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O SERMÃO DE TETSUGEN SOBRE O ZEN

Original Francês: "Le Sermon de Tetsugen sur le Zen"
Versión castellana de María de las Mercedes Resano
Traduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye

Tetsugen, monge budista que nasceu em Kyushu, Japão, em 1630, e morreu com 53 anos foi quem editou pela primeira vez em seu país a coleção completa dos textos budistas, que compreende 6056 volumes. Somente este antecedente determina o conhecimento profundo que sobre este assunto possuía o autor deste livro.
Além de certas obras, consideradas como sagradas em seu gênero – o Prajnaparamita Hridaya Sutra, ou o Saddharmapunddarika Sutra, por exemplo – "O Sermão sobre o Zen" se apóia na experiência imediata, e comporta também a explicação teórica do budismo zen.
Neste sentido a obra une à sua aplicação prática uma sábia dosagem do pensamento e dos obstáculos que deverá superar o praticante.


Introdução Do primeiro agregado Do segundo agregado
Do terceiro agregado Do quarto agregado Do quinto agregado

INTRODUÇÃO

Lemos no Prajana Paramita Hridaya Sutra1 : "Se vemos que os cinco agregados estão totalmente vazios, podemos livrar-nos de todos os sofrimentos". Isto significa: se reconhecermos que os cinco agregados estão originalmente vazios, que não são nada e que se vê claramente esta verdade, é possível liberar-se de todos os sofrimentos do nascimento e da morte, e harmonizar-se com o Substancial do Corpo de Essência2 dotado de sabedoria. Os cinco agregados se dividem em: Matéria, Impressões, Conceitos, Formações mentais, Consciência.

As características destes cinco agregados são diferentes, porém se reduzem, em suma, a corpo e mente. A matéria concerne ao corpo e os outros quatro agregados à mente. Ainda que todos os seres vivos sejam originalmente o Substancial Nirvânico3 eternamente feliz e o corpo de essência – este corpo de Conhecimento, que encerra a Sabedoria – se convertem em ignorantes que erram nos três mundos4 , por causa do extravio da matéria e da mente por estes cinco agregados. É inútil distinguí-los ou separá-los em dois grupos: a matéria e a mente, todos conduzem a um mesmo extravio.

1 – Prajna Paramita, este livro sagrado, muito conciso, explica a maneira essencial de chegar ao além pela sabedoria. O monge Zen aprende esse pequeno livro e sempre o recita.

2 – O Corpo de Essência, Dharmakaya, é permanência, gozo, unidade, pureza: está separado para sempre do nascimento, da velhice, da doença e da morte.

3 – Nirvana:Aniquilamento, apaziguamento, pacificação ou liberação. Por superação do nascimento e da morte, se chega à sua essência, sem transmigração.

4 – Os três mundos. Os mundos perdidos, onde todos os seres vivos transmigram sem cessar: 1) o mundo do desejo; 2) o mundo do Formal e 3) O mundo do Não Formal.


DO PRIMEIRO AGREGADO

A matéria é meu corpo e tudo que tem forma e cor; o céu a terra e as plantas no universo, tudo está contido na matéria. O Surangama Sutra declara: "Extraviados por seu eu desde um tempo sem começo, todos os seres vivos crêem que eles mesmos são coisas e, ao perder sua Mente Infinita, se transformam, portanto, em coisas".

Isto significa que não se reconhece que todos os "dharmas"5 são o Substancial do Constante6 do Corpo de Essência, porem que nos equivocamos sobre eles, considerando-os como todas as coisas do céu e da terra, e que, enganados por todas essas coisas, quer dizer, pelos objetos, a mente se transforma e produz as diversas ilusões. Por outro lado, um ancião dizia que o Corpo de Essência se escondia no miolo das Formas. O miolo da Forma sensível é nosso corpo. Ainda que este corpo seja originalmente o Substancial do Corpo de Essência, não sabemos que ele é o Corpo de Essência e cremos que seja nosso.

Nos enganamos sobre o Corpo de Essência ao confundi-lo com nosso corpo e, enganados por nosso corpo, criamos a mácula da concupiscência e da cólera, e nos fundimos profundamente nos Maus Caminhos7. Por outro lado, há duas formas de extravios que se cometem ao tomar erroneamente o "Tathâgata"8, considerado como Corpo de Essência, como todas as coisas que nos rodeiam ou como nosso corpo.

Um dos extravios é o seguinte: meu corpo é um composto provisório de quatro elementos: a terra, a água, o fogo e o ar. A pele, a carne os músculos, os ossos, etc., de meu corpo são a terra. As lágrimas, a saliva, o sangue, são a água. O que é quente, é o fogo. A respiração é o movimento do ar. Fora destes elementos (terra, água, fogo, e ar) não há nada em meu corpo. Se minha vida terminasse nesse momento e se a terra, a água, o fogo e o ar que estão em meu corpo voltassem a sua origem, me transformaria em um simples esqueleto e não poderia, de nenhum modo, contar com meu corpo. Não seria estúpido tomar esta vil ossatura branca como se fosse meu corpo e, conduzido por este crânio, cometer somente ações dignas do inferno durante os milhares de nascimentos e miríades de "kalpas", para terminar por cair nos Três Maus Caminhos?

Não sabemos que o corpo composto de terra, água, fogo e ar é um corpo provisório; cremos ao contrário, que esse corpo nos pertence, ainda que vivamos dez milhões de anos e nos apeguemos obstinadamente a ele. Isto é um extravio de ignorantes. E agora os seres destes dois veículos (os ouvintes e os Buda-para-si), ao serem mais inteligentes que os ignorantes, vêem bem que seus corpos são compostos provisórios (de terra, água, fogo e ar) e, olhando seus corpos como verdadeiros esqueletos, não se apegam a eles, como não se apegam ao pó. Não concebem jamais egoísmo ou orgulho por causa de seus corpos, nem desejos, nem cólera. Não conhecem a mentira nem a adulação, nem a inveja ou a maledicência. Apesar de haverem obtido desta maneira o conhecimento supremo, não sabem ainda que seus corpos são o Tathâgata do Corpo de Essência. Além disso, o Venerado do Mundo tinha muita aversão por eles porque estas idéias pertencem ao pequeno veículo. Como não conheciam o verdadeiro substancial do Corpo de Essência, com sua sapiência dos dois veículos não podem ainda, nem sequer em sonhos, imaginar a experiência anterior de Budha e o domínio de um Bodhisatva. Isto também constitui um extravio dos seres dos dois Veículos, o que produz, com o extravio precedente dos ignorantes, um duplo extravio. Os seres dos dois veículos se extraviam somente por causa do Corpo de Essência, porem os ignorantes são vítimas do duplo extravio, porque se extraviam pela origem do Corpo de Essência e também pela origem do conhecimento supremo obtido pelos dois Veículos. O Bodhisatva superou o estado dos extravios dos ignorantes e dos seres dos dois Veículos, e sabe que seu corpo é o Tathâgata do Corpo de Essência. Isto se encontra no "Prajna Paramita Hridaya Sutra": "A matéria é o vazio e o vazio é a matéria". A matéria é o meu corpo.

5 – O Dharma: esta palavra designa a lei sob todos os seus aspectos: religioso, civil, política, social e metafísica; de uma forma derivada: a religião, a virtude, ou o bem, a existência considerada como submetida à relatividade das causas e efeitos.

6 – O Constante: Bhûta-Tathata. Neste sermão, Tetsugen cita a frase do Vijnãnaptimatra-Sâstra: "O constante significa o verdadeiro que existe sem engano, ou também o permanente que existe sem mudança".

7 – os maus caminhos: os lugares onde se cai por más ações.

8 – O Tathâgata, O Assim Vindo: é um dos dez nomes de Budha. Budha vem aos três mundos pelo caminho do Constante e, realizando a iluminação, ensina aos ignorantes.

O vazio significa o verdadeiro Vazio. O verdadeiro vazio é o Corpo de Essência; o Corpo de essência é o Tathâgata. Dito de outra maneira, meu corpo é o Corpo de Essência e o Corpo de Essência é o meu corpo. Os seres dos dois veículos não sabem que a terra, a água, o fogo e o ar são originalmente o Substancial do Corpo de Essência (Dharmakaya), e crêem que estes elementos constituem coisas inanimadas. Quando um Bodhisatva os olha, vê que a terra, a água, o fogo e o ar são, em seu conjunto o verdadeiro Substancial do Corpo de Essência (Dharmakaya).

Por isso é que o "Surangama Sutra" declara: "A matéria da Natureza é o verdadeiro vazio e o verdadeiro vazio é a matéria da Natureza". Por matéria se entende a terra e a natureza. Como esta era na origem o Substancial da Natureza de Essência, se diz "matéria da Natureza". É, portanto, o verdadeiro vazio. O mesmo Sutra declara, por outro lado sobre a água: "A água da natureza é o verdadeiro vazio e o verdadeiro vazio é a água da Natureza"; diz sobre o fogo: "O fogo da Natureza é o verdadeiro vazio e o verdadeiro vazio é o fogo da Natureza"; e diz sobre o ar: "O ar da Natureza é o verdadeiro vazio e o verdadeiro vazio é o ar da Natureza". Assim como antes falei da terra, a água, o fogo e o ar são o Corpo de Essência (Dharmakaya) e o Corpo de Essência é a terra, a água, o fogo e o ar.

