existe contacto, não haverá a consciência da forma, das cores ou do som. Os olhos precisam estar em correspondência com as formas e as cores e as orelhas precisam estar em correspondência com os sons e com as formações mentais que acontecem todo o tempo. Nossos órgãos dos sentidos estão sempre em correspondência com todas as coisas.

Associada intimamente à formação mental, contacto, sparsha, é formação mental manaskara. Manaskara quer dizer prestar atenção, atenção mental. Sempre que aludimos a manaskara dizemos que a atenção mental é prestada de duas maneiras: adequada e inadequada. Sempre que haja contacto entre os olhos e a forma, ou as orelhas e o som haverá, no mesmo instante, atenção mental, quer dizer, a mente se ativará neste sentido. Quem pratica sabe que a mente é ativada quando há contacto de forma adequada ou inadequada. A forma inadequada cria obstáculo para a nossa alegria e tranqüilidade e a adequada alimenta a nossa alegria e tranqüilidade.

Assim, quando a prática consta de andar do refeitório para a cozinha ou do refeitório para o quarto ou sala de meditação, a cada segundo do caminho prestamos atenção a algo. A mente pode estar atenta ao pensamento, ou fazendo considerações sobre o futuro ou o passado que não conduzem à alegria e tranqüilidade; chamaríamos então de atenção inadequada. Mas se a mente está atenta à sensação da terra sob os pés ou à respiração, chamaríamos atenção adequada. Porque? Porque estamos disponíveis para a beleza da terra, as orelhas atentas ao som do canto dos passarinhos e os olhos ao verde da vegetação e chamaríamos atenção adequada. A atenção é dirigida primeiramente à respiração e a cada passo, mas dado que a atenção à respiração e a cada passo re-uniu corpo e mente descortinamos um universo maravilhoso e o passo seguinte se dá no que chamamos de Reino de Deus ou Terra Pura.

O contacto, acompanhado da atenção mental é parte importante da prática. Repousando no contacto estão as sensações. Quando a língua saboreia a doçura do suco de laranja surge uma sensação agradável devido ao contacto que pode nos levar a desejar agora o resto da laranja o que não nos proporcionará a mesma sensação agradável enquanto comemos o resto da laranja. Pode também acontecer que a sensação agradável possa ser um sino para a plena atenção e nos traga de volta para o momento presente para que possamos também ter a mesma sensação agradável com o resto da laranja. É claro que o contacto também pode nos transmitir sensações desagradáveis que não são sempre propícias à prática. Assim, o praticante alimenta as sensações agradáveis na prática e aproveita as desagradáveis para adquirir uma visão profunda, tornar-se mais compassivo e mais presente.

Há quem interprete a palavra vedana, que quer dizer sensações, como sensações desagradáveis dizendo que todas as sensações são desagradáveis porque se agradar pode gerar apego, concluindo que são todas prejudiciais e precisam ser superadas na prática. Isto acontece por não terem compreendido a palavra vedana, os ensinamentos ou a prática. Porque a palavra vedana significa experiência. Nossas sensações são um tipo de experiência. Se eliminarmos a ignorância das sensações elas podem ser muito úteis à prática.

A avidez repousa na sensação. Avidez é trishna. Trishna quer dizer sede e deve estar associada à palavra inglesa, "thirst." Tem este significado porque temos sentidos que têm desejo sensual, o desejo está associado aos sentidos e repousa na sensação; nosso desejo surge das sensações. Da sensação agradável quando nossos sentidos estão em contacto com o objeto de nossos desejos, surge mais desejo pelo que nos agrada e das sensações desagradáveis desejamos uma redução ou uma separação do objeto indesejável; assim é a sensação.

Num dos sutras o Buda diz o seguinte, "se quando for perguntado, ‘eu sou as sensações, serão as sensações eu?’ e o discípulo responder, ‘eu sou as sensações, as sensações são minhas,’ ainda não terá entendido a verdade sobre os Doze Elos, onde fica claro que as sensações surgem devido a ‘ causas e condições tais como contacto, os seis sentidos, o corpo, a mente, a ignorância, quanto a origem das sensações. Não é preciso que haja um "eu" que seja as sensações, elas não pertencem a uma pessoa, necessitam apenas das causas e condições a que estamos aludindo, e estarão presentes. Assim, este é o ensinamento de que, "eu não sou as sensações, as sensações não são eu."

