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O Discurso da Terra
– trilhando a senda buddhista do Ser Integrado –

por Tam Huyen Van
01 de Outubro, 2005
Ano Buddhista 2549.


Uma bela noite, o mestre Yao-shan foi passear pelas montanhas.
Era uma linda noite de verão, e quando o sábio estava na beira de uma escarpa,
as nuvens descobriram a lua e a névoa dissipou-se subitamente.

Yao-shan pôde então ver o vale iluminado pela lua cheia, numa visão de sonho...

Olhando tanta beleza, Yao-shan repentinamente começou a dar gostosas gargalhadas.
Seu riso foi tão alto que os ecos reverberaram por quilômetros de distância.

No dia seguinte, os habitantes da pequena aldeia próxima das montanhas comentavam entre si:

"Ontem à noite ouvi risos! Misteriosos risos, e não sei de onde vinham." - disse um aldeão.

"Sim, eu também ouvi! Isso é realmente misterioso!" - replicou outro.

Dois monges do templo ouviram os comentários e um deles simplesmente disse:

"Não há mistérios no Zen. O som que ouvistes foram de Yao-shan, rindo nas colinas.
O som da alegria zen é como o som da própria Terra: não encontra fronteiras, e é ouvido por todos."

Conto Zen

A Terra está viva. Ela permanece sólida e firme sob os nossos pés enquanto caminhamos, passo a passo, em direção aos horizontes de nossos anseios e sonhos. Mas ao mesmo tempo a alma da Terra flui através das nossas vidas e das vidas de todos os outros seres, todos igualmente seguindo seus caminhos e forjando seus passos através de suas ações, pela força de suas naturezas simples ou complexas. A alma da Terra é a alma dos seres da Terra.

A Terra possui uma voz. Sussurra constantemente, recitando as palavras sagradas de homenagem às plantas, animais e minerais que compõem o corpo do mundo. Esta palavras são, na verdade, o conhecimento fundamental do segredo para viver em harmonia e conexão com tudo o que define o mundo. E quando eu digo "tudo", quero incluir até mesmo as coisas, idéias e maneiras artificiais que a humanidade tem criado ao longo de toda sua história sobre este planeta; incluo também toda a insensibilidade do Homem para com a natureza e para com si mesmo. A Terra murmura a lição: "cada pequeno ato no mundo, bom ou mal, faz parte de mim e em mim habitará para sempre". Escrevemos na terra a nossa história, através de nossas ações. E é a própria Terra que permite ou nega às existências sua integridade ou sua condição. Saber ouvir o murmúrio da Terra é uma tarefa urgente desde a aurora da Vida neste planeta.

Na verdade, nosso corpo é feito da herança que as ações de todas as coisas deixam na terra. Vivemos como um só corpo, pois em cada um de nós habitam os pedaços daqueles que vieram antes de nós: em nosso corpo temos partículas que um dia já foram pedra e grama, peixe e abelha, dinossauro ou humano. Também abrigamos as sementes de nossos ancestrais, suas vitórias e fracassos, seus méritos e deméritos. Somos fruto do grosseiro e do sutil da Terra. Somos o amálgama daqueles que vieram antes; todos, sem exceção.

Já percebeu isso? Ainda não? Observe agora, então. Veja o seu corpo: ele é feito de outros corpos. É feito também de raios e chuva, de nuvens e ventos, de fogos e terras variadas. As moléculas, as pequenas partículas, criam esta estrutura de carne, sangue e ossos que você reconhece como o seu "eu". E cada uma destas moléculas um dia pertenceram a outro ser, outro corpo orgânico ou mineral. E antes disso, as partículas pertenceram à própria Terra.

Veja sua mente, sua razão: ela é forjada pelas idéias de muitos, pela genética dos homens e dos animais. Em sua percepção habitam imagens, sonhos, desejos de muitos outros seres humanos. Passam pela janela de sua consciência, e compõem a paisagem que sua razão contempla todos os dias. Pratique a auto-observação, respire com atenção plena, exercite sua capacidade de percepção e vivencie este dharma. Isso é vital, é muito importante, não é poesia, não é ilusão; é um fato definitivo sem o qual jamais saberemos caminhar na terra com sabedoria.

