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O Espelho Mágico que Elimina a Dúvida por Lama Sönam Tsering
(Lama Sönam Tsering é um meditador e professor da escola Nyingma do buddhismo tibetano. Nascido no norte do Tibet, ele foi para a Índia após a tomada comunista chinesa em sua terra natal, em 1959. Mais tarde, após imigrar para Boudhanath, Nepal, Lama Sönam estudou durante oito anos no Centro Nyingma para Estudo e Prática. Em seguida, ele foi aos Estados Unidos em 1983, a convite de Chagdud Tulku Rinpoche. Como o atual lama residente do Dechen Ling, o ramo do Chagdud Gonpa em Oregon, Lama Sönam freqüentemente viaja e ensina tanto a filosofia quanto as artes rituais em vários centros buddhistas na costa oeste dos Estados Unidos.) A atitude com a qual nos aproximamos dos ensinamentos do Dharma determina seu significado e relevância para nós. A motivação correta para estudar o Dharma é muito diferente da motivação ordinária para perseguir interesses mundanos. O Caminho da Compaixão Há muitas maneiras de se praticar e muitos fatores diferentes que constituem uma prática de sucesso. Um dos mais importantes é a compaixão. O significado buddhista do termo "compaixão" é diferente do significado comum. A maioria das pessoas usa a palavra de um modo muito limitado para comunicar o sentido de sentir dó, ou pesar, por uma pessoa ou situação específicas. Esse tipo de compaixão existe em todo lugar no mundo. Todo ser a experimenta em algum grau. Isso não é para denegri-la, contudo. Os dez tipos de atividade virtuosa que resultam, por exemplo, em alcançar um nascimento humano são motivados por este tipo de compaixão limitada. Mas quando nossa meta é despertar para o estado búddhico, nossa compaixão deve ser muito maior do que a compaixão ordinária através da qual alcançamos um corpo humano. Mesmo animais ferozes como leões, tigres e leopardos têm um grau de compaixão por sua cria. Logo, ter esse tipo de compaixão não nos distingue, como praticantes, de outros seres sencientes. Todo ser senciente tem algum nível de compaixão rudimentar pelos outros. No contexto do Dharma, a verdadeira compaixão é completamente livre de preconceitos e tendências e é toda abrangente; é sentida universalmente por todos os seres sem exceção. Em última instância, é referida como vacuidade imbuída com o coração da compaixão, no sentido de que a realização da vacuidade e da compaixão toda abrangente, espontânea e desobstruída são virtualmente idênticas. Não podemos experienciar uma sem a outra. Num certo sentido, até que tenhamos verdadeiramente realizado a impermanência, a natureza fundamental da mente, não teremos realizado verdadeiramente a compaixão e, portanto ela não será completamente autêntica ou desobstruída. Isso não significa que nesse ínterim não devamos tentar desenvolver esse tipo de compaixão. A questão é desenvolvê-la de uma maneira livre de preconceitos em relação a todos os seres, sem qualquer divisão arbitrária em nossas mentes. De maneira última, quando descobrimos a verdadeira natureza da mente, experimentaremos espontânea e plenamente aquela compaixão autêntica, e não apenas com nossos pais, com nossos filhos ou com aqueles de quem gostamos. Muitos dizem, "Eu consigo ter compaixão por todos os seres lá fora, mas não com a pessoa sentada aqui do meu lado". Mas ter compaixão por todos os seres significa todos os seres. É nesse vasto sentido que falamos de compaixão dentro do contexto do Dharma. Ter compaixão verdadeira requer uma diferenciação, ter uma perspectiva maior da situação na qual estamos exercendo a compaixão. Quando uma criança está brincando perto de um precipício, os pais precisam da diferenciação para ver além do mero fato de que a criança está brincando; eles precisam reconhecer que a criança está brincando perto de uma área perigosa e que deve ser removida dali. A criança é claro, está absorvida na brincadeira e não tem essa visão mais ampla. Do mesmo modo, quando estamos desenvolvendo compaixão, precisamos estar cientes não apenas da situação imediata, mas também das causas que levaram àquela situação e os eventos futuros que podem resultar dela. Com essa perspectiva maior, podemos responder mais efetivamente. De outra maneira, se apenas vermos