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Características Singulares do Budismo
por Hsing yun
Do livro "Ensinamentos Fundamentais do Budismo Ch’an"


Caros Amigos no Dharma,

Estar aqui com vocês é, para mim, uma ocasião muito rara e especial. Hoje, gostaria de falar sobre as "Características Singulares do Budismo". Toda religião tem sua doutrina e sua filosofia. O Budismo é uma religião e, portanto, também tem uma doutrina abrangente e uma filosofia profunda. Chamamos de características singulares do Budismo justamente os aspectos dos ensinamentos da doutrina e da filosofia budistas que diferem dos de outras religiões.

Quais são as características únicas do Budismo? Gostaria de apresentar algumas delas a vocês.

  1. A Primeira Característica: Karma
  2. O karma é um ensinamento budista fundamental. É a sua mais importante característica e, ao mesmo tempo, a mais complexa e a mais freqüentemente mal compreendida. Karma é um termo sânscrito que significa ação ou ato. Qualquer ação física, verbal ou mental executada com uma intenção pode ser chamada de karma. Em outras palavras, pode-se dizer que karma é qualquer volição moral ou imoral, ou qualquer ação, reação ou resultado volitivo. Antes de falarmos sobre karma, é necessário compreender que o corpo, a fala e a mente são os três mestres do karma, pois são eles que executam as ações ou atos que o constituem. Como exemplos de karma realizado pelo corpo podemos citar assassinato, roubo e má conduta sexual. Mentira, conversa frívola, difamação e palavras ásperas são exemplos de karma realizado pela fala. Entre os exemplos de karma realizado pela mente, pode-se incluir cobiça, raiva e ilusão. Na verdade, nem sempre o karma é um "mau" karma. Tanto a felicidade quanto o sofrimento na vida de alguém são determinados pelo karma de seu corpo, fala e mente. Falemos, então, sobre os tipos de karma.

    O karma pode ser categorizado, com base nas características das ações, em positivo, negativo ou neutro. Karma positivo é o que segue a moralidade e é benéfico a todos. Karma negativo é qualquer ação que prejudique alguém. Ações que não possam ser definidas como sendo boas ou más, como, por exemplo, aquelas que não têm uma intenção consciente, são chamadas de karma neutro.

    Uma vez que o karma é a resposta da volição, as sementes de karma positivo e negativo realizados pela volição encontram-se armazenadas no alaya-vijnana, o "armazém da consciência". Tais sementes manifestam-se quando surgem as condições apropriadas. A manifestação dessas sementes é o fruto do karma. O karma que causa sofrimento é chamado de karma maléfico e resulta em renascimento nos três reinos maléficos da existência. O karma que causa felicidade é chamado de karma abençoado e resulta em renascimento no mundo humano ou no celestial. Aqueles que alcançam o samadhi (concentração meditativa) ceifam o renascimento nos mundos da forma e da não-forma e permanecem em samadhi. O karma desses seres é denominado karma imóvel.

    O karma pode, também, ser classificado de acordo com o momento em que amadurece. Existem três dessas categorias: o karma que amadurece nesta vida, o karma que amadurecerá na próxima vida e o karma que amadurecerá em vidas futuras.

    O karma que amadurece nesta vida refere-se ao conjunto de ações realizadas cujos frutos amadurecerão ainda nesta vida. O karma que amadurecerá na próxima vida refere-se ao conjunto de ações cujos frutos amadurecerão na vida imediatamente posterior a esta. O karma que amadurecerá em vidas futuras refere-se às ações presentes cujos frutos amadurecerão após duas ou mais vidas. Isso demonstra que, do ponto de vista temporal, quer seja passado, presente ou futuro, nenhum efeito de nenhuma ação é extraviado. O fruto amadurecerá de acordo com o karma realizado. O bem gera o bem; o mal gera o mal. Ninguém está isento da Lei de Causa e Efeito. Quem conhece agricultura sabe que os frutos de algumas plantas já podem ser colhidos depois de apenas um ano do plantio; os de outras, depois de dois anos; e ainda há outras plantas cujos frutos só podem ser colhidos depois de muitos anos.