A lição de integratividade de nosso planeta pode e deve ser imitada em nossas vidas cotidianas. Homens e mulheres no mundo procuram praticar esta aprendizagem há milênios, mas esta é uma lição raramente válida para a maioria. Em algum momento no decurso de nossas vidas, deixamos de lado esta vivência, e simplesmente abandonamos a idéia de que existe uma interconexão válida e real entre as existências. Preferimos buscar o imediatismo das metas egoístas.

As crianças pequenas, essas luzes que iluminam o espírito da humanidade, sabem muito bem o que significa a unidade com a Terra. Já reparou no olhar de um pequeno bebê? Em algum momento de sua vida você já sentiu-se atraído por este olhar, ou ficou algo temeroso de encarar aqueles pequenos olhos brilhantes, incomodado com tanta abertura e claridade? O olhar de uma pequena criança é límpido, e não tem fronteiras; é o olhar de quem se abre para tudo, sem restrições. E às vezes, justamente por serem tão simples e diretos, eles parecem nos confrontar com nossa tolice de adultos, nossa teimosa fuga dos aspectos leves, suaves e descondicionados do mundo. Observe contemplativamente, através de sua prática meditativa, o olhar das pequenas crianças; nele você verá – se respirar com atenção e tiver paciência para esperar – surgir a curiosidade gostosa daquelas almas integradas com o mundo. A liberdade de si mesmo se manifesta naqueles olhos, ainda que exposta com a inexperiência infantil. Devemos voltar a ser crianças? Não, absolutamente; devemos amadurecer nossa consciência, e assim resgatar o senso integrativo que um dia todos nós -- todos, sem excessão -- tivemos.

O caminho do praticante passa pelo exercício da amizade e afeto com o mundo e com os seres (Metta Bhavana, ou "desenvolvimento da amorosidade"). Assim como quando éramos crianças, precisamos reaprender a alegria de brincar com a Terra, o prazer de ver uma nuvem ou observar uma pequena formiga com olhos frescos e mente límpida.

Não, eu não pertenço ao grupo de pensadores que procuram afirmar apenas a suposta bondade da natureza. Sei que o Cosmo possui aspectos implacáveis e forças inconquistáveis. Quando eu falo de vida, quero sempre dizer da vida e da morte, maravilhas e ameaças, pois assim é o ritmo da Terra. Mas nenhuma ação do Cosmo é cruel, assassina. Crueldade pertence aos atos ignorantes humanos, a crueldade é fruto do artificialismo e do extremo sofrimento perceptivo do qual sofrem os seres humanos, e não pertence aos atos naturais. A manifestação de poder do Universo é implacável; a do Homem, cruel.

A Terra age sob as regras do cosmo, unida ao conjunto de ações, forças e leis que determinam o curso dos acontecimentos e o desenvolvimento dos seres, tudo isso fundamentado no fluxo infinito do tempo e das ações. Este é o Tao, a corrente interminável de transformações que leva a nós e a todas as coisas em direção ao tudo e ao nada que nos espera. A Natureza, assim, age com determinação e poder implacáveis, mas jamais cruéis. Não há injustiça no ritmo do universo, apenas a continuidade infinda de nascimentos, mortes e transformações que determinam o curso do rio do Tao. Esta continuidade não existe para corroborar as nossas expectativas humanas; ela existe para corroborar a manifestação da plenitude da vida, em todas as suas facetas.