a situação imediata, tendemos a cair em compaixão ordinária. A motivação é um estado mental e a tradição buddhista dá total importância à mente. Por que ela é tão crucial? Porque a experiência dos fenômenos está enraizada na mente do indivíduo que a está experimentando. Podemos pensar na nossa mente como um campo que deve ser adequadamente preparado e lavrado para que uma safra possa ser plantada e crescer forte. Fazer prática espiritual é como plantar sementes num solo bem preparado e lavrado. Por assim dizer, quando nos empenhamos na prática, nossa mente deve estar bem preparada: muito límpida e clara, não agitada ou em tumulto devido a preocupações mundanas. Se o campo não está adequadamente preparado, as sementes não crescerão e não haverá uma boa colheita. Do mesmo modo, se não assentamos a fundação de uma mente bem preparada para a prática, então não importa o número de professores que tenhamos ou o número de instruções especiais que tenhamos recebido deles, as sementes não crescerão. Isso não é assim porque os professores ou os ensinamentos não tenham valor ou poder, mas porque não tomamos o tempo para preparar o solo: preparar nossa mente como um vaso que possa receber os ensinamentos. Cultivando a Receptividade aos Ensinamentos Nos Sutras e Tantras, há um número de discussões a respeito da maneira adequada para ouvir os ensinamentos do Dharma. Mas todos eles convergem para o fato de que, se ouvirmos com fé, visão pura, respeito e devoção pelo professor e pelos ensinamentos, se nosso foco for dirigido para o interior, no sentido de que contemplamos como aplicar os ensinamentos diretamente em nossa própria mente e emoções, então iremos naturalmente nos beneficiar. Por outro lado, se nos aproximarmos dos ensinamentos de uma forma analítica ou crítica, comparando o que o professor está dizendo com o que lemos num livro ou com o que outro professor tenha dito, ou se nos preocuparmos com qual tradição ou filosofia o professor está expondo, então estaremos tratando os ensinamentos como uma palestra de universidade. Estamos reduzindo-os ao nível de qualquer campo de conhecimento humano, como ciência ou arte. A questão sobre os campos ordinários de conhecimento é que não importa o quão velhos, veneráveis ou raros eles possam ser, não importa o quão importante eles sejam para o nosso bem estar físico, eles se aplicam apenas para essa vida, para esse período. Desde um tempo sem princípio, os seres através dos seis reinos têm desenvolvido campos de conhecimento, tradições e costumes. Não há nada particularmente extraordinário sobre isto: é apenas a forma como a existência cíclica se desdobra. Mas eles conseguem beneficiar os seres num sentido relativo. Eles não trazem benefício definitivo da maneira com que os ensinamentos do Dharma fazem, permitindo que os indivíduos escapem dos intermináveis ciclos de morte e renascimento que podemos chamar de samsara, o sofrimento da existência cíclica. Logo, ao invés de uma aproximação intelectual aos ensinamentos, tome as palavras de coração. Diz-se na tradição Sutra do buddhismo que, quando ouvimos os ensinamentos, deve-se evitar quatro idéias errôneas: pensar no lama como um veado almiscareiro, no Dharma como o almíscar, em si mesmo como um caçador e na prática árdua dos ensinamentos como atirar flechas ou usar armadilhas ou outras maneiras de matar o veado. Ao invés, deve-se empregar as quatro idéias corretas: pensar em si mesmo como uma pessoa doente, no Dharma como um remédio, no professor espiritual como um médico habilidoso e na prática árdua dos ensinamentos como a cura da doença. Na tradição Vajrayana, diz-se que ao ouvir os ensinamentos, deve-se visualizar a si mesmo como uma deidade, tal como Manjushri, o bodhisattva da sabedoria, de modo a desenvolver uma noção da situação na qual o ensinamento está tomando lugar. O ponto de vista dos cinco aspectos da excelência: o momento excelente, o professor excelente, o local excelente, a audiência excelente e o ensinamento excelente; desse modo, amadurece. A pessoa se beneficia da aproximação ao ensinamento dessa forma, com fé e visão pura. Conforme isso aumentar, as palavras do Dharma passarão a ter significado para nós. Não mais nos acharemos na mesma posição