    Há quem não compreenda totalmente a Lei de Causa e Efeito e alegue que existem pessoas bondosas, que realizam atos benfazejos e, ainda assim, vivenciam muitos sofrimentos e infortúnios. E que, ao mesmo tempo, pode-se observar que outras agem de forma nociva e, ainda assim, têm uma vida confortável e livre. Concluem, portanto, que a Lei de Causa e Efeito de forma nenhuma se aplica. Alguns chegam mesmo a dizer: "Será possível que, em pleno século XX, ainda se acredite em superstições como causa e efeito?" Essas pessoas não percebem que tudo o que existe neste mundo depende da Lei de Causa e Efeito. Mesmo sendo muito complexa, a relação entre causa e efeito funciona de forma bastante ordenada e precisa. Há duas razões pelas quais os frutos do karma podem amadurecer em momentos diferentes. A primeira é a força da causa, que determina quando o efeito surgirá. Por exemplo, se uma semente de melão e outra de pêssego forem plantadas ao mesmo tempo, a de melão germinará e produzirá frutos no mesmo ano; no entanto, vários anos se passarão até que o pessegueiro que crescer daquela semente frutifique. O segundo motivo pelo qual o fruto do karma amadurece em momentos diferentes é que as condições podem ser fracas ou fortes. Caso todas as condições necessárias estejam presentes, o fruto amadurecerá mais cedo; caso contrário, o amadurecimento tardará. Seja como for, diz um ditado budista: "Todos os atos, bons ou maus, geram conseqüências. É só uma questão de tempo".

    A Lei de Causa e Efeito é inexorável. Uma determinada causa resulta, inevitavelmente, em um determinado efeito: não há exceção. Uma pessoa boa sofre nesta vida porque sementes maléficas que plantou no passado estão amadurecendo agora. Assim, é necessário que sofra no presente. Mesmo tendo realizado inúmeras boas ações nesta vida, pode ser necessário esperar a próxima vida, ou vidas futuras, para colher os efeitos dessas boas ações. Talvez as sementes dessas boas ações não tenham tido forças para frutificar nesta vida. Ao contrário, alguém que tenha realizado muitas más ações nesta vida pode, ainda assim, estar gozando uma vida boa. Isso acontece porque as boas sementes que ela plantou em suas vidas anteriores estão amadurecendo agora e, portanto, ela está usufruindo os frutos dessas boas ações passadas. As sementes maléficas que plantou nesta vida amadurecerão em vidas futuras.

    Portanto, podemos concluir que a Lei de Causa e Efeito tem dois aspectos essenciais. Primeiro: causas e efeitos são indestrutíveis. Uma vez que ações tenham sido realizadas, sejam elas boas ou más, as sementes desses atos serão armazenadas no alaya-vijnana e se manifestarão quando as condições adequadas se fizerem presentes. Segundo: as ações boas e más não compensam umas às outras. As sementes maléficas que já foram plantadas originarão frutos malignos. Elas não podem ser anuladas através de boas ações. A única coisa que podemos fazer é realizar mais boas ações e assim acumular mais condições positivas. Dessa forma, a gravidade dos frutos de nossas más ações será atenuada; ou, caso muitas boas ações estejam acumuladas, o fruto benigno amadurecerá mais rapidamente e as condições negativas serão enfraquecidas. Façam a seguinte associação: se vocês adicionarem bastante água doce a um copo de água salgada, a água doce vai diluir a salgada, tornando-a, assim, menos concentrada. O mesmo acontece com atitudes positivas e negativas. Portanto, é muito importante fazer boas ações e acumular condições positivas.

    Algumas pessoas têm expectativas errôneas quanto à Lei de Causa e Efeito. Por exemplo, alguns budistas dizem: "Fui vegetariano a vida inteira. De que me serviu? Hoje estou falido!" Outros dizem: "Já sou budista há muito tempo. Recito o nome do Buda, prostro-me diante dele e, ainda assim, minha saúde não melhora". Alguns chegam a dizer: "Pratico o vegetarianismo e recito o nome do Buda, contudo meus filhos são desnaturados e indolentes". Falta, nesses casos, um entendimento de causa e efeito. Essas pessoas não sabem que a moralidade é governada por um tipo de causa e efeito, a condição econômica, por outro tipo de causa e efeito e a saúde física, pelas causas e efeitos relacionados a ela. Se querem ser saudáveis, devem cuidar da alimentação, exercitar-se adequadamente e ter hábitos higiênicos. Se não cuidarem desses fatores e acreditarem que a mera recitação do nome do Buda Amitabha vai lhes trazer boa saúde, vocês têm uma compreensão distorcida do princípio de causa e efeito. Se quiserem ser bem-sucedidos financeiramente, é necessário que adotem práticas eficientes de administração financeira. Vocês não devem esperar enriquecer simplesmente porque são vegetarianos. Esse é outro exemplo de compreensão distorcida. Se não cuidarem bem de seus filhos, educando-os e ensinando-os, não esperem que eles se tornem pessoas respeitosas e membros produtivos da sociedade. Seria também um raciocínio distorcido. Causa e efeito não erram. Nem se usássemos uma calculadora eletrônica, ou um computador, para somar as boas e as más ações de alguém, o resultado seria tão preciso quanto o da Lei de Causa e Efeito.