Qual a maior lição que a prática de integração dos seres nos dá? A de que não há absolutamente nenhuma vantagem em agir com egoísmo. Nenhuma criatura, sequer objetos inanimados, existem por si mesmos sem nenhuma relação com tudo o mais. Todos pertencemos a uma rede de existências compartilhadas, e cada minúsculo grão de poeira tem sua função e lugar no ritmo da vida. Repito o que já disse: tudo define o mundo. Precisamos aprender a viver em comunidade, e crescer em tolerância consciente. Contudo, o conceito de comunidade tem sido interpretado de uma forma muito pouco integrativa há séculos. Por ter se afastado do ritmo natural, o Homem tornou-se surdo para o murmúrio da Terra. Sem mais vínculo consciente com o nosso espaço vital, vivemos exclusivamente para adquirir valores concretos, baseamos nossa estrutura psico-emocional em premissas puramente consumista, e mesmo quando pretendemos viver com mais saúde, em geral o fazemos a partir de dietas, códigos e conceitos rígidos, tolamente estatísticos, simplesmente racionais.

O conceito de Comunidade de Plena Consciência, de Sangha Buddhista, inclui visceralmente a idéia de apoio mútuo, igualdade de direitos, respeito humano e animal, e amizade. Juntos e em harmonia somos capazes de descobrir meios de superar nossas frustrações e medos, e encontrar meios de libertar a nós mesmos com muito mais facilidade. O caminho isolado e solitário é difícil, e nem sempre adequado. A Senda do Ser Integrado, para ser trilhada, precisa abrigar dois aspectos aparentemente paradoxais, mas na verdade indissolúveis do exercício contemplativo: a prática do Viver Só em si mesmo (sem apegos e livre da aversão ou indiferença), e a busca pelo Sangha, a comunidade de prática, onde encontramos apoio, amizade e carinho fraternal. Por mais que o conceito possa parecer ingênuo ou inalcançável nesta época onde infelizmente a hipocrisia, o xenofobismo e o superficialismo se tornou o eixo das comunidades institucionais sociais, governamentais e políticas, a prática da integração humana ainda é uma possibilidade plenamente passível de ser realizada. Mas para que a comunidade consciente surja se faz necessária uma revolução interior jamais vista na história da humanidade.

Para que o Sangha se manifeste, não são necessárias mil pessoas. Ele acontece, primeiramente, quando iniciamos a conhecer nós mesmos, praticamos o reconhecimento e cura de nossos vícios e hábitos insalubres, e descobrimos o nosso verdadeiro Eu. Este é um encontro mágico, e o momento em que aprendemos a gostar de nós mesmos sem arrogância ou vaidade, superamos a auto-piedade, a depressão, as recriminações. Quando encontramos a nós mesmos, temos o primeiro passo sólido para a construção do Sangha. Quando começamos a fazer contato com os outros, o Sangha começa a se consolidar. Seja feito de dois ou um milhão, a comunidade que estiver fundamentada no auto-conhecimento e no reconhecimento mútuo será sempre uma comunidade onde o exercício da interconexão estará firmemente estabelecido.

A Terra está sofrendo. Como tudo que existe no universo, nosso planeta também está subordinado à Lei da Impermanência, que determina o infindável girar do Samsara, da Roda da Vida, onde nascimento, envelhecimento, doença, morte e transformação se sucedem ao longo do tempo. Neste momento Gaia, a Terra, experimenta a dor de sofrer com o egoísmo humano. Assim, ela sofre de uma doença que também será a sua cura, a doença do Homem. A humanidade pode curar a Terra, mas antes deve curar a si mesma. Neste momento a humanidade está mergulhada no maior processo dissociativo que jamais viveu desde que iniciou seu longo processo de evolução e desenvolvimento social. Nunca o indivíduo humano esteve tão globalmente separado da natureza e de seus movimentos vitais. Estamos perdendo o contato com a terra, o ar, a água e o fogo. Estamos perdendo também o contato com o bom senso e a sábia compreensão dos fatos. Estamos perdendo nossa própria alma primordial e sagrada. Mesmo a parcela humana organizada em movimentos pró-ecológicos sofre do mal da intolerância e agressividade, enxergando a estupidez social, tecnológica e política que sustenta a exploração da natureza e dos seres como fruto de um mero erro de lideranças e leis internacionais de preservação.