anterior, como uma pessoa leiga ouvindo um grupo de especialistas sem entender o seu campo de especialidade. Quando nos aproximamos dos ensinamentos de uma forma orientada pelo Dharma ao invés de com uma atitude mundana, eles terão mais impacto sobre nós. A Fé Muitas pessoas dizem ter dificuldade com a fé, que a fé parece requerer algum tipo de submissão ou depositar toda a confiança numa outra pessoa. Mas devemos considerar o assunto como um passo mais profundo, porque a questão da fé, em última instância, reduz-se à verdadeira natureza da nossa própria mente. Todos nós temos uma mente. Os ensinamentos buddhistas falam da essência da mente como tathagatagarbha, ou natureza búdica. O fato de que todos nós temos a essência significa que todos nós temos o potencial para nos tornarmos buddhas. Como praticantes, estamos desenvolvendo os meios para alcançar o estado búddhico nesta vida. Nosso obstáculo mais fundamental é que não acreditamos realmente que as qualidades perfeitas dos três kayas do estado búddhico são o solo básico do nosso ser, a verdadeira natureza de nossas mentes. Para usar uma analogia, há uma fé básica entre cultivadores de arroz de que se eles plantarem arroz, eles irão colher arroz. Isso pode soar prosaico, mas envolve, de fato, um senso de confiança. Eles sabem que no interstício eles terão que aguar, fertilizar, capinar e cultivar, mas eles estão confiantes de que se plantarem arroz irão colher arroz no final da estação. Do mesmo modo, uma vez que reconheçamos o potencial que é o solo básico do nosso ser, entramos num processo de revelá-lo. Temos uma confiança básica de que aquilo com o que começamos é aquilo com o qual iremos terminar, exceto de que no final isso será mais evidente para nós. Assim como o fazendeiro deve passar pelo processo de plantar arroz e então cultivá-lo, devemos praticar meditação. Devemos cultivar os diferentes níveis do caminho com o conhecimento de que iremos revelar a natureza inerente do nosso ser como ela é - a perfeita completude dos três kayas. Quando temos esse tipo de convicção, isso indica a fé nos ensinamentos, a fé no caminho e a fé na meta. Cultivar esse tipo de fé requer esforço. Quando o Buddha estava passando para o nirvana, suas últimas instruções para seus estudantes foram "Eu lhes mostrei o caminho da liberação. Sua própria liberação depende de seus próprios esforços".Talvez então, para aqueles que têm problema com a fé, é mais fácil pensar na mesma da perspectiva de nosso auto-esforço. O não reconhecimento de nosso despertar intrínseco nos impede de perceber diretamente essas qualidades inerentes. Ter convicção de que elas existem dentro de nós como nossa própria natureza verdadeira é o tipo de fé que precisamos desenvolver. O Significado de "Buddha" As pessoas que ouvem a palavra "buddha" automaticamente associam-na com o buddhismo, porque a tradição foi nomeada após a figura histórica do Buddha Shakyamuni, que a fundou. Mas ainda que seja um termo buddhista, não é isso que a palavra implica. Não se refere simplesmente a um indivíduo histórico cuja forma foi marcada com as trinta e duas marcas maiores e oitenta marcas menores da perfeição física, e que ensinou um grupo de ensinamentos que conhecemos como o Buddhadharma. O termo sânscrito "buddha" é traduzido para o tibetano como "sang-gye". Sang significa a clarificação ou dissipação dos dois níveis de obscurecimentos e a padronização habitual baseada nesses obscurecimentos. O termo gye significa "desdobrar" ou "expandir", no sentido de que todas as qualidades positivas inerentes foram realizadas em toda a sua plenitude. Qualquer um que tiver clarificado seus obscurecimentos e hábitos padronizados, e que portanto tiver realizado o completo desdobrar de todas as qualidades positivas, é um Buddha, seja ele o Buddha Shakyamuni ou outra pessoa. Julgando os Outros Determinar a extensão à qual alguém revelou sua natureza búddhica é muito enganador porque não é algo que podemos verificar com nossos sentidos, assim como a mente ordinária não é algo que possamos perceber com nossos sentidos. Desde um tempo sem princípio, nosso fluxo mental passou por diversos renascimentos, mas nenhum jamais viu a mente. Tampouco podemos ver os três venenos do