    Os efeitos kármicos que se manifestam no momento da morte podem ser divididos em karma ponderado, karma habitual e karma recordatório. Karma ponderado significa que o indivíduo realizou bom e mau karma e o que tiver mais peso vai se manifestar primeiro. O karma habitual vai se apresentar de acordo com os hábitos cotidianos de cada um. A escola de Budismo Terra Pura ensina as pessoas a recitarem sempre o nome do Buda Amitabha para que essa prática se torne um hábito, e para que elas assim o façam também no momento da morte e renasçam na Terra Pura. O karma recordatório (marcas karmicas) manifesta-se de acordo com a memória individual. Por exemplo, quando alguém caminha por uma rua e chega a uma encruzilhada, pode não saber qual direção tomar. De repente, lembra-se de que tem um amigo que mora na rua que segue à esquerda, e então vai nessa direção. Da mesma forma, ao morrer, a pessoa pode ser guiada por seu karma recordatório. O karma é certamente o que determina se um indivíduo renascerá como ser humano. O fato de termos nascido seres humanos é o resultado da propulsão de nosso karma. Em outras palavras, a propulsão do karma é a força que nos leva a renascer como seres humanos, e não como cães ou cavalos. Apesar de sermos todos humanos, temos diferenças individuais: podemos ser inteligentes ou tolos, virtuosos ou indisciplinados, ricos ou pobres, bem ou mal nascidos. Todas essas variações refletem diferenças no karma realizado pelos indivíduos em suas vidas passadas. Aqueles que foram generosos em vidas passadas tornam-se ricos; aqueles que mataram terão uma vida curta como conseqüência. O karma que "finaliza os detalhes" de nossos renascimentos é chamado de karma de preenchimento. Outra categoria é a do karma individual ou coletivo. O karma realizado por uma única pessoa resulta em uma determinada força; o karma realizado por centenas e milhares de pessoas resulta em força maior, enquanto o karma realizado por milhões e bilhões de pessoas resulta em força ainda maior. Tal força é denominada karma coletivo. Ou seja, o comportamento coletivo de muitos seres produz uma força extremamente intensa que determina o curso da vida, da história e do universo. Diferentemente do karma coletivo, o karma individual afeta uma única pessoa. Por exemplo, desastres naturais, tais como fome e terremotos, podem afetar todos os residentes de uma determinada área. Entretanto, durante um mesmo desastre, as pessoas são afetadas diferentemente, em função de seu karma individual. Há muitas categorias de karma, cada uma com seu respectivo nome; ainda assim, no singular ensinamento do Budismo, todos os atos e ações realizados pelo corpo, pela fala e pela mente são karma. Assim, é o comportamento de uma pessoa o que determina sua vida. Cada um é responsável por todos os efeitos kármicos, positivos e negativos, produzidos por suas próprias ações. Os efeitos kármicos não são impingidos aos seres humanos por deuses ou pelo Todo Poderoso, tampouco existe um Rei Yama no inferno para lhes infligir punições. Baseando-se nessa doutrina, pode-se inferir diversos princípios determinantes do karma:

  1. O karma é uma criação pessoal: não é uma criação divina.
  2. Todas as coisas, boas ou más, são criadas por nós mesmos e, portanto, não são determinadas ou impingidas por deuses.

  3. O karma implica igualdade de oportunidade; não há favoritismos.
  4. Perante a Lei de Causa e Efeito, todos são iguais e colhem seus próprios frutos kármicos. Ninguém recebe tratamento preferencial. O bem gera o bem; o mal gera o mal. Poderia-se argumentar que perante as leis nacionais as pessoas também são iguais. Contudo, existem aqueles que gozam de privilégios especiais sob o sistema jurídico. A Lei de Causa e Efeito é absolutamente justa: a ninguém é dado o usufruto de privilégios especiais.

    Um primeiro ministro japonês, após ser sentenciado, deixou cinco palavras: "errado", "razão", "lei", "poder" e "céu". Isso significa que o "errado" não pode vencer a "razão", a "razão" não pode vencer a "lei", a "lei" não pode vencer o "poder" e o "poder" não pode vencer o "céu". Se visitarmos uma prisão, verificaremos que nem todos os criminosos condenados são irrevogavelmente culpados e insensatos. Alguns podem até ter razões plausíveis para justificar o crime que cometeram. No entanto, independentemente de quão sensata a pessoa seja, o ato cometido pode ter violado a lei. A lei pode ser justa e imparcial, e, no entanto, certos privilegiados detêm o poder de manipulá-la. No entanto, não importa quanto poder, inteligência ou riqueza um indivíduo possua, ele estará sempre sujeito aos seus próprios efeitos kármicos sob a Lei de Causa e Efeito. Não há exceções.