Porque existem sensações, existe avidez. Se eliminarmos a ignorância da avidez lembrando que tudo está interligado e assim a avidez e a ignorância estão interligadas, se eliminarmos a ignorância da sensação, talvez possamos praticar um pouco e então enxergar que a sensação se converte em compaixão, em bondade amorosa, em alegria, felicidade e a felicidade da nossa Sangha e em equanimidade. Este é o amor imparcial, amor não condicionado. Se eliminarmos a ignorância da avidez ou do desejo, então se converte em ausência de desejo, uma formação mental positiva. Neste caso, o desejo passa a desempenhar o papel de um composto fertilizante, já não está associado à ignorância e é aqui que a flor do não desejo pode desabrochar. Vivenciamos várias vezes ao dia momentos de ausência de desejo e o Buda nos ensina na Anapanasatisutra que podemos alegrar a mente com formações mentais positivas, como a ausência de desejo: inspirando tenho consciência da ausência de desejo, expirando tenho consciência da ausência de desejo. A avidez está associada a alguma coisa e conduz ao vir-a-ser; o vir-a-ser conduz ao nascimento e o nascimento conduz à velhice e à morte e a todo o sofrimento associado com a velhice, a doença e a morte.

Quando aludimos à avidez nos referimos aos cinco agregados da avidez. Como sabem, os cinco agregados são: forma, sensações, percepções, formações mentais e consciência. O Buda denomina upadana skandas e no sutra observamos que sempre que se faz alusão a skandas trata-se de skanda da avidez. Quer dizer que o eu separado necessita se identificar com algo, então se identifica com o corpo, ou com as sensações, ou com as percepções, ou com as formações mentais ou com a consciência, ainda que os cinco skandas também possam ser isentos do estado de avidez. Por exemplo, se uma forma (corpo) que não é percebida como eu ou minha, pode ter sensações que não são percebidas como eu ou minhas. Isto não quer dizer que deixaremos de dar atenção ao corpo e às sensações e de percebe-los como eu ou minhas. Quando transmitimos estes ensinamentos há quem tema deixar de cuidar do corpo ou das sensações. Na verdade somos mais responsáveis quando não nos percebemos como eu ou meu/minha porque não mais nos ocorre "este é o meu corpo e faço com ele o que quero," ou "estas são as minhas sensações e faço com elas o que quero." Admitimos que não nos pertence e somos então mais cuidadosos.

Tratando-se de vir-a-ser, a condição indispensável antes que surja a morte, provavelmente significa o vir a ser dos sentidos separados do corpo, sensações separadas, percepções separadas, etc. e uma vez que temos tempo de vir-a-ser significa alcançamos uma etapa em que os reconhecemos como o meu corpo, as minhas sensações, as minhas percepções. Pode chegar o momento, por exemplo quando a raiva inicia o processo de vir a ser e está sendo regada de muitas formas, interna e externamente, tudo contribuindo para o vir a ser da raiva até que, em determinado momento, depois de ter sido bem regada, ela nasce. Vemos então claramente como o nascimento depende do vir-a-ser. Mais tarde, a raiva envelhece, perde a força e morre. Então pensamos que já não temos raiva. Assim, estes são os últimos elos. Na verdade, pode acontecer que a morte da sua raiva não traga grande sofrimento, mas quando constatamos a morte de fenômenos a que estamos apegados ou que somos objeto do apego de outros, então passamos por grande sofrimento. Assim, o Buda associa o sofrimento à velhice e à morte. Quando constatamos que não existe um eu que morre, nem um eu que nasce, ou que não existe um tu que morre ou um tu que nasce, teremos afastado o sofrimento.

