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PRÁTICA DA NOITE Texto extraído do livro: "O Ciclo do Dia e da Noite" de Namkhaï Norbu Rinpoche Traduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye O yoga da noite consiste em duas práticas. Prática da tarde, que se executa no momento de adormecer, e da manhã no instante do despertar. Quando dormimos, os sentidos estão em repouso. Praticaremos antes de adormecer por que os sentidos estão ainda todos presentes. Os relaxamos em um estado de contemplação. Não os permitimos entrar em um estado condicionado; deixamos as coisas tais quais são sem nos sentir coagidos. O indivíduo deve também integrar sua prática de concentração ao sono. Que quer dizer "meditação concentrada", dhyana? Quando nos fixamos de maneira precisa e com uma grande concentração sobre um objeto antes de lentamente relaxar sua atenção, praticamos samatha ou shine, "acalmar a mente". Quando trabalhamos de preferência com os movimentos dos pensamentos, isso é que chamamos vipassana ou lhagtong. Dhyana designa essa espécie de meditação. Para esta prática da noite, um mínimo de atenção e vigília da mente se mostra necessária. Pois é preciso integrar esta concentração ao sono e adormecer em um estado de concentração. Como procedemos? Bem antes de adormecer, visualizamos um A branco [ ] entre nossas sobrancelhas, ou uma pequena pérola esférica (tiglé) parecida com um arco-iris de luzes das cinco cores. Visualizamos bem claramente: o A branco [ ] ou a esferinha não são maiores que um grão de ervilha. Na upadesha dzogchen, visualizamos no centro do coração de preferência à entre as sobrancelhas; porque essa última visualização cria uma impressão de presença excessiva, susceptível de impedir o adormecimento. De nossa parte, entretanto, adotaremos a visualização entra as sombrancelhas, porque ela permite controlar automaticamente todas as nossas energias vitais ou "prana" (rlung). Se parecer difícil visualizar o A [ ] nesse lugar, procederemos a alguns arranjos. O praticante deve proceder com discernimento porque é o individuo que comanda a prática e não ao contrário. É inútil realizar esta visualização se ela nos impede o sono. Ela não deve ser muito brilhante, o que nos impediria de adormecer facilmente. Podemos ainda, no lugar do A [ ], visualizar um bindu (tigle), uma pérola de luz irisada análoga as penas da cauda do pavão. Se nós pudermos visualizar esse bindu pentacolorido, isso será de melhor efeito sobre o controle dos elementos. Começaremos, pois por fixar nossa atenção sobre o objeto da meditação, depois relaxaremos ligeiramente nossa atenção; sem esse relaxar não conseguiremos dormir. Quando nós adormecemos em um estado onde nossos seis agregados sensoriais se encontram relaxados e alertas, nossa presença não é manchada pela fuligem dos pensamentos discursivos e a clara luz natural se manifesta. Quando nos fixamos ou nos concentramos num objeto de meditação único, não há lugar para pensamentos estranhos. Mas quando nos relaxamos um pouco, é fácil de surgir pensamentos, como ao individuo de se deixar condicionar por eles. Nós não deveríamos tentar bloqueá-los, mas se nos falta presença, eles nos distrairão. Seremos então prisioneiros desses pensamentos e o sono terá que esperar. Mas se permanecemos na presença de um estado relaxado, o sono virá facilmente. Em outras palavras, nós teremos integrado essa pura presença ao sono, isso que leva o nome de "clara luz natural". Nos encontraremos então em presença da real condição da existência, o dharmata, livre da distração dos pensamentos discursivos. Entretanto, se podemos fazer a visualização, mas não conseguimos dormir, como proceder então? Quando vamos nos deitar, temos ainda pensamentos porque a mente continua a funcionar. Também, quando aparece um pensamento, nesse instante de reconhecimento muito preciso, nos encontramos presentes com uma atenção clara a tudo que surge. Continuamos nessa presença clara e límpida, apesar da intrusão de outros pensamentos. Mas não vemos nada neles que poderíamos dizer que se trata de calma, ou então do movimento dos pensamentos. Esse procedimento não impedirá o individuo de dormir. Mas se saturando a mente de pensamentos e se deixando prender à todas as espécies de coisas por distração, seremos incapazes de adormecer. Todavia, o estado de presença não afetará nosso sono. Nos encontramos pois num estado de presença alerta e vibrante. Estando então estabelecidos em uma presença tranqüila, nós dormimos. O processo de adormecimento [gnyid-log] é ele mesmo a circunstância que permite entrar na claridade da real condição da existência. O funcionamento de todos os nossos sentidos, quando estamos em um estado de presença, se encontra inteiramente absorvido no dharmadatu. Até o adormecer completo, é possível, nos encontrar presentes nesse estado de contemplação. Adormecendo, nos livramos das marcas kármicas do corpo material, das marcas kármicas da visão e das marcas kármicas do funcionamento da mente. Durante o estado de vigília, essas