  5. O karma nos dá esperança de um futuro radiante.
  6. O karma nos diz que, mesmo que tenhamos feito muitas boas ações, não deveríamos nos ter em tão alta consideração, já que os méritos acumulados em função dessas ações são como uma conta bancária: por maior que seja a quantia nela acumulada, se continuarmos a sacar de nossas economias sem fazer depósitos periódicos, chegará o dia em que a conta estará zerada. Alguém que tenha realizado muitas más ações pode talvez se sentir altamente endividado e perder a esperança na vida. Mas, se trabalhar bastante, chegará o dia em que todas as "dívidas" terão sido pagas. Aquele que viola a lei precisa cumprir sua pena na prisão, ao final da qual estará livre para um novo começo. O karma é assim: dá esperança às pessoas. O futuro de cada um encontra-se em nossas próprias mãos, pois somos livres para decidir o rumo que queremos tomar. Nosso futuro é radiante.

  7. Karma significa que o bem gera o bem e o mal gera o mal.
  8. Talvez isso soe fatalista para vocês. É verdade que o karma determina nosso destino e futuro. Entretanto, somos nós quem criamos nosso karma. O efeito kármico que vivenciamos depende do karma que nós próprios criamos. Poderíamos questionar: "O iluminado Buda Shakyamuni ainda tinha karma negativo?" A resposta é sim. Pode-se ter cometido incontáveis bons e maus atos em vidas passadas. Contudo, se não permitirmos que eles se manifestem, é como se não existissem. É como plantar sementes no solo: caso não lhes sejam fornecidas as condições adequadas para que germinem, nada acontecerá. Entretanto, sob condições adequadas, as sementes germinam e crescem saudavelmente, mesmo que entre elas haja algumas ervas daninhas. Isso significa que não precisamos nos preocupar demasiadamente com o karma negativo que realizamos no passado. Se continuarmos a plantar boas sementes nesta vida, as sementes de nosso mau karma anterior não terão a oportunidade de germinar. Assim, com esta compreensão mais clara a respeito do karma, podemos trabalhar efetivamente por nossa felicidade.

  1. A Segunda Característica: Gênese Condicionada
  2. O Buda Shakyamuni, fundador do Budismo, iluminou-se sentado sob a árvore Bodhi, em Bodhgaya, na Índia. Qual foi a verdade que ele compreendeu quando se iluminou? Ele compreendeu o Princípio de Causa e Condição e a verdade da Gênese Condicionada. Percebeu que o princípio de todos os fenômenos surge de causas e condições e que a Gênese Condicionada é uma verdade imutável da vida e do universo. Durante os 49 (alguns dizem 45) anos em que ensinou o Dharma, o Buda dirigiu seus esforços a elucidar a verdade da Gênese Condicionada para os demais. A Gênese Condicionada é outra característica singular que diferencia o Budismo de outras religiões.

    A Gênese Condicionada baseia-se na Lei de Causa e Efeito. Toda a existência (bhava) surge de causas e de condições. A existência de todas as coisas deste universo é interdependente. Em termos gerais, algo tão grande quanto o mundo e algo tão pequeno quanto um grão de poeira, uma flor ou uma folha de grama — tudo surge devido a causas e condições. O Princípio da Gênese Condicionada não é algo que possa ser explicado através da erudição acadêmica; deve ser vivenciado e realizado através da própria prática. Antes de o Buda renunciar à vida secular, já era bem versado na filosofia dos quatro Vedas, nas cinco ciências e na filosofia das 96 religiões praticadas em seu tempo. Depois de seis anos de práticas ascéticas e de meditação, ele finalmente compreendeu o Princípio da Gênese Condicionada e alcançou a condição de Buda.

    Havia um brâmane, chamado Shariputra, que praticava o Bramanismo havia muito tempo e tinha muitos seguidores; no entanto, ele ainda não havia compreendido a Verdade. Um dia, Shariputra andava por uma rua de Rajagrha quando encontrou Asvajit, um dentre os primeiros cinco discípulos do Buda.

    Asvajit havia sido profundamente influenciado pelos ensinamentos do Buda, e sempre os colocava em prática. O porte e a aparência de Asvajit conquistavam o respeito daqueles que o viam. Shariputra perguntou-lhe respeitosamente: "Quem é você? Quem é seu professor? O que ele lhe ensina?" Asvajit respondeu: "Todos os dharmas surgem devido a causas e condições; todos os dharmas cessam devido a causas e condições. É isso que o Senhor Buda, o grande sramana, sempre ensina".

