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Ahimsa: Desconstruindo a Violência
- como desarmar corações e mentes -

por Tam Huyen Van
10 de Outubro, 2005
Ano Buddhista 2549.


A questão da atitude pacífica é muito polêmica e difícil de abordar, principalmente em uma sociedade como a nossa, onde não apenas temos um sério histórico recente de crimes e agressões constantes, como também – e talvez principalmente – por vivermos sob uma cruel ruptura social, com uma grande maioria em estado de pobreza, fragmentação e diluição cultural, e limitada escolaridade. Ora, até mesmo as camadas sociais teoricamente mais privilegiadas possuem um grau muito pobre de discernimento e percepção, e seu próprio comportamento egoísta e consumista é a demonstração disso. Contudo esta realidade não é, absolutamente, característica apenas brasileira. Ela se espraia pelo mundo, e atinge países variados. A bem da verdade, a dificuldade em compreender e internalizar a real natureza da não-violência é endêmica na humanidade. Quando os homens concordaram? Em que ponto da história (ou pré-história) jamais estivemos sem conflito, irmãos contra irmãos, destruindo grupos alheios, criando políticas fundamentadas no confronto, fomentando crimes, inventando novas maneiras de morrer e matar?

Neste momento, estamos vivendo um momento simbólico em relação à violência. Ao redor do planeta guerras, crimes e conflitos vários seguem seu curso. Em nosso próprio pedaço de mundo, a violência é constante, a falta de tolerância assustadora e o medo pungente. Aparentemente nada disso é novidade, mas há um tom de alerta global – se o quisermos ver, é claro – nestes tempos onde a natureza está convulsa e a humanidade incoerente, alerta para o qual tenho chamado a atenção já há algum tempo. O que parece o seguimento normal de injustiças e ignorâncias de uma espécie animal competitiva e muito agressiva como a nossa na verdade é um indicativo sutil, quase delicado, de que se aproxima algum tipo de ruptura, de transposição. Notem que não falo de transformações externas, e não fantasio uma maravilhosa revoada de anjos ou a chegada na Terra de seres iluminados, todos prontos para redimir o mundo. Eu falo de uma transposição, uma troca de parâmetros humanos, uma reestruturação de conceitos; pois reafirmo que as respostas para o sofrimento consciencial humano estão nas ações humanas, no Aqui e Agora. A Utopia nos espera na simplicidade.

Me parece que estamos cada vez mais mergulhados em graves decisões, com uma minoria decidindo em nome de uma grande massa de bilhões, inconsciente, miserável, alienada. A humanidade se dirige ao desfecho de uma longa era de atrocidades, destruição da natureza e egoísmo ignorante. Será um desfecho para melhor ou para pior? Não sei. Esta valiosa sabedoria ainda me escapa. Mas de alguma forma tenho esperança, e percebo que o mundo humano começa a viver lentamente uma transposição de conceitos-chave, de atitudes. Isso, infelizmente, ainda não está ocorrendo por fruto de sabedorias e insight, mas por força da saturação. Há um transbordamento do lado violento e insalubre da natureza humana. A estupidez está sendo vencida pelo cansaço, a exacerbação dos conflitos está criando um vácuo nas idéias coletivas inúteis e radicais, na busca determinista e parcial de soluções gerais. Mas este é um processo lento e quase imperceptível e, como não pode deixar de ser, sempre dependente dos indivíduos, das partes, não do todo.

Em uma sociedade dissociada, é comum os indivíduos discordarem. A discordância é uma característica recorrente em mentes diferenciadoras, presas em seus próprios universos. E quando falamos sobre paz e violência, as nossas concepções diferenciadoras afloram com veemência, e caímos em uma rede de opiniões centradas em afirmações parciais, sempre parciais. Já ouvi o argumento de que a parcialidade é óbvia e impossível de ser evitada nas questões sociais, políticas ou religiosas. Isso não é correto; é possível haver a concordância, a questão é saber se temos o interesse perceptivo em compor um quadro argumentativo saudável e construtivo. Pois, por estar doente de egoísmo, a mente recusa-se a buscar a liberdade de si mesma, de seus pré-conceitos. Ao mesmo tempo, seria fácil aprender a evitar as posições radicais e insalubres. Elas são insensatas por si mesmas, e somente quando não sabemos perceber a falácia em certas posturas, palavras e atos que defendemos, é que estas são sustentadas e alimentadas.

Através da falta de consciência, por força de nossas frustrações e falta de sabedoria, armamos nossas mentes. Eis portanto o maior perigo: nossos corações e mentes estão quase sempre armados e prontos para atirar. É preciso desarmar nossas consciências, trocando a ignorância pela clareza perceptiva. Mas temos muito medo. Tememos perder o controle, e cair em um abismo negro de incertezas.