Por conseguinte, a terra, a água, o fogo, e o ar, não são originalmente a terra, a água, o fogo, e o ar, senão o Substancial Maravilhoso do Constante do Corpo de Essência (Dharmakaya), sobre o qual os seres dos dois Veículos e os ignorantes se erguem ao considerá-los como a terra, a água, o fogo e o ar.

Se tomarmos consciência de que a terra, a água, o fogo, e o ar originalmente são o Budha, não somente meu corpo é originalmente o Corpo de Essência (Dharmakaya), mas, de igual modo, o céu, a terra, o espaço e todo o universo são o Substancial Maravilhoso do Corpo de Essência (Dharmakaya).

Quando esta iluminação se realiza, se diz: "Todos os Dharmas tem o caráter verdadeiro" ou "Todas as plantas e a Terra se convertem em Budha". Não somente as plantas e a Terra, senão também o espaço, são o Substancial do Corpo de Essência e que, por erro, temos considerado como espaço. Quando esta iluminação é realizada, a ilusão sobre o espaço se perde e se compreende que todos os Dharmas são unificados no absoluto.

Por isso, o Surangama Sutra declara: "Se uma pessoa realiza a verdade e retorna à origem, o espaço das dez direções desaparece de repente". Portanto, o Sutra do Conhecimento Supremo Total declara: "O universo sem limites se revela na Iluminação".

A escola Zen diz então: "A Terra se funde e o céu se desmorona". E mais, o Budha falou do Paraíso como de uma terra dourada: é porque empregou palavras diferentes para pregar aos ignorantes.

Se obtiver essa iluminação, vejo que meu corpo, sem deixar de ser meu corpo, existia na origem do Substancial do Corpo de Essência, que não teve nascimento.

Posto que não teve nascimento, não conhece a morte. É o que se chama "não nascimento" e "não destruição" ou o "Budha da vida infinita’’. Crer no nascimento e na morte é o sonho do extravio. Se é assim para meu corpo, também é para os outros corpos. Se é assim para homem, também é para tudo: os pássaros, os animais, as plantas, a terra e as pedras. O Amitâbha Sutra declara: "O pássaro aquático e a árvore recitam preces a Budha, ao Dharma e ao Sangha" e também: "O Budha das dez direções do espaço aparece no triquilio megaquilio cosmo e prega a lei com a larga e comprida língua dos Budhas’’.

Estes fatos se produzem no momento da realização da iluminação. Lemos no Saddharma Pundarika Sutra: "Todos os Dharmas tem naturalmente o caráter do aniquilamento, sem descontinuidade desde a origem". Tudo isso indica que a iluminação foi realizada. Realizai esta iluminação pela meditação sentada, fervorosa, em harmonia com o Substancial do Verdadeiro Corpo de essência, liberando-nos do extravio do agregado da matéria".


DO SEGUNDO AGREGADO

A impressão significa complicação. Dito de outra maneira, é o fato de receber e acumular. É o fato pelo qual ao mente percebe o campo das seis poeiras exteriores9 por meio dos cinco órgãos: os olhos, os ouvidos, o nariz, a língua e o corpo. Os olhos; recolhem a cor, os ouvidos; o som, o nariz; o odor, a língua; o sabor e o corpo, o tato. Pois bem, há três classes de impressões: agradável, desagradável, e neutra. Antes de tudo, a impressão desagradável é aquela pela qual se experimenta um sofrimento pelos olhos, os ouvidos, o nariz, a língua e o corpo. A impressão agradável é aquela que nos dá prazer por esses órgãos.

A impressão neutra não nos dá nem o sofrimento, nem o prazer. Por exemplo, não é agradável nem desagradável andar balançando os braços. Assim, chamo impressão neutra o fato de não sentir nada ao olhar com os olhos, ao cheirar com o nariz, ao saborear com a boca. O sofrimento e o prazer que resultam dos desvios causados pelas impressões desagradáveis ou agradáveis fazem com que todos os homens procurem não sentir mais o sofrimento nem pelos olhos, nem pelos ouvidos, e que não pensem senão em sentir prazer ao ver pelos olhos, ao escutar pelos ouvidos, ao cheirar pelo nariz, ao saborear pela boca e ao tocar em seu corpo.

Resulta que, atormentando os outros, fazendo sofrer seu corpo, roubando, mentindo, desejando os bens alheios, matando peixes e pássaros, projetando prejudicar todo mundo, se realizam noite e dia ações que merecem o inferno.

Do extravio de um pensamento, do qual se esperava prazer, nascem inumeráveis sofrimentos. No mundo, os ladrões bebem vinhos, comem peixes, se entregam à luxúria, amam as prostitutas e querem vestir-se magnificamente. Portanto, o desejo de um pouco de prazer os arrasta ao roubo e a mentira, e quando finalmente o vicio é descoberto, o castigo e a morte os esperam. A origem de todos estes males se encontra no desejo de um mínimo de prazer. Tal é o sentido deste antigo ditado: "Todos os desejos são sofrimentos". Portanto, o inseto no verão se precipita para o fogo e o peixe no tanque devora a carniça. Assim, um mínimo de desejo chega a provocar a morte. Padecer os castigos de cento e trinta infernos, a fome das três classes, das nove classes de defuntos famélicos10, tomar a forma de animais peludos e chifrudos, e aquelas formas de asuras11, armados de arco e flechas e de lanças: não existe um só desses sofrimentos que não tenham sua origem no desejo.

Sofrem duras penas durante miríades de Kalpas querendo provar uma gota de doce prazer. Lamentável engano! Por outro lado, nos equivocamos ao acreditarmos sentir prazer, quando o que tomamos por sofrimento ou um prazer não é originalmente nem sofrimento nem prazer.

A razão é a seguinte: quando uma hiena, um corvo etc., vêem um animal apodrecido, pensam que ali existe uma iguaria sem par. Então, se regozijam em primeiro lugar através da vista, depois cheiram e o saboreiam, o agarram com as patas e se deleitam mais e mais e crêem haver encontrado ali o maior prazer. Porem, aos olhos do homem, tudo isso é incomparavelmente repugnante e asqueroso. Se forçássemos o homem a comer essas porcarias, seu sofrimento seria imenso.

As podridões que repugnam de tal forma o homem atraem a hiena e o corvo, que as devoram. É que, sendo de espírito limitado e vulgar, tomam o sofrimento como prazer, ainda que isso não seja o prazer na realidade*. Sucede o mesmo com o que o homem julga agradável. Como não é inteligente, está completamente entregue, por seu amor, a sua mulher e filhos; a riqueza o desencaminha, come peixes e pássaros e se regozija por isso. Para Budha e os Bodhisatvas, o homem é mais vulgar do que a hiena e o corvo para o homem. Disto se deduz que, o que o extraviado considera como prazer é tomado como agradável.

Se, por causa de uma grande falta, o culpado visse seu filho e sua mulher mortos a título de advertência para o povo, e depois fosse forçado a comê-los, se encheria de dor ante essa visão e esse gosto. Sucede o mesmo quando se comem peixes e pássaros. Quando os consideramos com os olhos do Conhecimento Supremo, os peixes e os pássaros são também o Tathâgata do Corpo de Essência e estão unidos originalmente com o Budha. Por outro lado, o Budha e os Bodhisatvas olham todos os seres vivos considerando que tem o mesmo corpo que eles, portanto os consideram como seu filho único, por causa de sua grande compaixão.

9 - Os seis pós exteriores: = os seis objetos dos sentidos; a cor, o som, o odor, o paladar, o tato, o fenômeno.

10 - Defunto famélico = há três modos 1) Aquele que não pode escutar o nome da água, eternamente; 2)Aquele que pode comer somente uma pequena quantidade de pus, de sangue e de fezes do homem; 3) Aquele que pode saciar-se temporariamente. Em cada um desses três modos há também três classes, perfazendo assim um total de nove classes.

11 - Asura = demônio que ama a briga.

Apesar deste caráter de todos os seres vivos, o ignorante de espírito vulgar, por considerar ótimo o pescado, desprende sua carne, quebram as espinhas, bebe e come e se sente feliz. Aos olhos de Budha, este fato não se diferencia da ação dos demônios. O homem vulgar corta a cabeça dos seus filhos, estraçalha sua carne e, apesar de tudo, está muito contente do que vê, do que sente, do que saboreia; é o que se chama um ignorante com idéias erradas.

Estes atos se consideram como fonte de prazer, quando na realidade não é prazer, mas sim um grande sofrimento. Extraviar-se entre o prazer e o sofrimento é o que se designa como segundo agregado a Impressão. Levado de um lado a outro, sobre a onda dos três mundos, nenhum ignorante pode escapar da oscilação entre o sofrimento e o prazer. Por isso, se sentimos prazer ao vermos como se abre uma flor, logo sofremos ao vê-la cair.

