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Meditando a vidaMEDITANDO A VIDA
de Lama Padma Samten
Editora Fundação Peirópolis


Introdução

As práticas espirituais só adquirem sentido na vida cotidiana. A relação com nossos pais, esposa, marido, filhos, colegas de trabalho e demais seres em todos os planos da existência, material e sutil, é o verdadeiro termômetro da prática. Um sinal de que há algo errado é nos considerarmos espiritualizados, praticantes disciplinados e zelosos, e, ainda assim, sermos tomados por desinteresse e falta de compaixão em relação aos seres que nos rodeiam.

No sentido último, o isolamento e a prática formal são artificialidades - só se justificam por eventualmente proporcionarem a remoção de obstáculos. São remédios, tem princípios ativos e, por isso, também efeitos colaterais. Quanto antes nos livrarmos dos remédios e atingirmos nossa condição natural de saúde, tanto melhor. Todas as construções espirituais, ainda que meritórias, são esponja, água e sabão, ou seja, dispensáveis ao final da limpeza.

Na primeira das seis partes de Meditando a vida vamos examinar as várias formas de introdução aos ensinamentos do Buda. Trata-se de uma abordagem geral, apontando os aspectos sutis contidos nas diferentes maneiras de apresentar o pensamento budista.

Em algumas introduções ao budismo a ênfase é colocada em duka, ou seja, no sofrimento, e também no que dispomos de positivo para superar duka - as capacidades latentes de nossa vida humana preciosa. Outras vezes, o foco está no exemplo do Buda. Pode-se também compreender o budismo examinando diretamente o que o Buda ensinou, ou seja, as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo. Outros mestres introduzem os ensinamentos por meio de instruções sobre meditação e prática formal; há os que fazem a abordagem por meio da natureza de bondade, amor e compaixão naturalmente presentes em nosso coração, explicando a transcendência e como isso espelha a essência de Buda.

Há ainda o método Vajraiana, no qual o foco da meditação é dirigido às deidades que manifestam as qualidades da natureza de Buda, inseparáveis de nossa natureza - os Yidams. Outros grandes mestres desenvolveram a habilidade de apresentar o budismo como o reconhecimento direto da natureza ilimitada presente em todas as manifestações.

Na segunda parte aprofundamos a experiência de nosso cotidiano. "Todos os seres desejam ser felizes e evitar os sofrimentos", diz Sua Santidade o XIV Dalai Lama; se tomarmos essa motivação como referencial, teremos um instrumento seguro para avaliar nossas ações cotidianas. Reconhecendo com profundidade e sabedoria o que de fato estamos fazendo e a forma de ação que estamos usando, poderemos nos direcionar para agir como geradores de equilíbrio e felicidade. O tema dessa segunda parte é a maneira como os ensinamentos budistas proporcionam aprendizado incessante a partir da vida cotidiana.

A terceira pane de Meditando a vida é dedicada ao processo de educação à luz do Darma. O processo da educação em nossa cultura apresenta um paradoxo. Quando a educação tradicional se estabelece em nossa mente, surgem estruturas cognitivas que nos permitem raciocinar e reconhecer de forma correta a realidade circundante. Essas estruturas, entretanto, não são totalmente abrangentes; ao se estabelecerem, criam um processo automático de construção da experiência de realidade, deixando-nos aprisionados em suas opções.

A estreiteza das opções só é percebida quando as estruturas cognitivas não mais proporcionam resultados satisfatórios, ou seja, quando a impermanência desaba sobre o conhecimento que antes parecia seguro e permanente -como acontece quando teorias científicas e paradigmas envelhecem. Vemos aqui que o problema não está num determinado tipo de estrutura, mas no fato de que o conhecimento baseado em quaisquer estruturas separativas é naturalmente frágil e precisa manter claro o reconhecimento do limite de suas verdades.

O processo automático, involuntário e, em geral, completamente oculto de atribuição de sentido estabelece uma sutil forma de prisão. No budismo, educar é libertar. Libertar das estruturas que conduzem nossa forma de manifestar a experiência de realidade e que criam nossos impulsos de ação sem nos consultar e sem nos avisar.