apego, aversão e ignorância que tomam conta da mente – vemos apenas os produtos ou sintomas. Portanto, é muito difícil avaliar outra pessoa a partir de nossa perspectiva limitada. Por exemplo, suponha que eu conheça apenas duas pessoas no mundo todo, digamos Pema e Karma. Alguém bateu em minha porta e eu disse, "Você é o Pema?", a pessoa respondeu "Não" e eu pensei comigo, "Então deve ser o Karma". A pessoa na porta poderia ter sido qualquer uma de um bilhão de pessoas, mas eu penso, na base de minha experiência limitada, que deve ser o Pema ou o Karma. Desta forma, temos a tendência de ver as coisas em preto e branco. Elas devem ser de um jeito ou de outro. Uma pessoa é completamente iluminada ou não é iluminada. Mas temos que perceber que há muito cinza no espectro. O perfeitamente desperto Buddha Shakyamuni disse, "Apenas eu, ou alguém como eu, pode realmente avaliar plenamente um indivíduo". Essa afirmação deve nos lembrar de que não sabemos tudo, de que nossas decisões e julgamentos instantâneos estão baseados em nossos preconceitos e tendências. Em um momento de sua vida, o grande Dudjom Lingpa do século XIX teve um sonho no qual uma dakini indicou a ele que treze dos seus estudantes alcançariam o corpo de arco-íris, a iluminação completa, durante a sua vida. Quando ele despertou ele decidiu perguntar a outro lama sobre a autenticidade do sonho. Agora, Dudjom Lingpa é honrado como ele deveria ter sido - ele era maltrapilho e pobre, parecendo um pouco como um mendigo conforme ele viajou pelo mundo. Quando ele foi ao lama e contou-lhe seu sonho, outra pessoa que também tinha vindo para ver o lama caiu na risada e disse "Você terá treze estudantes desse porte? E o cachorro dormindo na esquina – quantos estudantes ele terá assim?" Por causa de Dudjom Lingpa ser como ele era, essa pessoa pensou que poderia fazer um julgamento rápido. Claramente, as qualidades de Dudjom Lingpa como um mestre realizado eram tão enormes que elas não precisam nem ser discutidas. Qualquer um que tenha tido acesso aos seus ensinamentos terma e tenha sido afortunado em praticá-los, está ciente da imensa benção que eles contém. E ainda assim, por causa da aparência de Dudjom Lingpa, essa outra pessoa sentiu que ele não passava de um vagabundo maltrapilho, incapaz de ter estudantes de alto nível. Mudando nossa Visão Alguns praticantes vêm ao Dharma com uma grande dose de ingenuidade, esperando que tudo seja maravilhoso. Quando eles começam a praticar, eles pensam "Ó, a comida é tão deliciosa e todo mundo é tão simpático e o sol está brilhando e é tão acalentador!" Mas não é isso que é a prática. Os eventos superficiais que estão tomando lugar no ambiente não são o coração da meditação. Os praticantes também podem ter sonhos que eles achem significativos ou ter uma sensação particular quando eles meditam que eles achem maravilhosa ou experimentem um tipo particular de felicidade ou tristeza que eles achem significativo. Mas essas coisas não são nada para se excitar; elas ocorrem o tempo todo mesmo. Tomá-las como um indicador de uma prática real é perder o fio da meada. Lembre-se, de novo, que nem sempre temos a visão perfeita do que está acontecendo. Nosso conhecimento é limitado. Se perguntássemos para qualquer ser humano qual é o propósito do sol, esta pessoa responderia que é uma fonte de iluminação e calor. Mas se perguntássemos a uma coruja qualquer no planeta a mesma questão, tal coruja responderia "Ele torna tudo difícil de enxergar". Os humanos pensam estar certos; as corujas pensam estar certas. A questão aqui é que diferentes seres têm diferentes visões da realidade, nenhuma das quais é a verdadeira natureza da realidade. Pode haver certos aspectos do ensinamento que novos estudantes não absorvem de coração. Por exemplo, os ensinamentos dizem que todos os fenômenos são como um sonho ou ilusão. Quando acordamos do sono, o sonho que estávamos tendo cessa em ser nossa realidade, ele cessa em existir. Do mesmo modo, quando morremos e nossas percepções do mundo entram em colapso, por todas intenções e propósitos o mundo como conhecemos cessa em existir. Igualmente, os eventos de nossas vidas estão constantemente mudando e se transformando; nunca são confiáveis ou previsíveis, assim