Se nos regozijamos ao ver a Lua aparecer, nos entristecemos quando ela se esconde atrás da montanha. Se sentirmos alegria por um encontro fortuito, mais penosa se torna a separação. Quem se regozija por sua prosperidade tanto mais sofrerá vendo-a declinar. O pobre sofre por não ter nada, o rico se atormenta por possuir.

A adulação é um sofrimento, e na realidade, o orgulho também. O amor é um sofrimento e o ciúme também. Quão grandes são estas duas Impressões: o sofrimento e o prazer! Por elas, todos os seres vivos dos três mundos estão submersos e não podem jamais emergir. O fato de nascer está acompanhado pelo sofrimento do nascimento; tornar-se velho, pela decrepitude; adoecer, por uma enfermidade; e morrer, pelo sofrimento da morte. O homem tem muitos sofrimentos, a mulher também. O camponês sofre, os homens que pertencem à outras profissões sofrem também. O serviçal sofre, porém o prisioneiro sofre muito mais. O súdito sofre, porém o rei não pode também fugir do sofrimento. Não só o laico sofre, também o monge.

Nos exemplos que se seguem, se toma como prazeroso, por engano, um estado no qual o sofrimento é relativamente leve e logo cessa. Por exemplo, uma pessoa que leva uma bagagem pesada sente alivio ao descarregar. Também, uma pessoa que estava gravemente enferma e se cura, se sente num estado agradável. Por outro lado, aquele que encontra prazer ao beber vinho, ao comer pescado e a entregar-se à luxuria, pode comparar-se a uma pessoa que sofre de um prurido sifilítico e que acha agradável expor sua pele diante do fogo ou lavá-la em água quente. A picada é preferível à dor, porém, na realidade, aquela é igualmente penosa. Sentir-se em um estado agradável ao expor-se diante do fogo ou ao lavar-se com água quente é confundir o sofrimento com o prazer. Uma pessoa atacada de sífilis sente um verdadeiro prazer ao expor-se diante do fogo e não é um prazer errado. Se compreendermos isso transcendemos o sofrimento e o prazer, abandonamos o engano do segundo agregado, a Impressão, e alcançamos a grande alegria do Nirvana.


DO TERCEIRO AGREGADO

O terceiro agregado é o dos conceitos, quer dizer, os conceitos que se apresentam à mente cada dia, cada noite, mas são ilusões durante o dia e sonhos durante a noite. Todo mundo crê que somente o sonho da noite é desprovido de realidade, é enganoso, e que todos os pensamentos do dia são verdadeiros. No entanto, é um grande erro. Sabemos que todos os pensamentos de um homem extraviado, ainda aqueles que tem durante o dia, são semelhantes aos sonhos e que são ilusões, porém os consideramos como verdadeiros. A ilusão é uma vã imaginação que não tem substancia real, porém parece ter.

Por exemplo, a sombra se assemelha a uma figura e o sonho se assemelha ao real. Nem a sombra nem o sonho existem realmente, porém o que está no sonho parece existir. Uma sombra não é nada, porém quando um objeto está colocado diante da luz da lua, ou do sol, ou de uma lâmpada, em seguida sua sombra o acompanha; se o objeto se transforma, sua sombra se transforma igualmente e, quando o objeto se detém, ela se detém também. O mesmo sucede com a imagem refletida pelo espelho ou pela água: esta não é absolutamente nada no principio, porém parece que existe realmente.

(*) - Tudo é relativo, o que é bom para um ser pode ser horrível para outro.

Sucede o mesmo com as ilusões do homem. Na realidade não são absolutamente nada, porém, quando se apresentam à mente, parece-nos que existem realmente; odiar, amar, detestar, invejar, suspirar por alguém e arder de amor por ele, não são mais que ilusões que não diferem em absoluto do sonho. Minha mente infinita é como um espelho puro ou uma água límpida: originalmente estas ilusões não existem de nenhum modo nele. Como não se conhece bem essa mente infinita, e retemos o reflexo da ilusão que está refletida sobre ele, tomamos esta como verdadeira e nos apegamos obstinadamente a ela, que se acrescenta mais e mais, e o engano é cada vez mais profundo.

O ódio e o amor são, ambos, produto de nossa imaginação. São o que se chama de ilusões. Reafirmo que o ódio e o amor são produtos de nossa imaginação. Com efeito, enquanto não conhecíamos uma pessoa, não a odiávamos nem a amávamos, apesar de que agora a odiamos ou a amamos. Se virmos esta pessoa pela primeira vez, enquanto a conhecemos somente de um modo superficial, enquanto não temos relações intimas com ela, não nos apegamos. Quando ficamos cada vez mais íntimos dela, sentimos uma profunda amizade e começamos a ama-la e nosso coração se sente atraído por ela.

Geralmente, a força de uma paixão se aplica a um sentimento de amor, o amor aumenta de tal forma que podemos sacrificar nossa vida por ela. Se o amor se torna muito ardente, todo o coração se enche de amor e não podemos encontrar ódio em nosso coração, ainda que o vasculhemos atentamente. Então parece que o coração chegou ao amor perfeito e que este amor não mudará tão cedo nas miríades de Kalpas, porém isso não é correto. Quando duas pessoas discutem e brigam porque se ofenderam mutuamente por algum motivo, apesar de seu amor, ou quando o amor de uma delas se volta para outra pessoa, como é comum no amor, o ódio atual é mais vivo que o intenso amor de antes. O ressentimento e o ódio se tornam tão profundos que nos decidimos, finalmente, a sacrificar nosso amor por termos nos apegado demasiado.

Por esta razão, chegamos a conclusão de que é uma ilusão, uma mentira semelhante a um sonho, o haver amado antes e, portanto, odiar também é uma ilusão. Se o amor não houvesse sido errado, não se transformaria em ódio em tão pouco tempo. Se o ódio é verdadeiro, não teríamos amado antes. Como amar e odiar são, na realidade, ilusões, o coração instável muda como o sonho. É um erro estúpido o deixar-se enganar pelo sonho de uma ilusão, o consumir-se de amor, o atormentar-se e chegar até a perda da vida.

Depois de constatar que o amor e o ódio são uma ilusão, deduzimos que o pesar e o desejo também são ilusões. O mesmo sucede com o ressentimento, a inveja, o prazer e a tristeza. Todas essas paixões não são por acaso ilusões? Enganando-se no sonho dessas ilusões, nobres e plebeus, sábios e ignorantes, velhos e jovens, homens e mulheres fazem crescer as sementes do inferno. Ao não compreender que essas ilusões não são mais que sonhos, desde o passado que não teve princípio até o presente, transmigram no ciclo eterno e caem no inferno, se convertem em defuntos famélicos, renascem como animais ou se transforma em asuras.

Se cairmos no inferno ou nos convertemos em Budha, a causa não deve ser buscada em outra parte: nos agarramos à ilusão ou então nos liberamos. Considerando-a atentamente, deveis saber que esta ilusão traz desdita e que a ilusão, é somente um sonho, não tem nem uma partícula de existência. É pela ilusão de um instante, nascida do desejo, que um homem rouba no mundo; é castigado segundo as disposições da lei; perde a honra totalmente nesta vida e cairá por muito tempo no inferno na próxima vida. E também é pela ilusão de um só momento que, ao projetar derrubar a sociedade e o Estado pela revolução, um homem se castiga severamente a si mesmo e é responsável pelos sofrimentos insuportáveis de sua mulher, de seus filhos, de seus irmãos e de seus pais. A primeira idéia com que nos inspiramos quando projetamos uma revolução vem da ilusão de um instante, tão pouco consistente como o fumo do tabaco. Como não sabemos que esta ilusão de um instante é a origem da desgraça, nos agarramos ardentemente a esta ilusão; esta termina por espraiar-se como a nuvem se espalha no céu e não podemos jamais renunciar a ela.