A quarta parte de Meditando a vida apresenta de forma breve e direta as várias etapas do caminho da meditação. A meditação não consiste em um único tipo de prática; existem diferentes formas de meditar. O conjunto de práticas constitui um caminho de várias etapas. Cada estágio leva a um processo mais sutil que o anterior O objetivo é o refúgio final e perfeito na natureza de Buda.

A quinta parte de Meditando a vida explica como lidar com crises e conflitos. Todos os ensinamentos budistas tratam da superação de obstáculos e crises através da percepção da liberdade da mente. As crises fazem parte do mundo dual, elas se manifestam nas identidades separativas criadas por nós mesmos. Criamos identidades e estabelecemos pontos que não queremos que se alterem nunca. A crise acontece quando a impermanência atinge um desses aspectos rígidos.

O budismo considera as crises benéficas por permitirem que nos flexibilizemos, que aumentemos nossa percepção de liberdade. Quanto maior a liberdade, menor a quantidade e intensidade das crises. Quando se atinge a liberação, as crises cessam porque a natureza absoluta não entra em crise.

Na sexta parte analisa-se a paz no cotidiano. A paz faz parte de nossa essência, é o nosso estado natural. Perdemos a paz quando criamos identidades, quando nos fixamos em referenciais, estabelecendo coisas que não queremos que mudem. Cada vez que a impermanência se manifesta nessas fixações, nossa paz transitória é abalada. A verdadeira paz só é obtida com a iluminação, mas, antes disso, é possível experimentar momentos de paz. Para isso, é necessário cultivar a flexibilidade, trabalhar contra as fixações.

Meditando a vida é uma compilação de palestras. O trabalho de organização, gravação, transcrição, revisão e edição do texto foi realizado generosamente por muitas pessoas de diferentes cidades, todas com o coração compassivo dos bodisatvas e o brilho no olhar. Gostaria de agradecer especialmente a Nelson Padma Yeshe, Angelita Padma Palmo, Eduardo Padma Dorje, Eliane Padma Prajna, Bruno D'Avanzo e Sueli, Gustavo Guerra, Fabiane Rocha dos Santos, Maria Bernadete Brandão e Mara Rejane Russel. A edição final do livro é de Lúcia Brito, com sugestões de Eduardo "Peninha" Bueno.

A motivação para a transformação dessas palestras em textos foi a percepção de que o cotidiano traz incessantes e maravilhosas oportunidades para praticarmos lucidez e profundidade. Entretanto, para que isso aconteça, é necessário observarmos alguns pontos por meio dos quais nossa visão e ação passam a incorporar a sabedoria budista de trazer benefícios a todos os seres. Apresentamos o caminho que consiste em parar, serenar o corpo, a fala e a mente e desenvolver lucidez progressiva sobre nossa natureza e sobre a natureza de todas as nossas experiências. No início nossas experiências são vistas como internas ou externas, no fim do caminho elas são reconhecidas de modo incessante como manifestações do brilho e silêncio da unidade primordial.

Prostro-me diante dos mestres que, inseparáveis da natureza do silêncio, refugiados no reconhecimento do brilho e da liberdade primordial, vivem a inseparatividade compassiva, manifestando a inesgotável energia de ação que brota da motivação de trazer benefício a todos os seres.

Sua natureza é tão ampla que nenhum ser deixa de ser alcançado. Essa natureza ampla é a natureza ilimitada de Buda, além de espaço e tempo, além de vida e morte, além de forma, reconhecimento e nome. Prostro-me diante de todos os mestres vivos que, em carne e osso, manifestam milagrosamente a natureza incessante de todos os Budas.

Lembrando a experiência cíclica de sofrimento pela qual os seres passam quando perdem o reconhecimento de sua natureza original, volto a mente e o coração a todos os Budas que trabalharam incessantemente e seguem produzindo benefícios incomensuráveis, ilimitados e incessantes, e refaço o voto de trabalhar para que o caminho do nobre sentar silencioso possa seguir produzindo o fruto direto da lucidez ilimitada, mesmo em tempos de degenerescência. Que os seres possam, da forma mais rápida, reconhecer-se na experiência original que nunca perderam - pois ela não tem início, nem tempo, nem fim - e, assim, libertar-se da experiência onírica de existir em uma roda da vida, imersos na impermanência.

Padma Samten
Fevereiro de 2001
Caminho do Meio, Viamâo - Rio Grande do Sul



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