O Buda transmitiu estes ensinamentos sobre os elos não para nos aprisionarmos no conceito de um "eu" vulnerável a todas estas etapas, mas para podermos constatar como tudo surge a partir de condições anteriores, da interdependência de todos os fenômenos, o que nos permitirá de certo modo eliminar a ignorância e então, os demais elos se auto-destroem. Eliminada a ignorância toda a formação se transforma, altera-se o estado de consciência e estamos liberados do ser um ciclo de servidão.

O cânone chinês contém um sutra, o Samyugta Agamma No. 296 que trata deste ensinamento de originação interdependente e causação. Neste sutra aprendemos que os Doze Elos surgem, o que é uma verdade eterna, tenha ou não, surgido um Buda no mundo. Pode nos parecer que os ensinamentos do Buda existem porque o Buda nasceu, Budas estão nascendo e Budas estarão nascendo. Mas o próprio Buda nos aconselha a não sermos escravos dos ensinamentos porque cada um de nós, ao desenvolver uma visão profunda, tem o poder de descobri-los por si mesmo. Ele insiste que os ensinamentos precisam ser redescobertos por cada um de nós, que para que a nossa confiança na sua autenticidade seja inabalável, requerem uma experiência direta. Não devemos confiar no que nos é dito apenas por devoção, amor e apego à pessoa que nos transmite. Precisamos ir em frente, praticar, colhermos nós mesmos os frutos da prática de onde surge a verdadeira fé. Assim, o Buda não nos quer dependentes do Buda no que toque os ensinamentos da originação interdependente mas que recorramos ao nosso próprio estado desperto para comprova-los e integra-los no nosso cotidiano.

É verdade que é a nossa boa fortuna que um Buda tenha vindo ao mundo para manifestar estes ensinamentos porque é o Buda, ou Aquele que Despertou, e os que realizaram plenamente estes ensinamentos são os que podem mais perfeitamente transmiti-los. Existe um sutra, transmitido ao monge Anuruda em resposta à sua pergunta, "o Buda existe depois do Buda ter morrido? Senhor Buda, o que acontecerá quando passados os seus 80 anos o senhor vir a morrer? O Senhor continuará a existir ou deixará de existir? Ou o Senhor continuará a existir e a não existir, ou o senhor nem continuará a existir nem deixará de existir?" Observem aqui a lógica da Índia! Esta pergunta era formulada no tempo do Buda por certos grupos de religiosos que procuravam uma resposta filosófica para o sentido da vida.

Muitos mestres faziam estas mesmas perguntas e cada um favorecia uma destas respostas. Assim, admitia-se que o grupo ligado ao Buda também as aceitaria. Anuruda não tinha certeza da resposta porque quando refletia no assunto não se lembrava de qualquer alusão do Buda sobre o tema já que ele nunca falou sobre o que aconteceria ao Buda depois da sua morte. Assim, Anuruda tinha dúvidas, desconhecia a resposta correta e o que levava os demais a crer que era ignorante, inconseqüente, pouco inteligente ou recém ordenado. (Creio que, na verdade, tinha sido recentemente ordenado).

Assim, aproximou-se do Buda, disse-lhe que lhe tinham feito a pergunta e que gostaria de saber a resposta para satisfazer a Sangha do Buda. "Por favor, Buda, ajude-me!" E o Buda respondeu: "Anuruda, você encontra o Tathagata, o Buda, na forma? Você identifica o Tathagata com um certo corpo?" Anuruda respondeu que não. "Você identifica o Tathagata com as sensações, com as percepções, com as formações mentais e com a consciência?" Anuruda respondeu que não. "Digamos que não exista um corpo, você seria capaz de encontrar o Tathagata? E se não existissem sensações, você encontraria o Tathagata? Sem percepções, formações mentais e consciência, você encontraria o Tathagata?" Anuruda respondeu que não. Então o Buda disse, "Anuruda, se você não pode me encontrar quando estou vivo, se você não pode encontrar o Tathagata em vida, como você vai encontrar o Tathagata depois de morto, ou será que vai encontrar o Tathagata depois?" Anuruda disse, "Não, não posso." Então o Buda disse, "É verdade, Anuruda, eu apenas tratei de dois assuntos: o sofrimento e a cessação do sofrimento." É verdade, que creio ser difícil encontrar o Tathagata, é difícil identificar um Tathagata ou um Buda, agora, na sua forma física enquanto ele se manifesta como um humano ou mais tarde quando a sua forma física não mais se manifestar como um ser humano e o vemos assim, como um indivíduo; não é possível identifica-lo