É incomparavelmente mais fácil apaga-la no coração se compreendermos bem, desde o primeiro momento, que se trata de uma ilusão. Um provérbio diz: "A árvore, que mede varias braças, nasce também de um gérmen minúsculo". Ainda que a grande árvore tenha alcançado mais de cinco ou dez braças, quando começava a crescer não era senão um gérmen tão pequeno como a ponta de uma agulha. No momento da germinação, era fácil arrancar o gérmen e joga-lo fora. Convertido em uma grande árvore, é impossível arranca-la, ainda que seis mil ou dez mil pessoas unam as suas forças. O mesmo sucede com a ilusão. Temos que rebatê-la imediatamente enquanto surge o primeiro pensamento. É por seu desenvolvimento que a ilusão traz a desdita. Quando o revolucionário se converte em um perigoso inimigo do Estado, ao apegar-se com ardor a esta ilusão, se pode julgar pelas desgraças produzidas por ela que cresceu como a grande árvore. No entanto a ilusão não é inextirpável como a grande árvore que é composta de matéria. Por muito que seja o tempo durante o qual nos temos apegado a esta ilusão, uma vez que tenhamos decidido abandoná-la, a coisa é fácil. A ilusão desaparece num instante, como a escuridão acaba ao amanhecer. O desaparecimento da ilusão é semelhante ao desaparecimento das trevas no momento em que as lâmpadas se acendem em um quarto que esteve escuro por mil anos. Ainda que a escuridão haja reinado muito tempo, uma vez acesa a lâmpada, não é mais difícil ver claro. A ilusão é assim. Quando a mente se converte, mesmo a ilusão arraigada durante muito tempo desaparece num instante. Ao compreender isso e abandonar a ilusão, que é semelhante a um sonho, vossas ações surgirão de uma mente iluminada. Se vos apegais à ilusão com ardor, sem abandoná-la, vos convertereis em demônio, ou em uma serpente nesta vida, e isso sem falar na próxima. Estes exemplos abundam. Dizem que a mulher, em particular, pela dificuldade de abandonar a ilusão, está cheia de pecados. Dez milhões de "Triquilhiomegaquilocosmos" provém das ilusões dos vivos e os infernos, no total de cento e trinta e seis, são criados por suas ilusões. Que limitado é o ignorante, ao acender o fogo da ilusão e queimar-se nele durante miríades de Kalpas! Abandonem as ilusões e elevem-se alem do terceiro agregado, o dos conceitos, e alcancem a iluminação.


DO QUARTO AGREGADO

O quarto agregado é composto pelas formações mentais, quer dizer, pelas vicissitudes; dito de outro modo, pelas séries de nascimentos e de destruições de minha mente e as mudanças que deles resultam. Se existem ilusões na mente, esta última não permanece estável nem um só instante; muda sem parar. Podemos compará-la com a água que flui continuamente e não se detém, e como a chama que não para de vacilar e não se imobiliza jamais. Observam atentamente como o pensamento varia sem cessar de manhã à noite. Somos absolutamente inconstantes, porque mudamos a cada instante, que passa com rapidez do relâmpago ou o raio. Os dharmas de enganos que são condicionados, são vicissitudes do agregado das formações mentais, por isso são impermanentes e instáveis; são produzidos e destruídos a cada momento e não se fixam nem um só segundo.

O simples nascimento e a simples destruição de uma mente são compreensíveis ainda para a mente de um ignorante limitado, porém as mudanças sutis de cada instante, que resultam dos nascimentos e das destruições, não podem ser compreendidas pelo ignorante e os seres dos dois Veículos. Como estes nascimentos e destruições se produzem em suas mentes, lhes parece que todos os dharmas nascem na mente. É com este significado que o "Sutra do Conhecimento Supremo" declara: "Quando a nuvem se desloca rápido, a lua parece mover-se e quando o barco navega, a costa parece deslocar-se". Quando o deslocamento da nuvem é rápido, a lua parece mover-se e quando a navegação é rápida, a costa e a montanha parecem mover-se. Isto não se produz pelo movimento da montanha, mas sim pelo movimento do barco que estou. Porque as nuvens de minha mente são rápidas, vejo deslocar-se a lua do Constante. Ainda que originalmente os dharmas tenham aspectos reais, levam sempre com eles os caracteres do aniquilamento, e é por causa do engano do agregado das formações mentais que consideramos o passado, o presente e o futuro como uma sucessão de mudanças, e as quatro estações como um ciclo sem fim.

É nesse sentido que o "Nirvana Sutra"13declara: "As formações mentais são impermanentes, é a lei da produção e destruição".

As formações mentais constituem o agregado das formações mentais. Isto significa que todos os dharmas mudam sem conhecer um só instante de estabilidade por causa da produção, das vicissitudes e da destruição do agregado das formações mentais. Se não superarmos totalmente o engano da produção e da destruição, condicionadas por essas formações mentais, o gozo do Nirvana, que é o aniquilamento e o incondicional, não aparece.

13 - Nirvana Sutra: este livro sagrado afirma que todos os seres vivos tem a essência Budha, que o Tathâgata é permanente e não muda

Quando a produção e a destruição das formações mentais se apagam, a lei do aniquilamento aparece, e então se chega ao gozo maravilhoso do Nirvana, onde todos os dharmas se unificam no Absoluto, onde tem seu verdadeiro caráter: extinção da produção e da destruição, esse é o grande gozo do aniquilamento.

Ainda que meu corpo, minha mente e a de todos os dharmas sejam o Substancial do Corpo de Essência Eterno e originalmente não sofram a produção e a destruição, por causa do engano do agregado das formações mentais, não descobrimos que eles são o Substancial do Constante e os confundimos com os dharmas produzidos e destruídos nos três mundos. Quando transcendo o engano do agregado das formações mentais, minha mente se estabiliza; não varia mais. Se minha mente não varia, os dharmas se estabilizam também.

A estabilidade de minha Mente Infinita se assemelha à da matéria com a qual se faz um espelho. Olhe o que reflete um espelho límpido todo dia; reflete o céu, a terra, a flor, o vegetal, o homem, o pássaro e o animal. Todas espécies de cores e de objetos se sucedem nesse espelho, sem deterem-se nele um só momento. No entanto, este espelho não é nem o céu, nem a terra, nem a flor, nem o vegetal, nem o homem, nem o pássaro e nem o animal; é somente um espelho puro e sem manchas. Deveis compreender, pela comparação com o espelho, que, refletindo todos os dharmas, vossa Mente Infinita não participa de suas diferenças e não transita nem pela produção nem pela destruição. O extraviado vê somente o espelho projetado em sua mente e não pode encontrar o espelho da Mente Infinita. É o que o Budha declara no "Sutra do Conhecimento Supremo": "O homem confunde os reflexos causados pelos seis pós com o aspecto real de sua própria mente".

E, então, é um grande tolo também o que crê ver um espelho somente depois de haver limpado todas as imagens que se refletiam nele, sabendo que são vazias e enganosas. Olha bem esse simples espelho: quando reflete indistintamente a flor e o animal não tem passado nem futuro, nem cor nem odor. É o que se chama o Corpo de Essência e o Constante. É essa substância maravilhosa do Constante que o "Vijnâptimâtra Sastra"14 explica nestes termos: "O constante significa o verdadeiro que existe sem engano ou também o permanente que existe sem mudança". O "Sutra do Diamante"15 declara referindo-se também a este "Tathâgata do Corpo de Essência:" O Tathâgata não procede de nenhuma parte e não se dirige a nenhuma parte".

Se minha Mente Infinita é como este espelho, sucede o mesmo com todos os dharmas. É pela imagem que nos dá o espelho que consideramos que todos os dharmas são o céu, a terra e todos os fenômenos do universo. A substância total de todos os dharmas é o espelho límpido.

Se empregarmos uma comparação, é como fabricar todo tipo de figuras com ouro. Tomado do ponto de vista de suas formas, o diabo é temível, o Budha é venerável, o velho está cheio de rugas, um rosto jovem é belo, a garça tem patas compridas, o pato as tem curtas, o pinheiro é reto, o espinheiro é retorcido, a planta é atrativa e a flor é elegante. Do ponto de vista do ouro, o demônio é feito de ouro, o Budha também é de ouro; não há diferença entre a garça pousada no alto e o pato com suas patas curtas, também são de ouro. A flor, o vegetal, o pinheiro e o espinheiro são ouro, é a mesma substância e entre eles não existe a menor diferença.

O mesmo sucede com todos os dharmas. Ao considera-los do ponto de vista do Constante, todos são como o ouro e não encontramos neles a menor diferença; ao considera-los como todos os dharmas, apresentam todo tipo de forma. Os seres vivos são enganados por estas formas; os Budhas conhecem sua condição Constante. Uma vez que conhecemos este ouro que é o Substancial do Constante, todos os tipos de formas que parecem diferentes são na realidade homogêneas e da mesma matéria, ainda que suas diferenças existam. Não existe um demônio abominável, e os Budhas veneráveis não existem. Posto que não há nada para amar, com mais razão não há nada para odiar. Que odiais? Que amais? Que condenais? A quem venerais? O renascimento e a inveja não existem. Todas as paixões desaparecem por si mesmas, sem que tenhamos que destruí-las, porque não existem. Como a escuridão da noite que desaparece, por si só, à saída do sol, sem que se busque suprimi-la. Da mesma maneira, sem propormos a destruição da paixão ou o abandono do engano, como existe somente um único aspecto real das coisas, o engano já não se percebe.

14 - O "Vijnâptimatra-Sãstra". a Teoria do nada mais que Conhecimento. Obra de Vasubandhu, que viveu na Índia 900 anos depois da morte do Budha.

15 - O Sutra do Diamante. É uma metáfora. Chama-se Diamante Á Sabedoria, por sua solidez.

Em tempos passados, o segundo patriarca16 obteve a paz espiritual pela realização desta verdade, e o sexto patriarca17, ao conhecer esta verdade, transmitiu seus ensinamentos a seus discípulos. No "Sutra do Diamante" se lê: "As três vicissitudes (passado, presente, futuro) são imperceptíveis"; e no "Saddharmapundarika Sutra": "Todos os dharmas tem o caráter verdadeiro". Porém, isto é somente verso e reverso da mesma idéia. Assim como os três mundos são imperceptíveis, todos os dharmas tem o caráter verdadeiro, e como todos os dharmas tem o caráter verdadeiro, os três mundos são imperceptíveis. Que sublime é a palavra do Tathâgata! Deveis meditá-la cuidadosamente.