    Nesse contexto, a palavra dharma significa tudo na vida, todos os fenômenos do universo. "Todos os dharmas surgem devido a causas e condições" significa que todos os objetos e fenômenos deste universo surgem devido à combinação de muitas causas e condições. Quando essas causas e condições se ausentam, objetos e fenômenos deixam de existir. Ao ouvir isso, Shariputra ficou extasiado. Ele comunicou a maravilhosa novidade a seu bom amigo, Maudgalyayana. Os dois, juntamente com seus próprios discípulos, foram seguir o Buda. Sob o seu ensinamento, Shariputra tornou-se um expoente de sabedoria entre seus discípulos, enquanto Maudgalyayana tornou-se o mais proeminente quanto a poderes sobrenaturais. Assim, podemos ver que o Princípio da Gênese Condicionada é a Verdade.

    Podemos compreender o conceito da Gênese Condicionada através de três aspectos:

  1. Efeitos surgem de causas
  2. Hetupratyaya é a palavra em sânscrito para causa e condição. Hetu é a causa primária; pratyaya é a condição, ou condições, secundária. Hetu é a força direta da qual surge o fruto (efeito), enquanto pratyaya é a força indireta. Todos os fenômenos do universo surgem devido a uma combinação de muitas e diferentes causas e condições. Sem causas e condições adequadas, nenhum fenômeno pode existir. Isso é o que significa "dharmas não surgem por si próprios". Como exemplo, tomemos um grão de soja, que é a semente, a causa principal. Água, solo, luz solar, ar e fertilizante são as condições secundárias. Caso essas causas e condições se combinem de maneira correta, a semente poderá germinar, florescer e frutificar. Assim, o fruto resulta de causas. Se, no entanto, o grão de soja tivesse sido armazenado em um silo ou plantado em cascalho, ele teria permanecido semente para sempre. Na falta de condições externas necessárias, uma semente não consegue germinar e frutificar.

    Do ponto de vista temporal, os fenômenos sociais de um determinado período talvez pareçam não ter conexão com os de um período posterior. Contudo, se analisarmos cuidadosamente esses fenômenos, logo nos daremos conta de que qualquer sociedade, de qualquer período, não poderia ter surgido sem a existência da que a antecedeu. Tomemos uma tocha, como exemplo. Quando a chama de uma tocha é transmitida a outra, ambas continuam sendo entidades distintas. Entretanto, existe uma relação sutil entre elas. A chama da nova tocha é a continuação da antiga chama. No fluxo do tempo, é impossível encontrar uma entidade isolada de todas as outras. Do ponto de vista espacial, parece que um dharma não tem nenhuma relação com outro. No entanto, analisando cuidadosamente, veremos que existem relações de causa e condições entre os dharmas. Por exemplo, hoje estamos tendo a oportunidade de nos encontrar aqui, e isso é um efeito. A formação do efeito resultou de muitas e variadas causas e condições. Vocês me convidaram a vir e a proferir uma palestra, eu estava disponível, a escola nos permitiu utilizar suas instalações e todos vocês tiveram o interesse de vir aqui me ouvir. Graças à combinação simultânea dessas condições é que esta palestra teve êxito em sua realização. Se apenas uma dessas condições tivesse falhado, não teria sido possível realizá-la. Portanto, o surgimento de qualquer tipo de existência é o resultado de causas e condições.

    A existência de um indivíduo também depende de causas e condições. Mesmo com todo o avanço da ciência e da tecnologia e com a possibilidade de inventar e produzir objetos, ainda assim, não conseguimos inventar a vida em si: ela resulta de causas e condições. A junção do esperma de um pai com o óvulo de uma mãe origina uma nova vida. A partir de então, a vida humana só terá continuidade se necessidades físicas forem satisfeitas através de vários itens fornecidos por agricultores, operários e comerciantes. Como analogia, tomemos uma casa: ela é construída quando cimento, madeira, tijolos e outros materiais de construção são colocados juntos e de forma correta. Uma casa não existe se esses componentes forem eliminados. O mesmo acontece com um ser humano. Se a pele, a carne, o sangue e os ossos forem separados, a pessoa deixará de existir. Assim, todos os dharmas resultam de causas e condições. Quando falamos sobre a formação da vida, surge sempre uma pergunta que desde há muito incita debate, que é a seguinte: "Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?" Se a galinha tiver nascido primeiro, de onde ela veio? Se o ovo tiver nascido antes, de onde veio o ovo? O ovo ou a galinha: quem nasceu primeiro?