é o sonho ou a ilusão. Quando alguns praticantes ouvem isso, eles pensam, "Ó, essa é apenas uma noção buddhista. Talvez mais tarde - quando eu tenha meditado um pouco – eu verei desse jeito, mas não exatamente agora". Seguindo essa linha de pensamento, ao invés de examinar realmente o que está sendo dito, obstáculos ao prosseguimento da meditação estão sendo criados inconscientemente. Precisamos abraçar esse ensinamento plenamente. Podemos captar, verbal ou intelectualmente, que tudo é como um sonho, mas quando algo muito pessoal surge, repetidamente lhe assinalamos grande importância, completamente esquecendo sua natureza ilusória. Dizemos, "Tudo bem, a vida é como um sonho - mas quando estou doente ou faminto, ou quando quero algo, isso não é apenas um sonho, é real". Simplesmente reforçamos nossos padrões habituais. A meditação é feita para nos levar à experiência da verdadeira natureza da mente. Mas se tudo o que fizermos for reforçar nossos padrões habituais, não teremos esta experiência. Deve haver uma mudança maior em nossa visão, não apenas uma mudança em padrões específicos. Não é apenas uma questão de mudar nossos padrões habituais por "padrões habituais buddhistas". O que estamos fazendo é mudar toda a nossa experiência da realidade. Não estamos apenas tomando as armadilhas do buddhismo, não estamos apenas tagarelando os ensinamentos - estamos realmente aplicando uma consciência lúcida à nossa experiência. Indo Além dos Sentidos O Buddha afirmou que os cinco sentidos não são padrões autênticos pelos quais possamos medir nossa experiência da realidade. De fato, longe de nos prover com uma visão precisa da realidade, nossos sentidos a obscurecem. Embora a verdadeira natureza da mente, a sabedoria primordial, esteja além do nascimento, morte, doença e degeneração, a qualidade obscurecedora dos sentidos nos leva a experienciar a nós mesmos e ao mundo à nossa volta de uma maneira ordinária, comum e rotineira. Tendemos a tentar fazer nossos sentidos ordinários validarem a verdade dos ensinamentos. Vemos uma bela mulher e dizemos, "Ah! Aí vai uma dakini!", ou podemos beber até nos intoxicarmos e dizermos, "Sim! Esse é o néctar amrita do estado desperto primordial!" Estaremos confiando em nossos cinco sentidos para validar algo que eles não conseguem, porque a dakini e a amrita do despertar primordial são a verdadeira natureza das nossas mentes – não objetos externos. Nos prendemos na dualidade de nos agarrarmos a objetos externos a nós mesmos, e de nos agarrarmos a um sujeito interno ou "eu" como o agente que experimenta estes objetos. Colocamos toda a nossa confiança nas coisas que percebemos como sendo externas a nós. Buscamos felicidade nelas e colocamos a culpa de nossa tristeza nelas. Estamos nos apoiando na experiência externa, que está sujeita à degeneração e à mudança, ao invés de nos apoiarmos na verdadeira natureza desta experiência. Tomemos o corpo físico, por exemplo. É nossa companhia por toda a vida; pensamos nele como muito confiável. Mas o corpo tem apenas um período de vida limitado. Em certo ponto, ele se quebra e finalmente cessa em existir. Não é nada mais do que um produto da padronização de nossa mente, não é algo existente por si só e independente, ainda que persistamos em tratá-lo como algo substancial e insistamos em investi-lo com todos os tipos de esperança, medo, alegria e sofrimento. É essa tendência - de relacionar manifestações de padronização habitual, como o corpo, a algum tipo de realidade última - que precisamos sobrepujar. O que percebemos através de nossos sentidos não deve ser aquilo pelo qual definimos que iremos ou não acreditar ou aceitar. O que podemos perceber através de nossos cinco sentidos é extremamente limitado. Nossos dois olhos não começaram a ver a imensa variedade de formas que poderiam ser vistas. Ainda assim pensamos que, se não tivermos visto algo, esse algo não existe ou não pode existir. Nossos ouvidos nem começaram a ouvir o vasto espectro de sons possível. Ainda assim, se não tivermos ouvido algo, não acreditamos que esse algo possa existir. Precisamos ter o reforço dos nossos sentidos antes que aceitemos a existência real de algo. Mas quando pensamos sobre isso, percebemos que o que