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Intolerância
 

por Tam Huyen Van
Fevereiro, 2006
Ano Buddhista 2549.


Os recentes acontecimentos mundiais, em especial a grande cadeia de ódios e provocações ocorrida em função da publicação de caricaturas do profeta Muhammed (Maomé) na Dinamarca e em países europeus, tornaram-se fatores inevitáveis de análise e ponderação por todas as pessoas que reconhecem o grau de influência dos gestos humanos em cada pequeno detalhe de nossas vidas íntimas. Um dos maiores perigos para nossa estrutura de vida está no risco de optarmos pela alienação, pela não observação consciente das coisas á nossa volta sob uma ampla margem de tempo e espaço: a característica mais marcante do egoísmo ignorante está no fato de que ele jamais levanta os olhos para além de si mesmo, de seu pequeno mundo de questões próximas e cotidianas. Na verdade, o mais saudável exercício de auto-observação se dá através de uma constante contemplação do mundo, aliada a uma constante observação de nós mesmos. Aprender a viver o cotidiano próximo sem nos alienarmos do cotidiano distante é uma lição fundamental a ser aprendida.

Portanto, não pense que você está imune aos atos históricos, aos acontecimentos distantes, aparentemente fora de seu alcance cultural ou geográfico: o que ocorre lá também pode estar ocorrendo - sob outra aparência - em sua própria casa, na intimidade de seus amigos, seus desafetos ou de seus entes queridos. Eis porque, ao escrever sobre o exercício buddhista de consciência e amadurecimento pessoal, eu sempre pretenda também escrever sobre temas humanos. A cada palavra que escrevo tenho consciência de que minha própria intimidade não pode ser esquecida; que ao refletir sobre temas mundiais devemos saber lembrar dos fatos comuns de nossas vidas rotineiras, os pequenos detalhes aparentemente sem importância, mas que representam o cerne de todas as nossas ações e suas conseqüências. O correto equilíbrio entre o individual e o coletivo, entre os grandes fatos e os pequenos detalhes é o que pavimenta o Caminho Óctuplo, a senda de consciência e cura dos ensinos de Buddha.

E contribuir para o debate saudável sobre as facetas da intolerância é muito importante, a despeito do fato de haver tantas vozes discordantes no ar, e esta própria discordância ser - ele mesma - a chave para a sustentação da intolerância em suas várias e cruéis expressões. Na crise mundial de interpretações que ocorre neste momento, vemos o exemplo de como as relações interpessoais estão falhas em todos os seus níveis, em todas as culturas modernas, em todas as classes sociais. As instituições políticas, sociais e religiosas insistem em sustentar seus padrões de ação em procedimentos frios, excessivamente formais, distantes de qualquer calor humano. A origem da crise sobre as caricaturas se deu justamente pela frieza de contato e deliberado distanciamento de ações moderadoras. As partes envolvidas não souberam reconhecer suas próprias inabilidades, e todo o processo se desenvolveu de uma simples ação de mídia insensível e inconseqüente para uma explosão de frustrações antigas.

Na verdade, o fundamento comportamental que desencadeou os protestos nada têm a ver com desenhos debochados e dogmas desrespeitados: têm a ver como o abismo de inconsciência e pobreza de percepção que assola a humanidade há tempos, e que está cada vez mais cristalizada em perspectivas egoístas, fechadas em si mesmas, e em um histórico de atitudes políticas extremamente imaturas - ainda que feitas por homens e mulheres muito sérios, racionais e orgulhosos de sua capacidade e experiência. No caso da cultura moderna ocidental, apesar das declarações educadas e politicamente corretas, o fato é que o Islamismo é visto como artífice de uma cultura do medo e do terror, do fanatismo e da estupidez. Poucos conseguem ver além das manifestações distorcidas, e poucos sabem que o ocidente também já abrigou - e ainda abriga - centenas de grupos intolerantes e distorcidos, fanáticos e intimidadores. A cultura islâmica não é mais responsável pela insanidade do mundo do que a nossa. Já no caso das sociedades islâmicas, sua própria condição estrutural religiosa impede que elas superem sua concepção aguerrida e determinada, característica sua prática religiosa. Junte-se a isso séculos de sentimentos de humilhação e rancor pela falta de composição construtiva entre as políticas ocidental e médio-oriental, resultando em um acúmulo de desprezo e descrenças, alimentados pela intolerância mútua.