    O Budismo não se preocupa com esse tipo de questões sobre que entidade nasceu primeiro, nem sobre o começo ou o fim. O Budismo fala sobre um "círculo", que não tem começo nem fim. O Conceito da Gênese Condicionada é justamente esse algo, sem começo nem fim. Qual hetupratyaya vem antes e qual vem depois? Isso não pode ser determinado porque qualquer fenômeno surge devido à combinação de muitos hetupratyayas. Por exemplo, o relógio na parede funciona continuamente da meia-noite ao meio-dia e do meio-dia de volta à meia-noite. Qual é o começo? Qual é o fim? É muito difícil dizer, porque isso não tem começo ou fim. Com esse exemplo, pode-se compreender que os hetupratyayas são interdependentes e inter-relacionados. "Isto existe, portanto aquilo existe; isto surge, portanto aquilo surge; isto não existe, portanto aquilo não existe; isto cessa, portanto aquilo cessa". Esse verso é a melhor definição da Gênese Condicionada.

  3. Todos os fenômenos existem em consonância com a Verdade
  4. O Princípio da Gênese Condicionada" é sutil e complexo. É profundo e difícil de ser compreendido. Não pode ser analisado através de técnicas científicas, nem elucidado através da metafísica. No Sutra Agama, o Buda disse que a Gênese Condicionada é uma característica singular do ensinamento budista. É uma verdade do universo que não pode ser encontrada em ensinamentos seculares.

    A Gênese Condicionada, que postula que todos os fenômenos existem em consonância com a Verdade, é baseada na Lei de Causa e Efeito. Quem planta sementes de feijão colherá feijão. Quem planta sementes de melão colherá melões. Uma semente de melão não resultará em feijão e uma semente de feijão não germinará melões. Uma causa específica resultará em um efeito específico: essa é a verdade exposta pela Lei de Causa e Efeito. As verdades deste mundo devem estar em harmonia com as condições de "assim era originalmente, assim é inevitavelmente e assim é universalmente". A Verdade não pode ser modificada por discussões e não precisa ser descrita em palavras. Ela simplesmente é. O Buda disse, por exemplo, que tudo o que surge desaparecerá um dia. Do ponto de vista temporal, tal afirmação aplica-se a passado, presente e futuro. Do ponto de vista espacial, essa afirmação é verdadeira em todos os lugares do mundo. Não importa qual seja nosso grau de desenvolvimento cultural ou de avanço tecnológico, não se pode fugir do fato de que tudo o que surge, desaparece. Nunca surgirá um fenômeno que não esteja de acordo com a Verdade. É isso que significa dizer: "todos os fenômenos existem em consonância com a Verdade".

  5. O surgimento da existência depende de shunyata
  6. Como se originaram todos os dharmas de nosso universo? De acordo com o Princípio da Gênese Condicionada, o surgimento de todos os dharmas depende de shunyata (vazio). Sem o vazio, não existiriam fenômenos. Por quê? Porque sem o vazio não poderia haver a existência. Vazio não significa inexistência, ao contrário do que se poderia pensar com base na utilização usual do vocábulo. Shunyata é a "natureza do vazio" em todos os fenômenos. Se não fosse por essa natureza de vazio, os fenômenos jamais manifestariam seu valor e função de existência. A função dos fenômenos é a aplicação do vazio. Vamos supor que quiséssemos construir uma casa. Além do material, tal como madeira, cimento, vergalhões e tijolos, precisaríamos também de um projeto, de uma planta e de medidas. E, obviamente, antes de mais nada, precisaríamos de espaço vazio, sem o que, independentemente da qualidade do material e da beleza da planta, a casa simplesmente não poderia ser construída. Assim, somente onde existe vazio, os eventos e fenômenos podem surgir.

    A simples menção da palavra "vazio" geralmente amedronta as pessoas, porque elas interpretam, erroneamente, que a religião budista requer a negação de tudo. No entanto, de acordo com o Budismo, o "vazio" é a base de toda existência. Hoje, por exemplo, estamos aqui reunidos porque existe espaço. Caso não houvesse, não poderíamos estar aqui. O corpo humano é outro exemplo de "vazio". De acordo com o Budismo, existe muito espaço no corpo humano. Uma pessoa pode existir porque seu nariz é vazio, porque sua boca é vazia e porque seu trato digestivo é vazio. Agora, imaginem se o nariz, a boca e o sistema digestivo não fossem vazios: será que conseguiríamos sobreviver? Será que a vida conseguiria, ainda assim, existir?

    Sem espaço, casas não podem ser construídas. Se uma bolsa não estiver vazia, não pode carregar nada. Se o universo não fosse vazio, a vida humana não poderia existir. Assim, só há "existência" onde há "vazio". Sem shunyata, nenhum dharma poderia resultar das condições e, assim, não haveria o surgimento nem o fim de nada.

    Baseado nesse fenômeno da existência, no capítulo sobre as Quatro Nobres Verdades do Sastra Madhyamika, Nagajuna disse: "Por causa de shunyata todos os dharmas podem surgir; se não houvesse shunyata, nenhum dharma poderia surgir".