experimentamos através de nossos sentidos é mínimo comparado com a variedade inconcebível de experiências possíveis, mesmo num nível convencional. O ponto chave aqui é que não podemos confiar em nossos sentidos para nos dizer o que é ou o que não é a verdadeira natureza da realidade, porque eles são incapazes de percebê-la. Se não realizarmos isso quando vamos ao Dharma - se formos muito materialistas em nossa aproximação - nossa prática será muito trabalho mundano, mas não nos levará aonde ela foi feita para chegar. Há pessoas que praticam a visualização de deidades e acabam conjurando demônios, porque eles estão convencidos em algum grau que nada existe além do que os seus cinco sentidos lhes informam sobre o mundo. Como Jetsun Milarepa disse "O que chamamos de 'muitos demônios' são conceitos. O que chamamos de 'demônio jovial' é o apego ao eu. O que chamamos de 'demônio envelhecido’' é o pensamento discursivo. Se cortarmos através desses demônios, isso é verdadeiramente atravessar, transcender". Nós, de algum modo esperamos que os três kayas, as deidades e assim por diante, serão revelados para nós de uma maneira comum, através de nossos sentidos. Mas devemos praticar a visualização de deidades não na base das aparências, mas na base da mente. Isso é assim porque a natureza verdadeira da mente, a qual é não nascida e por isso impossível de morrer e imune à cessação e degeneração, não é diferente da natureza da deidade. Se insistirmos que a deidade está fora de nós e que temos de fazer a visualização ocorrer, estamos perdendo o fio da meada. Podemos ter a capacidade alucinar algo, mas, por isso estar atado com nossos cinco sentidos, irá desaparecer quando morrermos e nossos padrões habituais entrarem em colapso. Se não superarmos esse tipo de padronização profundamente arraigada, corremos o risco de termos apenas uma compreensão superficial de, por exemplo, vacuidade. Ao invés de realizar que a natureza última do ser é resplandecente com uma riqueza inconcebível de qualidades positivas, acabaremos pensando nela como algum tipo de estado inerte e vazio ou confundindo-a com o kunzhi, o nível fundamental de consciência que é o solo de toda experiência. Se não realizarmos que o que deveríamos estar fazendo através da prática é mudar completamente nossa visão, simplesmente daremos a ela uma nova configuração, adotando alguma coisa nova ali ou aqui. O que precisamos é uma mudança arrebatadora em nossas mentes, que culmina na percepção direta da natureza fundamental da realidade. Se não aceitarmos que a nossa maneira ordinária de ver as coisas tem de mudar completamente através da prática, gastaremos um bocado de tempo e esforço para pouco resultado. O grande Shantideva da tradição indiana do buddhismo escreveu que, se quisermos proteger as solas de nossos pés de espinhos e bolhas, não tentaremos cobrir toda a terra com couro - o que é caro e difícil – apenas calçamos sapatos de couro. Do mesmo modo, podemos insistir em mudar a realidade fenomênica para servir às nossas necessidades ou podemos mudar nossa visão da realidade fenomênica. A última opção é bem mais eficaz e consome menos tempo. O nível mais sublime da prática de visualização do estágio de desenvolvimento é o que é chamado de migpa medpa em tibetano: a mente simplesmente caindo na sua própria natureza verdadeira, sem nenhuma elaboração conceitual. Não tem nada a ver com fenômenos visuais ordinários (ou qualquer outro sentido). Mesmo se os detalhes da nossa visualização não estiverem absolutamente corretos, quanto mais praticarmos na base da verdadeira natureza da mente, com fé e visão pura, então nossa prática será eficaz. Mas se tentarmos ter uma alucinação da deidade com nossos globos oculares ordinários, não teremos sucesso, porque nossos olhos ordinários não podem ver o estado desperto primordial, eles podem apenas perpetuar os padrões habituais do samsara. Apenas o olho do despertar primordial pode ver o estado desperto primordial. A Transformação Interior e o Lama Não podemos forçar uma transformação relativa à nossa visão do mundo. Não é algo que consigamos nos colocar ou colocar outra pessoa. Não podemos comprar uma nova visão, não importa quanto dinheiro seja mantido numa conta de um banco