O Buda teve esta profunda realização: "Eu não sou forma, não sou sensações, não sou percepções ou formações mentais," e teve esta profunda realização, é impossível restringi-lo à manifestação e uma vez que ele tenha morrido também é impossível restringi-lo de qualquer forma

Creio que no sutra do Significado Supremo que estudamos recentemente diz-se no sétimo verso que, "quem neste mundo poderia elaborar a idéia de um praticante tão desenvolvido que não se apegue a um ponto de vista..." Contudo, não basta fazer a pergunta ao Tathagata, precisamos perguntar à pessoa que amamos, "posso encontrar você na forma, posso encontra você nas sensações, posso encontrar você nas percepções, posso encontrar você fora da forma, fora das sensações, fora das percepções?" Podemos perguntar à pessoa amada tanto quanto ao Buda e podemos nos perguntar assim como perguntar a respeito do Buda.

Quero também alterar o sexto verso no sutra do Significado Supremo, "aquele que não aponta," ou algo assim, "nem para isto nem para aquilo," não se deve ler, "apontando nem para isto nem para aquilo," deve-se ler, "não apontar para qualquer dos dois extremos," querendo dizer, "ser ou não ser." Ele não busca ser ou não ser nem neste mundo nem no próximo," em vez de, "ele não busca nem isto nem aquilo."

O sutra alude aos dois extremos e nós nos enredamos na noção, "eu sou, tu és, ele é", ou "eu não sou, tu não es, ele não é" e os ensinamentos sobre a causalidade da originação interdependente têm o propósito de não nos deixar enredar em "é ou não é" dependendo das formações. Dependendo das formações, a consciência; dependendo da consciência, o corpo e a forma, dependendo do corpo e forma, os seis sentidos, dependendo dos seis sentidos, o contacto, dependendo do contacto, as sensações, dependendo das sensações, a sede; dependendo da sede, a avidez, dependendo da avidez, o vir a ser; dependendo do vir a ser, o nascimento; dependendo do nascimento, a velhice e a morte todos associados com a dor e a tristeza.

O Buda diz que este é o Caminho do Meio, o Buda ensina o Dharma na permanência do Caminho do Meio e o primeiro ensinamento que deu no Parque dos Gamos, em que pôs a girar a roda to Dharma, chamou de Ensinamento sobre o Caminho do Meio. O Buda disse aos monges, " ensinarei a vocês, monges, o Caminho do Meio." O Caminho do Meio é não nos enredarmos na vida mundana associada aos desejos sensuais por um lado, que é um extremo; também não é partir para o outro extremo, de austeridades e auto mortificação; é permanecer no Caminho do Meio. Permanecer no Caminho do Meio é não nos enredarmos em nenhum dos extremos: o extremo de ser e o extremo de não ser. Eles estão interligados porque quem pratica o que em pali seria chamado de vida da aldeia, enredados e entregues aos desejos sensuais, estão aprisionados no extremo de ser porque crêem que o que desejam é uma entidade separada; cremos também que somos entidades separadas, por isso se diz que estamos enredados.

O outro extremo é a auto mortificação na tentativa de destruir o corpo, destruir as sensações, tentar destruir as percepções porque cremos serem as bases do sofrimento e queremos nos libertar delas, queremos que deixem de existir; a auto-mortificação é estarmos enredados no extremo de não ser, esta é a interligação. O Buda nos ensina o Caminho do Meio, da paz e da alegria, da compaixão por nós mesmos e pelos outros. Nos reverencia mos com gratidão perante o Buda que nos ensinou o Dharma que é a permanência no Caminho do Meio.




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