  1. A Terceira Característica: Shunyata
  2. De modo geral, as pessoas não compreendem o conceito de shunyata (vazio), pois pensam que shunyata é o nada. Essa é uma interpretação errônea. Já falamos sobre o fenômeno da Gênese Condicionada, que significa que todos os dharmas se originam de causas e condições e findam como resultado de causas e condições. Todos os dharmas surgem por causa da combinação correta de causas e condições e findam como conseqüência da desintegração das causas e condições que resultaram em sua formação. Portanto, a natureza de todos os dharmas é o vazio. Ou seja, os dharmas não têm uma verdadeira natureza específica e, portanto, são descritos como "vazios". Geralmente, as pessoas limitam a definição de shunyata a "nada absoluto", ainda que considerem a existência como sendo real. De acordo com os ensinamentos budistas, a existência, que surge como resultado da Gênese Condicionada, é ilusória, ainda que não exclua o vazio. Similarmente, shunyata, a natureza fundamentalmente vazia de toda existência, significa a não substancialidade, mas não elimina a existência. Esse é o conceito de Gênese Condicionada com natureza de vazio.

    Gostaria de explicar o que é shunyata da seguinte maneira:

  1. Os quatro grandes elementos são fundamentalmente vazios;
  2. os cinco grandes agregados não têm existência verdadeira. O significado infinito do Budismo Mahayana é shunyata e não o "nada absoluto". É um conceito construtivo e revolucionário, utilizado pelos mahayanistas para explicar a existência do mundo e do universo. "Os quatro grandes elementos são fundamentalmente vazios; os cinco grandes agregados não têm existência verdadeira" — foi como o Buda explicou a natureza de todos os eventos e fenômenos deste mundo e do universo, depois de ter se iluminado. Todos os dharmas existem por causa da combinação dos quatro grandes elementos. Quais são eles? São terra, água, fogo e ar. A terra tem a propriedade da solidez; a água, a da umidade; o fogo, a do calor; e o ar, a da mobilidade. Por que dizemos que terra, água, fogo e ar são os grandes elementos? Porque tudo neste mundo e no universo é formado por esses quatro elementos. Uma xícara, por exemplo, é fabricada levando-se ao fogo a argila que foi moldada em forma de xícara. A argila pertence ao elemento terra. Adiciona-se água à argila para que possa ser moldada e, então, ela é levada ao fogo. Depois disso, a xícara é resfriada e é seca pelo ar. Assim, todos os quatro grandes elementos participam da formação de uma xícara.

    Da mesma forma, o ser humano também é formado pela união dos quatro grandes elementos. Por exemplo: nossa pele, cabelo, unhas, dentes, ossos e músculos pertencem ao elemento terra. Sangue, saliva e urina, ao elemento água. O calor corporal pertence ao elemento fogo e a respiração e o movimento, ao elemento ar. Assim, caso um dos elementos esteja em desequilíbrio, adoecemos. Se os quatro grandes elementos se desintegrarem, deixamos de existir.

    Assim, podemos observar que o corpo físico é formado pela combinação dos quatro grandes elementos. Além disso, a mente, de acordo com nossa compreensão usual, é apenas a combinação dos cinco agregados: matéria (rupa), sensação (vendana), percepção (samjna), formações mentais (samskara) e consciência (vijnana). A vida é o resultado da combinação de causas e efeitos que não têm em si um caráter verdadeiro e independente. Um corpo físico com consciência não é nada mais que um ser que existe como resultado de uma combinação de fatores. Quando a força unificadora dessas causas e condições se exaure, a combinação prévia desses fatores se dissolve e o ente vivente deixa de existir. Onde está, então, a verdadeira e independente individualidade? Assim, o Buda ensina que "os quatro grandes elementos são fundamentalmente vazios; os cinco agregados não têm existência verdadeira".

    Certa vez, Tung-p’o Su, da dinastia Sung, foi visitar o mestre Ch’an Fo Yin. Quando Tung-p’o Su chegou, o mestre Fo Yin estava ensinando o Dharma e, assim que viu o visitante, disse-lhe: "Senhor Su, de onde o senhor está vindo? Não temos lugar para que se sente".

    Tung-p’o Su imediatamente respondeu: "Mestre, se não há assento, por que é que o senhor não me empresta seus quatro grandes elementos e cinco agregados (seu corpo) para que eu os utilize como assento para meditar?" O mestre Fo Yin disse: "Vou lhe fazer uma pergunta e, caso a resposta seja satisfatória, permitirei que me use como assento. Caso contrário, então, por favor, deixe-me seu cinto de jade como presente. Eis a pergunta: meus quatro grandes elementos são todos vazios e meus cinco agregados não têm existência verdadeira. Posso, então, perguntar aonde o senhor vai se sentar?"