E assim, uma vez que sabemos que a Mente Infinita é permanente, liberada de produção e destruição, de ir e vir, as imagens que se transformavam sem cessar na mente se tornam também permanentes e indestrutíveis. A razão é a seguinte: as diferenças que apresentam o universo e as imagens de produção e destruição no passado, no presente e no futuro, são originalmente falsas e é por isso que não vem, nem vão, que não se produzem nem se destroem. E se não há nem produção nem destruição, nem chegada nem partida, então as diferenças tampouco existem. Deveis compreender esta razão pela comparação do reflexo no espelho. Ainda que víssemos o reflexo pela primeira vez no espelho, isto não significa que o reflexo entrou nele. Por outro lado, se o reflexo não entrou jamais no espelho, é improvável que saia. Posto que não existe originalmente nem entrada nem saída, para o reflexo o espelho sempre foi o mesmo e jamais se transformou em reflexo. Assim como um espelho reflete sem transformar-se em reflexo, toda a natureza sem pausa, é refletida claramente por ele. Quase é impossível dizer que "reflete" ou "não reflete".

Desse modo, ainda que algumas das figuras fabricadas com ouro não sejam nem um demônio nem o Budha, no entanto tomam a forma de um demônio e de Budha. Pode-se dizer que são e que não são; diz-se: "Todos os dharmas são como fantasmas". A palavra fantasma se emprega para designar os seres vivos criados pela magia. Não se pode dizer dos seres vivos criados pela magia que são ou que não são. Se dizeis que são, vos digo que não são nem pássaros verdadeiros nem animais verdadeiros, porém que são pedaços de madeira ou toalhas transformadas em seres vivos pela magia.

O mesmo sucede com o céu, a terra e todos os dharmas desses três mundos e também com os corpos humanos. Se os olhamos do ponto de vista do Substancial Original da Mente Única, são na verdade "a ausência absoluta desde a origem"; são o reino real da razão que não contém nada de pó. Portanto, nem Budha, nem os seres vivos, nem o passado, nem o presente, nem o céu nem a terra, nem um, nem o outro, existem. Só existe o mundo de um dharma que é uniforme e tem somente um caráter. É como se os objetos fabricados com ouro fossem considerados do ponto de vista do ouro. Por isso se fala do "Aspecto Absoluto da Mente18.Todos os seres vivos estão enganados pelos diversos aspectos de todos os dharmas, os desejam ao vê-los com os olhos, disputam ao ouvi-los com seus ouvidos, se apegam a tudo que percebem com o olfato, o gosto e o tato. Por isso não sabem, em absoluto, que todos esses dharmas são como sonhos, fantasmas, borbulhas, sombras, que são como imagens de um espelho, como o reflexo da lua na água, que são ilusões. Ao receber as quatro classes de nascimento: vivíparo, ovíparo, exudativo ou metamórfico, ao passar sua vida sob os quatro aspectos (da produção, do tempo, da mudança e da destruição) e ao apegar-se ao domínio dos cinco desejos todos os seres vivos criam os pecados pelos seis órgãos, depois são queimados, durante muitas miríades de kalpas, pelas chamas do inferno e, na morada dos defuntos famélicos, em cada nova vida, se submergem nos sofrimentos padecidos pelos animais ou pelos asuras. Ainda se nascem como homens, confundem seus corpos, compostos pelos quatro elementos, com o ego e dão um significado às imagens falsas de seus seis sentidos. Assim, passam sucessivamente pelo nascimento, pela decrepitude, pela enfermidade e pela morte, e conhecem alternadamente a primavera, o verão, o outono e o inverno; seus cabelos de ébano se tornam rapidamente brancos e finalmente a tez delicada de seu rosto murcha, assim como desaparecem o orvalho matinal ou o fumo do entardecer que sobe ao céu. Assim como meu corpo se transforma sem cessar, com a rapidez do raio ou da centelha, esse mundo impermanente, que se transforma continuamente, não pode deter-se nem um instante no mesmo estado.

16 - Segundo Patriarca, Hui-Ko (em japonês Yeka) 486 – 593.

17 - O sexto Patriarca, Hui-Neng (em japonês Yeno) 636 – 712. Deu caráter Chinês ao Zen transmitido por Bodhidharma.

18 - Estas duas frases se encontram no "O Despertar da Fé Mahayana" de Asvagosha.

Como a água que flui sempre e como a chama que vacila sem cessar, esse mundo e meu corpo não conhecem nem um instante de estabilidade. É justamente o aspecto do agregado das formações mentais.

No entanto, porque todos os seres vivos transmigram pelos três mundos? Porque não sabem que todos os dharmas são fantasmas é que se apegam as seis sensações, que são só sonhos e fantasmas, e cometem esses atos fantasmagóricos, que são os dez pecados maiores e os únicos pecados de condenação imediata. O fruto fantasmagórico desses atos é o inferno ou o mundo dos defuntos famélicos.

Recebemos este grande gozo porque conhecemos estes dharmas fantasmagóricos. Todos os seres vivos, ao serem enganados pelos dharmas fantasmagóricos, padecem sofrimentos fantasmagóricos. Os budhas conhecem os dharmas fantasmagóricos, se liberam dos sofrimentos fantasmagóricos, que eles transformam em gozo fantasmagórico. Extraviados pelos dharmas fantasmagóricos, os seres viventes são enganados pela produção e destruição fantasmagóricas, e padecem os sofrimentos das formações do nascimento e da morte, e também da impermanência, e criam as vicissitudes do agregado das formações mentais. Os Budhas, que conhecem os dharmas fantasmagóricos, fazem do nascimento e da morte, que não são mais que sonho e fantasma, o Nirvana. Por isso, ao suprimir o sofrimento das formações mentais, alcançam o gozo eterno.

Partindo dos sofrimentos causados pelas formações da produção e da destruição, como alcançam o gozo eterno do Nirvana? Chegam naturalmente. Os Budhas sabem simplesmente que as vicissitudes de todos os dharmas, que a lei do sofrimento e da morte, são só sonhos e fantasmas. Por isso é que o "Sutra do Conhecimento Supremo" esclarece: "Apenas reconhecendo que eram fantasmas, nos liberamos deles imediatamente". "Não existe meios artificiais para consegui-lo. Liberar-se dos fantasmas é chegar ao Conhecimento Supremo. Tampouco existe um caminho progressivo para alcançar este último". A razão é a seguinte: Os dharmas, ao não serem produzidos, quando poderiam ser destruídos? Posto que não participam nem da destruição nem da transmigração, porque não são o Nirvana sem produção nem destruição?

Ao ser o Substancial sem produção nem destruição, como poderíamos conhecer o bem ou o mal, os benefícios e as perdas? Posto que nem nascimento nem morte existem originalmente, a palavra "Nirvana" é uma palavra provisória. Pois se nem nascimento, nem morte, nem nirvana existem, as paixões e o Conhecimento Supremo não são diferentes e os seres vivos e os Budhas também não o são. A inquietude do nascimento e da morte é causa das paixões. Se as paixões não existem, também não existe o conhecimento Supremo. Se nem as paixões, nem nascimento, nem morte existem, a quem devemos chamar seres vivos? Os Budhas são seres vivos que realizaram a iluminação. Por outro lado, na origem, não havia seres vivos para realizar a iluminação, então não se convertiam em Budhas. Disto se deduz que a iluminação consiste em descobrir, com certeza, o estado original dos homens, que, então, não se extraviam. Nesse sentido, o "Sutra do Conhecimento Supremo" declara: "Sei pela primeira vez que os seres vivos são originalmente Budha". Os seres vivos tampouco devem ser chamados Budha porque não existiam na origem; no entanto, empregamos a palavra Budha para insistir no fato de que estes últimos não estavam extraviados na origem.

Portanto, ainda que eu declare que não existe nem nascimento nem morte, nem Nirvana, isto não significa que o Substancial da Iluminação Maravilhosa, que permanece impenetrável para o ignorante, não exista. É o que o "Lankâvatâra Sutra" assim define: "Assim como a natureza do cavalo não é a da vaca, a natureza da vaca não é a do cavalo". O sentido desta frase é a seguinte: ainda que, por exemplo, neguemos a natureza da vaca, isto não quer dizer que a natureza do cavalo não exista, e ainda que neguemos a natureza do cavalo, isto não quer dizer que a natureza e o Substancial da vaca não existam. Desta maneira, quando nego ao mesmo tempo o nascimento, a morte e o Nirvana, as paixões e o Conhecimento Supremo, os seres vivos e o Budha, é como quando nego a vaca. Assim, ainda que negue a vaca (ou o nascimento, a morte, e o Nirvana) isto não significa que a natureza e o Substancial do cavalo (ou a Iluminação maravilhosa e misteriosa) não existam. Isto se assemelha, por exemplo, ao que segue: quando digo ao homem que sonha que todas as coisas que vê não são reais, que o sol e a terra que vê não são reais e que tudo o que considera como ele mesmo, ou outro, como sofrimento ou prazer, não é real, ele, ao escutar isso, supõe que não há, com efeito, nem céu, nem terra, nem ervas, nem arvores, nem paises, nem ele mesmo, nem outro, e que a vacuidade é o Conhecimento Supremo. Não é nem isso nem aquilo. Com efeito, ainda que todas as coisas que vemos nos sonhos sejam ilusões que não deixam marcas e não são reais, no estado de sonho as tomamos por reais e, ao agarrarmo-nos a elas, experimentamos prazer ou sofrimento.