marcas kármicas se manifestam respectivamente como nosso corpo material, como as aparências exteriores que nós percebemos e como o funcionamento das nossas mentes. Porque dizemos nós que somos desembaraçados? Os muros bem sólidos de uma peça, por exemplo, constituem limites materiais que nós não podemos livremente atravessar. Mas quando estamos presentes no estado de rigpa, não somos condicionados pelos corpos materiais. Quando estamos presentes neste estado, há meios de ultrapassar estes limites e de nos reencontrar na real condição de existência. Como é isso possível? Entre o momento em que se dorme e o momento em que começamos a sonhar, a mente não funciona e nos encontramos na presença da real condição da existência. Neste estado, teremos a experiência de um certo grau de fusão com o que chamamos a clara luz natural. Se for o caso, seremos capazes sem muito esforço de ter a experiência de sonhos conscientes que poderemos controlar o conteúdo. De outro modo, no instante da morte, seremos capazes de morrer mantendo uma presença e sabedoria totais. E quando morremos guardando a presença, todas as aparições que surgem no tchönyi bardo, surgem simplesmente como a manifestação da perfeição espontânea, e as reconhecemos como tais. Essas qualidades espontaneamente perfeitas que aparecem então são essas do sambhogakaya. O adormecer é um processo análogo àquele da morte, se bem que, dominando o estado de sonho nesta vida, atingiremos o domínio da morte e do estado do bardo. Adormecer no estado da clara luz natural equivale a experiência do tchönyi bardo. A etapa seguinte é a aparição do sonho. O estado de sonho é análogo ao sipai bardo. Chamamos esse último "bardo do futuro", porque ele representa o desencadeamento do processo de renascimento. Quando somos conscientes de nos encontrar no bardo, há muitas coisas a fazer para melhorar a situação. Assim, do mesmo modo que no estado de sonho, no bardo, não somos condicionados por um corpo material e, portanto não temos todas nossas faculdades sensoriais. Graças as práticas que tenha efetuado enquanto vivo, o praticante se encontrará em uma melhor posição, e ele terá adquirido uma maior claridade que um ser comum preso nas experiências do pós-morte. Do fato de sua maior claridade no bardo o praticante terá a capacidade de compreender sua condição e o que está por vir. Ele não se sentirá desamparado, cegamente empurrado e jogado daqui para lá pelo vento de seu karma. Mas esta capacidade só é possível se estamos conscientes e presentes durante o bardo. É a mesma coisa para os sonhos lúcidos, se bem que podemos utilizar o estado de sonho para adquirir esta capacidade graças a uma prática quotidiana. No estado de vigília, é preciso passar pela porta para sair de uma peça, mas no estado de sonho podemos atravessar muros, mesmo se são aparentemente sólidos. Essa experiência do estado de sonho favorece enormemente o triunfo sobre os apegos de nossa vida quotidiana, porque em sonho nós fazemos diretamente a experiência da insubstâncialidade e da irrealidade de todas as coisas. Quando nos encontramos no estado da clara luz natural, não temos pensamentos discursivos criadores de distrações. Nosso estado de presença se absorve em sua "mãe", a clara luz natural, e nós nos reconhecemos no estado de dharmata, a real condição da existência. Diríamos os reencontros de um filho único e sua mãe após uma longa separação. Assim falamos da clara luz "filha" que fizemos a experiência na prática durante a vida, e da clara luz "mãe" que fazemos a experiência aqui no momento de adormecer, e muito particularmente no momento da morte. O que nos interessa, é o principio de reintegração da energia. Pelo fato da prática da clara luz natural, ela chegará durante o período que segue à contemplação, e no caso que nos ocupa, saber, o estado de sonho, onde nós começamos a fazer a experiência da consciência de sonho: reconhecemos que os sonhos são sonhos sem sair do sono. Assim, a prática da clara luz natural é suficiente, e não temos necessidade alguma de nenhuma outra prática especial, de nenhum outro yoga. Nos encontramos libertos de toda ilusão e alucinação, os sonhos surgirão como amigos benfeitores e nos ajudarão a manifestar nossa dimensão da existência na sua totalidade, do mesmo modo que sua sabedoria primordial. Há duas maneiras de encarar essa vitória sobre a ilusão. De uma parte, reconhecendo que os sonhos são sonhos enquanto dormimos, tomamos consciência da natureza ilusória do estado de sonho, e, durante o estado de vigília, tomamos mais e mais consciência da natureza ilusória de toda coisa na vida quotidiana. Por outro lado, não somos mais escravos dos sonhos e do sono. Quando dormimos, temos tendência a ser condicionados pelos sonhos segundo os mesmo esquemas que nos condicionam na vida quotidiana. Esta prática faz, pois do sonho um método da descoberta do verdadeiro conhecimento e, do mesmo modo, um meio de desenvolver a manifestação de nossa dimensão e de nossa sabedoria primeira. Eis, em resumo a prática da noite. |