Como eu já havia comentado em ensaios anteriores, o momento em que vivemos é extremamente grave e importante, está ocorrendo uma transformação mundial de corações e mentes. Algo sutil está nascendo nas ultimas décadas, e este algo não pode mais ser interpretado sob a luz de uma simples teoria sociológica, uma conjetura antropológica ou um fenômeno político-cultural; a ferida atual da humanidade está expondo a doença mais antiga e mais constante que vêm assolando todos os seres humanos: a doença da ignorância perceptiva, aquela falta de discernimento e atenção que provoca em nós a egoísta tendência a defender argumentos intolerantes ao extremo, e jamais admitir nossos erros.

Os argumentos são intolerantes de ambos os lados porque, mesmo quando expostos sem violência, eles não se baseiam em um exercício de reflexão contemplativa. Eles são intolerantes porque são parciais, insistentes em suas posições, sem nenhum mérito lógico maior do que seus próprios parâmetros teóricos em política, em sociologia ou religiosidade. E são, afinal, mal-humorados. Até mesmo a imprensa agiu com falta de humor, sem senso de flexibilidade. E a falta de humor, a incapacidade de sorrir e rir para si mesmo e para o mundo, é uma das mais expressivas provas da falta de discernimento e aceitação sábia da diversidade das coisas. A dificuldade não está no simples fato de que os homens possam discordar em determinados momentos e sob certas circunstâncias; está na terrível constatação de que os homens estão sendo incapazes de concordar em todas as circunstâncias. Existe um movimento subliminar de reafirmação das distâncias, de elogio às diferenças, e da divinização de uma liberdade gratuita de expressão que é - à parte sua óbvia impossibilidade - pertinente apenas nos limites restritos de nossa compreensão sobre o que é válido exprimir.

A prática da real liberdade, a liberdade de percepção que surge através do exercício de consciência contemplativa todos os dias, em todas as situações, nunca foi considerada sequer como tema menor pelas grandes estruturas de poder da humanidade. Assim, estamos vendo multidões em fúria ignorante, a mídia incorreta em sua postura falsamente libertária, e os governos desconfiados e beligerantes entre si. Eis o trinômio de energias que domina as nossas vidas neste momento: a ilusão passional das massas, incorreção política das instituições, e a paranóia irresponsável dos governos. O fator mental que fomenta estas condições trágicas chama-se, mais uma vez, inconsciência.

 

O exercício da contemporização, da atitude consciente de concordância, não significa mais um rito passivo ou hipócrita de palavras formais e ações de boa vontade; na verdade, em muitos momentos a boa vontade pode impor modelos e regras extremamente prejudiciais e ingênuas. A ação mais correta aponta para o esforço claro e honesto em desconstruir os modelos inconscientes e ilusórios que dominam as mentes humanas, ao mesmo tempo em que procuramos exercitar uma interação saudável entre convicções pessoais e o respeito à diversidade alheia - não de forma racional, didática, mas com sensibilidade, alegria e criatividade - chegando, enfim, a uma concordância integrativa, a uma nova postura diante do problema. Ninguém está plenamente correto, ninguém está plenamente destituído de razão: todos os extremos - excetuando aqueles tão doentios e insalubres que já não podem mais ser considerados minimamente coerentes - possuem elementos úteis para uma reconstrução das ações que seja a favor de todos, sem exceção. Como Gautama Buddha já afirmava a mais de 2500 anos, é perfeitamente possível criar uma integração dos extremos, um caminho do meio realmente saudável a todos os interessados.