Em conseqüência despertai o sonhador para que conheça o céu, a terra e o mundo real durante o estado de vigília. Se disser agora ao extraviado que não existe nem nascimento, nem morte, nem Nirvana, nem seres vivos, nem Budha, acreditará obstinadamente que tudo é Nada e que o estado de Vacuidade é a Verdadeira Iluminação. Se disser ao sonhador que tudo o que ele vê é irreal, acreditará que, quando permanece em estado verdadeiro de vigília, a verdade é que o céu, a terra, o mundo, estão vazios e inexistentes. Não poderia saber exatamente o que é a iluminação, se alguma vez não nos despertarmos bruscamente do engano do sonho pela iluminação. No "Suddharmapundarika Sutra", Budha declara: "Assim permanece o formal, assim permanece a Natureza, assim permanece o Substancial, assim permanece a força, assim permanece a ação, assim permanecem as causas, assim permanecem os fatores, assim permanecem os frutos, assim permanecem as retribuições, assim permanece a existência em todas as coisas, do primeiro ao último dos caracteres precedentes". O mesmo sucede no momento em que o sonho do engano se quebra. Quer dizer: "Os dharmas descansam no Constante e o aspecto do mundo é permanente". Também da maneira seguinte: "Ainda quando os seres vejam o violento incêndio do fim dos tempos, esta terra permanecerá tranqüila e sempre cheia de deuses". Isto quer dizer o seguinte: no fim dos tempos, quando o mundo for destruído, os seres extraviados acreditarão ver o fogo surgir, de repente, do inferno, sem interrupção, e consumir todas as coisas até o céu do primeiro êxtase19 porem, aos olhos do Tathâgata Sakyamuni20, este mundo permanecerá tranqüilo, cheio de deuses e de homens, decorado com jardins, com numerosos palácios, com toda a espécie de tesouros; os seres vivos se entreterão com arvores de substancias preciosas, cobertas de flores e frutos; os deuses tocarão sem parar todas as espécies de flautas, acompanhando-se de seus tambores; convidarão os Budhas e lhes jogarão flores deliciosas; também as derramarão sobre as massas, e o Tathâgata verá outros incontáveis prazeres. Quando vê a água, o defunto famélico confunde esta água com fogo, enquanto que o homem reconhece a água como água verdadeira. Se não estamos extraviados, este mundo não é a morada do fogo dos três mundos, mas a Terra Pura. Ao contrário, para o extraviado este mundo é os três mundos e os seis caminhos, como a água é o fogo para o defunto famélico.

Alguém pergunta: "Quando escuto vossos raciocínios, em todos os detalhes, compreendo a maioria, não duvido que sou originalmente Budha e que este mundo foi sempre a Terra Pura. No entanto, quando vejo esse mundo condicionado transformar-se e que meu corpo também participa do nascimento, da decrepitude, da enfermidade e da morte, me parece que não posso ainda livrar-me dos sofrimentos das formações da produção e da destruição. Como posso livra-me destes sofrimentos das formações e chegar a desconhecer para sempre o nascimento e a morte?"

O Mestre Tetsugen responde: "Uma compreensão como a vossa se chama convicção e se deduz de uma imaginação particularizante. Ainda que se pareça um pouco com a iluminação, não é, porém, a realização da verdadeira Iluminação; não é, portanto, o despertar do sonho e da ignorância. Em conseqüência, ainda que você conheça aproximadamente a verdade, não se liberou do egoísmo e do orgulho que estão em seu corpo, de sonhos e fantasmas, e está, porém, profundamente submerso no ódio, no amor, no bem e no mal. Ao extraviar-se no país dos sonhos e dos fantasmas, você se entrega freqüentemente à discriminação entre as vantagens e as desvantagens, os benefícios e as perdas, e comete atos dignos dos três maus caminhos. Isto é inteiramente um sonho".

O "Sutra do Conhecimento Supremo" destaca: "Se conjeturamos o Conhecimento Supremo sem sair da transmigração, este Conhecimento Supremo também retorna à transmigração". Isto quer dizer que quando se busca adivinhar com a imaginação o que é o Substancial do Conhecimento Supremo, sem haver realizado ainda a iluminação, este Conhecimento Supremo se transforma também em transmigração. Se, se quer identificar realmente o Substancial da Iluminação, abandone toda a razão e toda paixão, eleve-se acima do bem e do mal, do perverso e do correto, e com uma vontade verdadeira e sólida, como tivesse que se enfrentar com uma montanha de prata ou um mundo de ferro, medite com ardor acerca de uma questão (koan), sem olhar para frente nem para trás, nem à esquerda, nem à direita, e duvide sem cessar, esquecendo-se de dormir, de comer, do frio e do calor; ao chegar a hora, quebrará o recipiente cheio dessa laca (espessa e negra) que é a ignorância de toda a eternidade. E então, despertará pela primeira vez do sono da noite longa, aplaudirá e rirá; realizará seu Rosto Original, o Reino próprio e a idéia buscada desde muitas miríades de kalpas. Somente é difícil destruir a ignorância quando não se tem a verdadeira e grande aspiração.

19 - O Céu do Primeiro Êxtase: o mundo do formal é superior ao mundo dos desejos e os seres aleijados do desejo habitam nele. Esse mundo é distribuído em quatro planos, de acordo com a profundidade do êxtase.

20 - Sakyamuni (mais ou menos (563-483 a.C.). Fundador do Budismo, nascido na família de um rei dos sakyas, Suddhodhana, que reinava em Kapilavastu, nos confins do Nepal. Muni significa tranqüilidade. Se chama Budha porque tem o conhecimento.

Em outros tempos, o Venerável Tchang-chuei21, ao duvidar sobre o significado desta frase do "Surangama Sutra": "Porque o puro Substancial das Origens se revela de repente aos nossos olhos como se fosse a Natureza?", perguntou o mestre Hui-ko22 a Lang-sie: "Que quer dizer: porque o puro Substancial das Origens se revela de repente aos nossos olhos como se fosse a Natureza?".

Lang-sie respondeu: "Porque o Puro Substancial se revela de repente aos nossos olhos como se fosse a Natureza". Tão logo escutou esta resposta, Tchang-chuei realizou, de repente, a grande iluminação, como se o fundo do balde se houvesse se houvesse se desprendido. Encontrava-se precisamente no estado onde transcendeu esse agregado das formações mentais.

A significação dessa frase do "Surangama Sutra" é a seguinte; quando o Venerado do Mundo declarou à assembléia do Surangama: "Este mundo é originalmente a Terra Pura do puro substancial", o venerável Purna23 lhe perguntou: "Se esse mundo é a terra do puro Substancial, como vós chamais ao Tathâgata, porque ele sonha, de repente, todos os aspectos condicionados da Natureza, que passa pelas vicissitudes da produção e da destruição?". Tchang-chuei, havendo despertado previamente do sono do agregado das formações mentais, duvidava profundamente do sentido dessa frase. Então, formulou a pergunta e, quando Lang-sie respondeu, despertou desse sonho pela primeira vez e descobriu o Plano do Substancial Puro.

Em outros tempos, um monge perguntou a um mestre antigo: "Que posso fazer se não tenho paz por causa da produção e da destruição?" O mestre respondeu: "Tem que se converter imediatamente em cinza fria e árvore seca!" E o monge voltou a perguntar a outro mestre a mesma pergunta. O mestre respondeu: "Tolo! Onde há produção e destruição?" Tão logo escutou essas palavras, o monge realizou a grande iluminação.

Estes exemplos mostram o estado dos homens que se harmonizaram com o Reino Original pelo agregado das formações mentais.


DO QUINTO AGREGADO

Os outros quatro agregados têm como base a consciência material, impressões, conceitos e formações mentais. A consciência dá vida aos três mundos e aos seis Caminhos, dá vida a tudo, desde o corpo dos homens até os fenômenos do universo, ao céu, a terra, ao espaço; quer dizer que é a origem dos enganos. Ainda que a consciência seja a Mente Infinita em sua totalidade e não haja diferença entre os dois, chamamos consciência em virtude dos problemas criados pela ignorância. Se não estivesse entorpecida pela ignorância, se chamaria Mente Infinita, Kuei-fong disse: "As consciências são como fantasmas e os sonhos; só existe a Mente Única".