Tenho acompanhado muitas opiniões sobre a questão da violência ultimamente. Argumentos a favor e contra o uso de armas é o tema atual em nosso país. Tristemente, percebo o quanto ambas as opiniões são racionalistas, parciais e inúteis ao tema. Sinto-me triste porque gostaria de perceber, por parte destes formadores de opinião, mais capacidade de argumentação inovadora e até mesmo sábia. Mas isso quase não ocorre, e terminamos por ouvir e ler uma grande dose de comentários fora de contexto e longe da adequação mental necessária para definir a correta condição da natureza violenta humana. Claro está que a abordagem humanista é sempre considerada fora da realidade. A postura mais comum das mentes diferenciadoras é a de valorizar os mecanismos políticos e sociais relativos, focando o caráter perverso da realidade.

A visão confrontadora é a mais comum em todos nós. Diante de ameaças violentas a nós mesmos e a nossos entes queridos, pensamos sempre em nos defender atacando. Armamos nossas mentes contra tudo o que nos ameaça desde muito cedo em nossas vidas, por força da influência de uma sociedade humana que está sempre preparada para atacar, ainda que subliminarmente. Achamos que a melhor forma de nos defender na vida é atacando, sempre em frente, destruindo os obstáculos e jamais imaginando solucioná-los ou contorná-los. É o que eu costumo chamar a "Síndrome de Rambo", relembrando o personagem americano de filmes dos anos 80/90. Este personagem é a maior representação pós-moderna, em minha opinião, do complexo interpretativo dissociativo e obscuro das soluções destruidoras da mente não-saudável, inculta.

A maior questão acerca de como podemos praticar a postura pacífica não tem nada a ver com o grande espectro de níveis de consciência através do qual a humanidade transita. Embora realmente possamos associar nossa percepção das coisas diretamente ao tipo de ambiente social em que vivemos e à educação que tivemos, a premissa buddhista aponta para uma faceta do complexo perceptivo mais centrada na experiência sensível do meio, através de uma correta prática contemplativa. Ora, até mesmo presidiários ou criminosos podem vivenciar esta prática. Não há premissas para que um indivíduo humano tenha o direito de exercitar em si a busca da compreensão profunda, exceto a premissa da busca em si.

A atitude não violenta é plenamente possível em qualquer meio, em qualquer cultura, sob quaisquer condições. As exceções são evidentemente doentias demais para que possam ser consideradas válidas como manifestações humanas úteis, e tendem sempre a se autodestruirem por força de seu próprio ímpeto insalubre. O ponto mais importante a ser demonstrado é que não há como fundamentar a paz sob a ótica da defesa armada, do contra-ataque ou da intimidação. Infelizmente, toda postura consciente associada ao ato pacífico é, por força de influência da cultura do medo, considerada sempre ingênua, fraca, desprezível. A premissa usada para esse tipo de preconceito é de que diante do ódio criminoso, o pacifista age como um tolo romântico, é um bobo sonhador. E impotente. Há alguns dias vi a capa de uma conhecida revista brasileira, em que numa caricatura um pacifista com expressão de tolo e jeito adolescente fazia o gesto da "pompa da paz", perplexo e cercado por um muro de armas apontadas para ele. Achei interessante e emblemático o fato de que a postura pacifista fosse representada com tanto desprezo.

Existem realmente os românticos da paz. São pessoas quase sempre de generosidade e boa vontade, mas sem grandes argumentos e quase sempre interessadas em fundamentar suas vidas em uma perspectiva mais sonhadora e feliz, sem nenhuma idéia consciente do que a busca da paz signifique. Em outros casos, são pessoas que confundem o engajamento social radical com paz e harmonia, e procuram impor suas idéias a partir de uma veemência intransigente, apaixonada. Mas a real não-violência, o Ahimsa, é uma ação amadurecida. Não é possível ser pacífico sem conhecer profundamente as raízes do sofrimento perceptivo, reconhecer e tocar em si mesmo os próprios ódios, medos e frustrações – e efetivamente superá-los, libertando a mente. Portanto, não pensem que a postura pacífica construtiva derive de uma visão romântica ou passional do mundo. O real pacifista sabe muito bem como seu próprio coração pode estar armado e pronto para atacar. Mas ele aprendeu a arte do Ahimsa, e agora sabe como desarmar a si mesmo.

Pois, para que você seja realmente pacífico deve desenvolver uma coragem verdadeira: deve estar pronto para dar a vida em prol da ação amorosa no mundo. Deve ter a extrema coragem de parar com o revide, com o ódio como resposta para o ódio. Corremos o risco sério de perder a vida, ou de ter a vida de nossos entes queridos em ameaça? Sim, infelizmente. Mas a amarga verdade é que, se a sociedade como um todo quisesse mesmo superar o crime, bastaria uma mobilização consciente e ampla, um ato realmente coletivo de compaixão e cuidado com os outros. Pois diante do gesto aberto, todas as mentes violentas perdem o poder e o mando. Eu já disse antes: as mentes realmente agressivas e cruéis são minoria no mundo, e são impotentes diante da paz. Mas essas pessoas gritam muito alto, e impõem seu modelo de ódio ou paixão exacerbada confiantes na passividade das massas. Somos passivos, e não aprendemos ainda como agir em comunidade consciente. Mas a nossa passividade não tem a ver com a falta de nenhum arsenal de defesa, mas com justamente nossa incapacidade de enxergar outras soluções, e ter a coragem de praticá-las. Confundimos erradamente engajamento com consciência, e perdemos o sentido da palavra "comunidade".