O mal que fazemos ao mundo se esconde no mal que fazemos a nós mesmos, ao não saber mais reconhecer os ritmos da terra. A sofisticação social moderna, a própria base da convivência cotidiana da qual todos nós participamos é responsável por dificultar a construção de contatos simples e corretos entre todos nós. Nossa vida se fundamenta em cobranças mútuas de participação e companheirismo, de engajamentos partidários e corroboração de dogmas pouco flexíveis, e intimamente não sabemos mais apoiar nossos semelhantes. Muitas vezes queremos que todos concordem com nossos pontos de vista esquecendo de praticar, muito antes disso, o simples exercício de aceitação do outro. Não é possível compor sem aceitar. A prática da tolerância é difícil e possui limites, é claro. Mas os limites da correta tolerância são muito mais flexíveis do que pensamos, principalmente porque na esmagadora maioria das vezes não enxergamos o fato de que, antes de agir com repressão, agressividade e impaciência muitas possíveis soluções poderiam ser implantadas. Mas às vezes nosso orgulho ou ignorância impedem que as soluções se efetivem; e neste momento, preferimos sempre optar pela intolerância. Outras vezes simplesmente não sabemos dos motivos reais do outro, não sabemos ouvir o que ele tem a dizer. E de novo decidimos pela saída mais fácil e menos comprometedora.

Se fazemos assim entre nós, criaturas de mente sofisticada e cognição excepcional, o que dizer de nossa relação com os animais e objetos que compõem o resto do mundo? Se não mais sabemos dialogar com tolerância e cuidado com nossos semelhantes, a união com tudo o que possui uma linguagem aparentemente alienígena é ainda mais diluída, destruída por uma visão consumista e falta de sensibilidade.

A prática de integração ensina uma lição interessante: devemos reaprender a ouvir o murmúrio do cosmo. A linguagem da Terra é apenas um tom dentro da grande sinfonia do universo.

Tudo isso parece muito "esotérico", misterioso? Não é, acredite. Sei que muitos grupos humanos, alguns politicamente engajados, outros místicos e esotéricos, se esforçam para repetir o discurso da Terra. Mas na verdade este discurso pertence a uma linguagem do não-ser, da simplicidade e de muita, muita paciência, independendo de qualquer idiossincrasia, paixão ou excentricidade. Já vivi muitas perdas e decepções pessoais, e como todos vocês eu também cometo erros e injustiças comigo mesmo e com as pessoas à minha volta. Mas pratico o caminho da integração do ser com esforço e atenção. Ao viver as necessidades e rotinas de minha vida, e mesmo ao ter de encarar as mágoas, desafios e frustrações que sugiram e ainda surgem em meus caminhos e meus dias, não deixo de manter o meu Virya (esforço, vigor, empenho) diante das circunstâncias. Jamais desisti de começar novamente; jamais me permiti sucumbir à derrota em meu coração. Mesmo às vezes sozinho, sei reconhecer que jamais estou só, e isso me faz confiar muito no Caminho.

Basta olhar para a luz do sol nas folhas das árvores, contemplar o sorriso de minha pequena filhinha, sentir o vento em meu rosto ao atravessar a rua, para me sentir renovado e sentir fluir em minhas veias a energia da cura perceptiva que o exercício da respiração consciente nos dá.

A Terra está viva. Ela pulsa vibrante todos os dias, apesar das dores que sofre ao ser explorada e desgastada pelo atos impensados dos homens. E não há mistérios em seu discurso; as palavras que murmura podem ser lidas e interpretadas, não são difíceis nem dependem de conhecimento, razão ou sofisticação. Elas generosamente estão escritas na própria alma do mundo, sem nada a esconder. Podemos lê-las, compreender suas simples verdades, e expor através delas o verdadeiro Dharma. Precisamos apenas confiar no Caminho, praticar a meditação correta, e aprender a olhar mais para a lua, nas noites claras de verão...


Colaboração de Claudio Miklos


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