O mais triste nesta crise moderna é que ela está baseada em tão graves equívocos perceptivos que já pode ser considerada a culminância de milênios de inconsistências humanas. A intolerância que domina as sociedades atuais não é absolutamente fruto de um conflito de civilizações: é fruto de um conflito mental entre a obliteração racional egoísta e a sensibilidade consciencial, um fenômeno endêmico e doentio de carências, medos e ódios derivados da falta de sabedoria e de correto entendimento interpessoal, e de uma completa falta de integratividade e contemporização.

Estamos sofrendo de uma doença consciencial. Nossa forma de perceber as coisas, o modo como defendemos aquilo que achamos ser correto, se prende a um engano crucial. Mesmo considerando o fato de que a humanidade se divide em vários nichos onde os níveis de consciência variam do mais obscurecido ao mais diversificado, ainda assim a proposição meditativa buddhista afirma ser possível fomentar uma transformação ampla do ser, com a consolidação de níveis conscienciais mais saudáveis e construtivos. Não será uma tarefa fácil e principalmente o buddhismo não se propõe a apresentar uma fórmula coletiva de cura; na verdade, a proposta de Buddha é absolutamente íntima, partindo do pessoal para o coletivo em uma sucessão de aberturas conscienciais validadas e reforçadas por ações integrativas, inclusivas e concordantes.

A humanidade, entretanto, ainda está em uma fase inicial de aprimoramento perceptivo. Ainda que tenha atingido um alto grau de desenvolvimento intelectual, e a didática, metodologia e teorização das ciências humanas sejam exemplo de sua extrema capacidade cerebral, por outro lado nossa relação sensitiva com o cosmos ainda sofre graves limitações. Eis o paradoxo humano: somos criaturas intelectualmente brilhantes, mas com um frágil discernimento, limitado pelos nossos condicionamentos egoístas. Justamente por essa condição, a maior parcela da humanidade sofre com a miséria e exclusão social, enquanto todas as ações políticas e religiosas se baseiam em uma compreensão pobre do papel do Homem frente ao seu meio.

Não considero, absolutamente, que esta situação atual possa ser resolvida rápida e definitivamente apenas através de teorias e palavras; a prática é necessária. Eu sei, por força de minha própria prática pessoal, que nossos hábitos mentais condicionados pertencem a um complexo de experiências psico-emocionais profundamente arraigadas em nosso ser, desde a infância mais tenra, exigindo esforço para sua superação. Portanto, nestes meus trabalhos não estou teorizando soluções fáceis e imediatas para a problemática perceptiva humana. Mas procuro desenvolver um complexo de argumentos que visam ampliar nossa compreensão do único aspecto que pode ser considerado a fonte primal de todas as neuroses comportamentais e sensitivas humanas: a falta de consciência. Quando a humanidade souber reconhecer a prática meditativa como base para a melhoria de sua compreensão das coisas, a ignorância de atenção, discernimento e discriminação corretos será curada.

O momento é de reflexão e cuidado. É um momento onde o exercício da contemplação e a prática de compreensão e sensibilidade devem ser levados à serio, e realizados cotidianamente. A grandeza espiritual humana é muito maior que sua miséria perceptiva atual. E quanto a nós, simples indivíduos, precisamos observar as convulsões político-religiosas atuais com mais seriedade e atenção. Não se aliene dos fatos; aproveite sua sensibilidade e a use a favor da paz e compreensão no mundo. Faça isso em sua própria casa, com você mesmo, entre seus amigos e durante as ações aparentemente banais de seu cotidiano: a cura de si mesmo já é um passo grandioso para a cura da natureza humana. E será assim, através do esforço sutil de indivíduos conscientes, que o terror e a intolerância serão expurgados do coração do Homem.

 

Pratique a Paz.


Colaboração de Claudio Miklos


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