Como desconstruir – em nós – a violência? Eis a verdadeira dúvida, eis o real questionamento que a humanidade deveria ser conclamada a responder. Nenhuma ameaça de violência concreta pode ser evitada sem que haja um desarmamento interno humano, um desmantelamento de nossa visão defensiva baseada em uma agressividade psico-emocional disfarçada em coragem. Todos os que defendem a manutenção dos atos, palavras e ações armados e prontos para o revide corroboram toda a política de guerras e conflitos no mundo. A paz é uma condição realmente simples, muito simples. A paz é mesmo um ato de despojamento, de liberdade completa, de liberação integral de nossas neuroses, nossa xenofobia, nosso egoísmo. É isso, nada mais. Eis o motivo da paz ser tão menosprezada: ela não apresenta nenhum arsenal, não nos dá garantias baseadas em poder.

Como desarmar a mente? Damos o primeiro passo nesta grandiosa tarefa quando aprendemos que nenhuma desculpa estatística, política ou social pode justificar a pretensa idéia de que estar armado e pronto para revidar é uma forma válida de superar a violência. Quando armamos nossas mentes e corações, estamos apenas querendo afastar a crueldade do crime de nossa proximidade, é só. É como um homem que, sendo ameaçado por um assassino, aponta-lhe uma arma e diz: "Vá embora! Suma! Se você se aproximar eu lhe mato!", e o assassino se afasta. O homem sente-se aliviado, acha que manteve a paz para si, mas a verdade é que nada foi realizado, nenhum gesto de superação real da violência foi feito. Aquela assassino continua cruel e odioso, e simplesmente escolherá outra pessoa para matar... O ato foi apenas egoísta. O mal continua, e nada foi feito para curá-lo.

O grave problema da violência é outro, e é urgente que saibamos reconhecer isso. Não será resolvido com revides, com a força de armas, e também não será superado com assistencialismos ou engajamentos radicais. Será curado quando os homens e mulheres aprenderem a reconhecer em si seus próprios arsenais de raivas, rancores, ciúmes, insensibilidades e egoísmos e, então, se mobilizarem para que estas terríveis armas sejam anuladas, superadas, transcendidas. Assim, o grande momento da paz ocorre quando vivenciamos a liberdade de viver sem ódios, sem racionalismos. Em uma mente desarmada, nenhuma atitude de conflito será usada para resolver questões de violência simplesmente porque não será preciso.

Mas resta a questão do medo. Resta a idéia de que sem ser ameaçada com as mesmas armas, a mente criminosa sempre fará o que desejar, e dominará o mundo. A paz está sendo derrotada porque muitos simplesmente não acreditam ser possível enfrentar a crueldade com mãos e corações limpos. Poucos percebem que as guerras, crimes e políticas agressivas ocorrem de fato no âmbito das pátrias, das fronteiras irreais dos países, raças, partidos, classes sociais. A violência está vencendo não porque nos faltam mais armas para nos defender, mas porque países e homens fabricam-nas sem escrúpulos, fomentando o ódio. Vivemos separados demais, enxergamos apenas as diferenças, as bandeiras, as fronteiras abstratas, e não sabemos agir em comunidade consciente.

É justamente neste momento que todos os praticantes reais da não-violência devem se manifestar a favor da humanidade. E escolher todas as formas de desarmar o mundo. Desarme-se, desista de guardar em si qualquer tipo de ferramenta de conflito. Apesar de todo o caos, a despeito de tantas mágoas feitas por mentes ignorantes, apesar da dolorosa perda de crianças, mulheres e homens inocentes e dignos, o caminho para a paz ainda permanece no mesmo lugar: distante das soluções aguerridas. Fora das posturas diferenciadoras, eis o modo para desarmar corações e mentes: resistência em paz.

Para valorizar a beleza do mundo, para dignificar a vida daqueles a quem amo, resisto às armas e ao conflito. Escolho a solução mais difícil: desarmo a mim mesmo, e permaneço confiante de que sem armas resistirei a toda crueldade, mesmo sob o risco de perder a minha vida ou as vidas de quem amo. Não é correto considerar esta postura uma tolice; na verdade, foram os milênios de hipocrisia, desconexão com a Vida e egoísmo – e não a resistência às ações ignorantes – que transformaram a idéia de pacifismo em tolice. Portanto, não resisto por ingenuidade ou ilusão: resisto porque confio integralmente na bondade do espírito humano, resisto por saber que ninguém nasce cruel e atroz, e por acreditar na transformação e cura conscientes como meios efetivos para solucionar os problemas concretos do mundo, longe da simples retórica filosófica ou romântica.

Assim permaneço, entre aqueles que esperam corajosamente pelo dia em que todos os homens concordem.

Pratique a Paz.


Colaboração de Claudio Miklos


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