Quando falamos de consciência, existe fantasma, como quando um mágico, por exemplo, de um pedaço de madeira faz toda espécie de pássaros e animais. Ainda que o pedaço de madeira pareça na verdade transformar-se em seres vivos, que voam e correm, é sempre um pedaço de madeira e não se transformou em pássaro nem em animal. É o poder da magia que nos mostra como se houvesse sido transformado, quando na realidade não houve mudança. Desta maneira, ainda que a consciência, em virtude do poder da magia e da ignorância, mostra a Mente Infinita como se mudasse de caráter, o Substancial da Mente Infinita, porém, não muda.

21 - Tchang-chuei (em japonês, Tchô-sui): Um monge da escola Avatamsaka (Kegon), durante a época dos song.

22 - Hui-ko (em japonês, Ye-kaku); Um mestre Zen da escola Lin-Tsi. Viveu na primeira metade do Século XI.

23 - Pûrna: um dos dez grandes discípulos de Budha. Era o melhor predicador

A consciência se parece também com uma pessoa adormecida. Se esta última não dorme, não pode sonhar. Quando dorme, tem todo tipo de sonhos e toma como realidade toda espécie de coisas que não existem. O mesmo sucede com a consciência. Quando ela é a Mente Infinita chegada das origens, e não está adormecida pela ignorância, as distinções que existem nos três mundos, bem como os seis caminhos, ou o inferno, ou o mundo dos deuses, ou ainda o mundo onde vivemos, não existem.

Em conseqüência a que opormos o Paraíso? Posto que originalmente nem nascimento nem morte existem, não se pode falar de Nirvana. Postos que as paixões tampouco existem na origem, não tem sentido buscar o conhecimento Supremo. Se não há seres vivos na origem, não temos que nos converter em Budha. Se a mente não se extraviou em absoluto, que iluminação temos que realizar agora? Tudo é assim! Que magnífico, inefável, é o Substancial da Mente Infinita!

Ao insistir em seus caracteres, o chamaremos o Reino próprio, ou nosso Rosto original. Quando o sonho da ignorância cobre o nosso Rosto original, dizemos que há ignorância fundamental. É o começo dos enganos. Ao reinar esse sonho da ignorância fundamental, temos todo tipo de sonhos. Primeiro acreditamos que o espaço existe, acreditamos que também que o céu e a terra estão no espaço, que todas as coisa estão no céu e na terra, que os homens estão entre as coisas, eu e o outro estamos entre os homens, e que estão os pássaros, os animais, a lua e as flores.

De maneira que cada um tem coisas que odeia, que ama, que acha agradável ou desagradável. Ao ter, cada um, alguma coisa que desejar, ou que lamentar, sonha com toda espécie de paixões, no total de 84.000. Por causa dessas paixões, matamos seres vivos, roubamos, nos entregamos à luxúria, mentimos e cometemos toda espécie de outras más ações.

Se cometermos essas más ações, caímos em um destes maus caminhos: o inferno, os defuntos famélicos, os animais; somos queimados pelas terríveis chamas durante inumeráveis kalpas, ou bem os ossos são aprisionados nos gelos do grande inferno do Lótus Vermelho24, ou também, padecemos sofrimentos insuportáveis do Caminho dos defuntos famélicos, no qual nem sequer ouvimos falar de alimentos ou bebida durante milhares de kalpas e onde, quando encontramos água e procuramos bebê-la, esta se transforma em fogo e sentimos terríveis dores, como se a garganta estivesse abrasada.

Todos esses sofrimentos são as formas tomadas pelo sonho, no sonho da ignorância. Entretanto, se alguém renuncia às suas más ações e se observa as cinco proibições25 e os dez mandamentos do bem26, se libera dos três maus caminhos, obtém a oportunidade de renascer homem ou deus. Renasce, portanto, para ser feliz em sua nova vida e terá mais ou menos prazeres, segundo a qualidade de suas boas ações nesta vida. No entanto, todos esses prazeres pertencem aos três mundos e estão incluídos no sonho do que dorme na ignorância; por conseguinte, ainda que sejam passiveis de gozo, não são verdadeiros prazeres. Ainda que, no fundo, sejam sofrimentos, são tomados como prazeres por causa dos extravios. Com mais razão, como existem oito dores no homem e cinco ocasos nos deuses, e em conseqüência os sofrimentos não cessam, não tem sentido o querer prolongar a estada neste mundo que, ao contrário, temos que abandonar rapidamente.

Quando um homem que compreendeu isto sabe que os prazeres do mundo dos humanos e dos deuses formam parte, apesar de suas aparências, do ciclo dos seis caminhos que são prazeres condicionados e impermanentes e que, em conseqüência são falsos prazeres que pertencem ao sonho da ignorância; quando este homem desperta a crença na grande verdade e pratica a meditação sentada, os três estados - do bem, do mal e do indefinido – aparecem em seu coração.

Os bons pensamentos são o bem. Os maus pensamentos que flutuam no coração são o mal. O indefinido não é o bem nem o mal, mas um estado diferente do coração. Estas três classes de pensamentos surgem sem cessar, alternadamente, no coração do homem. Algumas vezes não pensa no mal, senão no bem; outras vezes não pensa no bem, mas no mal. Quando, por um momento, nem os bons pensamentos nem os maus ocupam sua mente, esta está ausente e num estado de indiferença. Estes maus pensamentos são as sementes do inferno, dos defuntos famélicos, dos animais; os bons pensamentos são as sementes dos homens ou do mundo dos deuses. O indefinido é o estado do tolo e do ignorante, os quais não distinguem o mal do bem.

24 – O Inferno do Lótus Vermelho; A carne que caiu neste inferno, se desloca como o Lótus vermelho sob o efeito do frio.

25 – As cinco proibições: assassinato, roubo, luxuria, mentira, e uso de drogas.

26 – Os dez mandamentos do Bem: não-matar, não-roubar, não-luxuria, não-mentira, não-linguagem grosseira, não-calunia, não-charlatanice, não-inveja, não-ódio, e não-erro.

O iniciante que não tem ainda entusiasmo pela meditação sentada é, assim, vítima do bem, do mal ou do indefinido. Suas disposições para a meditação sentada se acentua quando afirma progressivamente sua vontade, sem ter em conta o surgimento desses pensamentos, e pratica a meditação sentada sem tédio. Às vezes, quando já não tem nem maus nem bons pensamentos, e não está no estado indefinido, sua mente se clarifica como espelho polido ou como água límpida. Isto dura alguns instantes. É o sinal, efêmero como orvalho, de que a mente se encontra disposta para a concentração.

Se tivermos uma experiência semelhante, devemos praticar mais ardentemente a meditação sentada. Se a praticamos sem cessar e sem negligência, nossa mente, que se purifica por pouco tempo a princípio, fica cada vez mais purificada e permanece pura durante um terço ou dois terços do tempo da meditação sentada.

Sucede também que o nossa mente permanece pura desde o começo até o fim da meditação, sem que nem um só mau ou bom pensamento surja, sem que o estado indefinido o invada, que permanece pura como o céu claro de outono ou como o espelho polido sobre seu pedestal; então nossa mente é semelhante à vacuidade do espaço e nos sentimos como se o mundo do dharma existisse em nosso peito, como se uma frescura incomparável reinasse em nós. Mais da metade do caminho da meditação sentada está feito. Isto se chama na escola Zen: "Resumir tudo em um", "A situação de uma só côr27".

No entanto, quando este estado continua algum tempo, o iniciante crê que realizou a Iluminação, e que é igual a Sakyamuni e a Bodhidharma28, Porem é um grande erro.

Haver chegado a este ponto é encontrar o quinto agregado. É o que o "Surangama Sutra" chama: "entrar na calma e unificar-se com ela é estar à beira da consciência". Quando, ao praticar firmemente a meditação sentada, nos encontramos nesta situação, imediatamente acreditamos que já realizamos a Iluminação – que se pode comparar com aquelas de Lin-Tsi e Tö-chan -, e proclamamos aos gritos que obtivemos o Rosto Original, que alcançamos o Reino Próprio. Nos comportamos como se fossemos um Mestre Zen, ao conceder amiúde a outros o certificado que lhes permite propagar o Zen, ao golpear com o bastão ou ao gritar. Porém, este tipo de gente não conhece ainda a experiência interior do Budha e dos Patriarcas do Zen, e não chegam porém à origem da Mente Única. Sem chegar sequer a esta situação, alguns compreendem a Doutrina e crêem que alcançaram a Iluminação; outros também reconhecem a Iluminação naquele que faz mover os olhos, sua boca, trabalhar suas mãos e suas pernas. Todos estão muito distanciados da Mente do Budha e dos Patriarcas Zen.

Pois bem, aquele que, enganado pela consciência, se acredita Iluminado é muito diferente daqueles que tem conhecimentos superficiais. Ainda que seus exercícios o tenham feito progredir até aqui, por que se aproxima da Verdade, não sabe transcender esta consciência; enganado por esta última, a confunde com a Mente Infinita. É porque seus exercícios não são todavia suficientes.