suíço. Precisamos passar por uma transformação interior fazendo a prática e tomando os ensinamentos do lama no coração. Se o lama diz que tudo é impermanente, é importante não aceitar isso com fé cega. Olhe ao redor e verifique se as coisas são realmente impermanentes. Se o lama diz que tudo é como um sonho ou uma ilusão, devemos examinar se é ou se não é. O lama pode repetir esses ensinamentos uma vez atrás da outra, mas é da nossa conta os examinarmos, sob a luz de nossa própria experiência, e aplicá-los a nossa própria mente. Em última instância, descobriremos que o que o lama diz sobre a impermanência e a qualidade onírica da existência é verdade, porque o lama é alguém que passou por esse processo de verificação e exame, realizou a verdade dos ensinamentos e pode transmiti-la. É importante trabalhar com um professor que realizou o que ele ou ela está descrevendo. De outro modo, poderíamos pegar tudo dos livros e o lama e a linhagem não iriam sequer ter importância. Mas eles têm uma grande importância. No processo da verificação e transformação interna, é crucial ter um professor com uma linhagem autêntica. Havia um indivíduo altamente cético chamado Devadatta, primo de Buddha e seu aluno por muitos anos. Ao final de seus estudos, Devadatta ainda era tão cínico que, quando as pessoas perguntavam a ele sobre o Buddha, ele dizia, "Ele é igualzinho a mim. Ele tem uma aura enorme, mas, fora isso, ele é o mesmo que eu". Do outro lado, havia um monge muito ignorante que foi solicitado para dar ensinamentos para um grupo de pessoas, entre as quais o rei da região. O monge estava tão nervoso que tudo que ele conseguia pensar em dizer era "Meu Deus, é tão doloroso ser tão ignorante!" O rei levou isso no coração e descobriu que a raiz de todo o sofrimento é a ignorância. Ao receber esse ensinamento do monge com uma atitude de respeito e diligência, aplicando-o à própria mente, ele se tornou um arhat. Essa vida é muito curta. É importante que, enquanto estivermos vivos, desenvolvamos uma prática espiritual na qual possamos confiar quando morrermos. Há uma tendência nesses dias em se tornar muito ecumênico, praticar um pouco disso e daquilo, misturar elementos do judaísmo, cristianismo, hinduísmo, buddhismo e islamismo todos juntos e alcançar uma aproximação não sectária da espiritualidade. Mas isso não funciona. Ao invés de lograr os benefícios de todas as tradições, a pessoa acaba pegando todos os problemas. Eventualmente, cada tradição sofre, perdendo sua integridade, não mais permanecendo autêntica. A pessoa fica como um artista misturando tintas na paleta, aumentando em entusiasmo de tal maneira que tudo fica mexido junto com mistura cor de lama sendo o resultado final. Finalmente, nada que permanece na paleta tem algum uso. É bem melhor ficar com uma tradição e praticando, entender que todos os buddhas e bodhisattvas, todas deidades e todos caminhos estão subentendidos naquela prática. Isso é ser verdadeiramente ecumênico - ter respeito por outras tradições, mas decidir-se por uma e segui-la até a sua conclusão. É importante que nos foquemos na nossa prática ao invés de perder tempo caçando isso ou aquilo. De outro modo, chegaremos ao final dessa vida de coração partido porque perdemos a oportunidade que estava presente. Agora temos tudo que precisamos em abundância. Temos nosso corpo humano e nossas faculdades, para que possamos ouvir e entender os ensinamentos. Temos lamas para nos ensinar. Temos todos os oito estados de lazer e os dez estados de oportunidade que são parte de nossa preciosa existência humana. Temos a base ideal de trabalho para a prática do Dharma. É decididamente crucial que tal oportunidade não seja desperdiçada. Para fechar, irei transcrever um texto de Patrul Rinpoche: "Sendo que os objetos de conhecimento são tão numerosos quanto os planetas e estrelas, quando se está aprendendo não há fim em sua extensão. Agora, seria melhor manter um foco firme, imutável: o significado da essência, o Dharmakaya." (Esse livreto foi produzido de uma transcrição de um ensinamento dado por Lama Sönam Tsering e traduzido por Richard Barron em Rigdzin Gatsal, Williams, Oregon, em Agosto de 1990. Traduzido por Padma Odzer e revisado por Pema Sönam.) |