O "Surangama Sutra" declara: "O estado onde todas as discriminações desaparecem não é nem a matéria nem o vazio". A escola Gosari29, em sua cegueira, crê alcançar a iluminação mística, "porém separar-se das condições dos dharmas é perder a essência mesma do entendimento"; e diz mais: "Ainda se guardamos dentro de nós uma tranqüilidade profunda, ao aniquilar a observação e a percepção, o reflexo da discriminação causada pela poeira dos dharmas30 está ali ainda".

27 – Visvabhadra: Este e Manjusri são os dois Bodhisatvas que ajudam na instrução do Tathâgata. O primeiro está encarregado da prática e o segundo da sabedoria.

28 - Bodhidharma (em chinês, Pú-ti Ta-mo; em japonês, Bodai-Daruma): O primeiro Patriarca da Escola C´han na China. Nasceu no Ceilão e chegou à China no princípio do século VI.

29 – A Escola Gosari: um dos dez herejes, na Índia, fora do Budismo.

30 – A poeira dos dharmas: um dos seis pós. Os objetos em relação à consciência.

Um antigo mestre explica o assunto assim: "Muitos sábios terminam por ser enterrados e conservam essa serena tranqüilidade. Em meu parecer, é pela conservação da tranqüilidade que os Confuncionistas do Song31 se apegavam ao estado da alma de onde não surge nenhum sentimento de gozo, de cólera, de tristeza ou de prazer32. É somente nesta conservação desta tranqüilidade que Lao-Tsé33 insiste para chegar ao fundo do nada e observar a tranqüilidade e a serenidade. A concentração na qual entram os Arhat34 e os Budhas-para-si do budismo, do mesmo modo que o fruto de sua Iluminação, não se deve mais que à conservação da tranqüilidade da mente e a isso somente".

Os Budhas e os grandes mestres do Zen falaram do mesmo modo ao mostrar a ausência de reflexão e de pensamento depois de haver-se abandonado a discriminação causada pela percepção.

O estado onde já não há reflexão nem pensamento, claro como um céu sereno, é a Oitava Consciência35 dos seres vivos e esta é a causa dos enganos dos três mundos e dos seis caminhos. Por causa desta consciência, os seres vivos tem imaginado o céu, a terra, o espaço, e todos os seres animados e inanimados que ai se encontram, da mesma maneira que vemos os sonhos mais diversos ao dormir.

É nesse sentido que Budha declara: "Os três mundos são simplesmente uma consciência". E é também neste sentido que declara: "A Oitava consciência é a condição das cinco sensações, do germe e do mundo-receptáculo36". O "Surangama Sutra" destaca também: "O Adâna é uma consciência sutil e cria a força do hábito, que é como uma torrente violenta. Não explico sempre este assunto porque temo que o ignorante se extravie entre a verdade e o erro".

Um antigo mestre comenta: "Se Budha declara este estado somente, como a verdade, o ignorante não se esforçará em seguir suas práticas, mas cairá no orgulho.

Se o Budha declara este estado somente como erro, o ignorante desesperará de si mesmo e acreditará que tudo terminará no momento de sua da morte. Por conseguinte, o Budha não explica sempre este assunto aos ignorantes e aos dois Veículos".

Ainda que esta consciência se pareça com a verdadeira Mente Infinita, não é esta Mente; por isso Budha não a explica imprudentemente aos tolos. A razão é a seguinte; se o Budha declara que esta consciência é a verdade, o ignorante se deterá aí e, encontrando-se satisfeito, não se esforçará em prosseguir com suas práticas. Se o Budha declara que a consciência é um erro, o ignorante suporá então que tudo é vazio somente e que a Mente Infinita não existe, de modo que terminará crendo que se acaba com a morte e não poderá conhecer verdadeiramente a Mente Infinita.

Por conseguinte, esta situação é muito importante e o Budha não a explica imprudentemente.

Ainda que esta consciência seja totalmente a Mente Infinita, não podemos chamá-la de Mente Infinita porque o sonho da ignorância se apega a ela. Ainda que não possa chamar-se Mente Infinita, não é totalmente um engano, porque todas as ilusões já foram abandonadas nesta situação.

Se o praticante chegou a este ponto, deve continuar praticando mais ardentemente. Já se mostram os sinais da aparição que está próxima à verdadeira Iluminação. Podemos dizer que está no momento em que a noite clareia, porém ainda não saiu o sol. Ainda que as trevas se tenham dissipado, o praticante não sabe como desaparecem nem como o mundo inteiro se clareia. Se deixarmos de lado os exercícios e tomarmos esse clarear das trevas como final, não poderemos encontrar o sol. Deixarmos de lado nossos exercícios e tomarmos o clarear das trevas da ilusão e a limpidez do estado de nossa alma como a realização da Iluminação, não poderemos encontrar o sol da Sabedoria.

Saibam bem que este estado não é ainda a verdadeira Iluminação, ainda que as trevas da ilusão se tenham dissipado. Sem deixar de lado este estado, sem regozijar-se nele, sem permanecer à espera da Iluminação, e ao ficar somente em um estado sem reflexão nem pensamento, continuar praticando com todas as nossas forças. Então, de repente, a verdadeira Iluminação aparecerá e iluminará todos os dharmas, como se cem sóis saíssem de uma só vez.

31 – Os Confuncionistas do song: Tcheu Tuen-yi, Tchang-Tsai, Tch´eng Hão, tch´eng YI,. tchen Hi, etc.

32 – Encontramos esta frase em: "O meio Invariável" , de Tsen-sen.

33 – Lao-Tsé (VII a.C.): Filosofo chinês e fundador do Taoísmo.

34 – Os Arhat: aqueles que realizam a Iluminação do pequeno veículo. Os que destruíram todas as paixões.

35 – A Oitava Consciência: É o Alayavijñana que significa "sem submersão", do ponto de vista da escritura, ou "tenda", do ponto de vista do sentido. Encerra o amor à Unidade, o esforço pelo qual cada coisa procura perserverar em seu ser. Este esforço é o germe de todas as coisas.

36 – O mundo-receptáculo: o mundo exterior sobre o qual os seres vivos se apóiam.

Isto se chama "Converte-se em Budha ao ver a sua própria natureza" ou "A grande Iluminação e a grande penetração" ou "O gozo do aniquilamento". Então encontraremos todos os Budhas do passado, do presente e do futuro ao mesmo tempo e conheceremos a essência de Sakyamuni e de Bodhidharma, encontraremos a Natureza própria de todos os seres vivos, penetraremos até a origem do céu, da terra e de todas as coisas. O grande gozo desse momento é inefável. Por isso, o "Surangama Sutra" declara: "Em uma limpidez extrema, a luz penetra por todos os lados. Uma paz luminosa banha todo o espaço. Ao voltarmos ao mundo, acreditamos haver sonhado. Quando esta Iluminação é realizada, toda a natureza é o Substancial da Natureza e do Corpo de Essência, onde a calma e a Iluminação não estão separadas, e no Universo não existe nada que não seja minha Mente Infinita".

Assim, no "Surangama Sutra" se lê: "Ainda que a sensação ótica e a condição que lhe é exterior pareçam objetos que aparecem diante de nós, não são profundamente senão a nossa Iluminação". Indica os outros órgãos dos sentidos somente pelo órgão da visão. A condição exterior à sensação ótica significa o campo dos seis órgãos dos sentidos, que são iguais ao pó e a todos os dharmas. Desta maneira se explica que meu corpo e também todos os dharmas não são senão o Substancial da Mente Infinita e da Iluminação sublime. Disto se diz: "Mudar a terra em ouro e fazer do largo rio um creme ao batê-lo. Aí está o verdadeiro Paraíso".

Em outros tempos, um monge perguntou a Yun-men: que fazer quando não surge nenhum pensamento?" Yun-men respondeu: "O monte Sumeru". Outro monge perguntou a Tchao-tcheu: "Que fazer quando não trago nada?" Tchao-tcheu disse: "Abandona". O monge perguntou de novo: "Não trago nada. Que é que devo abandonar?" Tchao-tcheu respondeu: "Se não podeis abandoná-lo, caminha com ele". Tão logo Tchao-tcheu pronunciou estas palavras, o monge realizou a grande Iluminação.

Um desses monges dizia: "Nenhum pensamento surge". O outro: "não trago nada". Os dois haviam chegado ao domínio da não-reflexão e do não-pensamento. Confundiam este estado com a Iluminação, e foi nesse sentido que perguntaram a Yun-men e Thao-tcheu. Estes últimos responderam como fizeram porque sabiam que esses monges eram enfermos espiritualmente. Com esse "Monte Sumeru" e esse "Abandona", chegareis ao mundo original e podereis encontrar com os Yun-men e os Tchao-tcheu. Meditai bem e chegareis a esse mundo. Por isso um ancião disse: "Levante a mão da borda do precipício e faça a experiência você mesmo. Se ressuscitar depois da morte, ninguém poderá te enganar". E outro disse: "Ao chegar à extremidade de uma vara de cem pés, dá ainda outro passo e manifeste vosso corpo intacto ao mundo inteiro".

Essas frases explicam o estado no momento em que esta Iluminação se realiza. Medite bem e pratique o Zen, e alcançará esse estado. Não caia por erro na armadilha do lobo.




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