    Tung-p’o Su não conseguiu responder e, assim, tirou seu cinto de jade, que havia sido um presente do imperador, e partiu.

    Essa história nos faz perceber que o corpo humano, essa combinação ilusória dos quatro grandes elementos e dos cinco agregados, não tem em si uma natureza substancial que possamos agarrar.

  3. O que é shunyata?
  4. No ensinamento Mahayana, shunyata integra os "Três Selos do Dharma". Shunyata é a Verdade Suprema, um importante conceito no Budismo e uma característica única do Budismo que o distingue de outros ensinamentos terrenos.

    A maioria das pessoas não compreende o que significa shunyata, e acredita que seja a nulidade completa, o nada. De forma nenhuma. Shunyata é, na verdade, a mais profunda e maravilhosa filosofia. Quem consegue compreender shunyata compreende o Budismo como um todo. O que é, então, shunyata? É absolutamente impossível explicar o significado de shunyata com apenas uma frase. O Tratado sobre o Mahayana oferece dez definições de shunyata que, apesar de não conseguirem explicar totalmente o seu significado, se aproximam muito disso.

    As dez definições de shunyata apresentadas pelo tratado são as seguintes:

    Shunyata tem o significado da não obstrução. Assim como o espaço, pode ser encontrado em todos os lugares e não obstrui nenhuma existência material.

    Shunyata tem o significado da onipresença. Assim como o espaço, a tudo permeia e alcança todos os lugares.

    Shunyata tem o significado da igualdade. Assim como o espaço, não discrimina e trata tudo da mesma forma.

    Shunyata tem o significado da vastidão. Assim como o espaço, é vasto, ilimitado e incomensurável.

    Shunyata tem o significado do amorfo. Assim como o espaço, não tem forma ou feitio.

    Shunyata tem o significado da pureza. Assim como o espaço, é sempre puro.

    Shunyata tem o significado da imobilidade. Assim como o espaço, está sempre imóvel, totalmente além de qualquer forma de surgimento ou degeneração.

    Shunyata tem o significado da negação absoluta. Nega todos os fatos e teorias.

    Shunyata tem o significado do esvaziamento do próprio shunyata. Nega todos os conceitos de uma natureza individual independente, assim como destrói todo apego ao conceito de shunyata.

    Shunyata tem o significado do inatingível. Assim como o espaço, não pode ser alcançado ou agarrado.

    Essas dez definições não conseguem descrever perfeitamente a verdade de shunyata. Entretanto, juntas, fornecem um vívido quadro para que possamos compreender melhor esse importante ensinamento budista.

  5. Como perceber shunyata?
    1. Shunyata pode ser percebido através da natureza ilusória da continuidade.
    2. Toda a existência é vazia porque todos os fenômenos são impermanentes. Assim como no rio Yang Tze, as ondas de trás empurram as da frente, a nova geração substitui a anterior. O tempo continua ininterrupto e os acontecimentos mundanos são sempre o sofrimento, o vazio e a impermanência. Através da continuidade da impermanência, pode-se ver o vazio.

    3. Shunyata pode ser percebido através da natureza ilusória dos ciclos.
    4. Todos os dharmas do universo são governados pela Lei de Causa e Efeito. Uma causa transforma-se em efeito, que por sua vez torna-se causa. Por exemplo, quando há quantidade apropriada de luz, ar, água e terra, uma semente pode germinar, florescer e frutificar. Quando as condições externas necessárias estão presentes, as sementes dessas frutas germinam, florescem e frutificam novamente. Nesse caso, a fruta, que era o efeito, transforma-se em causa. Através desse ciclo contínuo, no qual a causa transforma-se em efeito e efeito em causa, pode-se ver shunyata.

    5. Shunyata pode ser percebido através da natureza ilusória das combinações.

      Todos os dharmas surgem devido à união harmoniosa de várias causas e condições. O corpo humano, por exemplo, é feito da união harmoniosa de pele, músculos, ossos, sangue e vários fluidos corporais. Se o corpo humano fosse subdividido em seus componentes, não se encontraria um corpo humano independente. Assim, podemos compreender shunyata através da Gênese Condicionada.

    6. Shunyata pode ser percebido através da natureza ilusória da relatividade.

      Todos os dharmas deste universo são relativos, tais como um pai em relação ao filho e um professor em relação ao aluno. Por exemplo, quando o filho se casa e tem um filho, torna-se pai. Da mesma forma, o aluno que aprende o suficiente pode, então, tornar-se professor. Assim, todas as coisas são relativas e, portanto, irreais e vazias.

    7. Shunyata pode ser percebido através da natureza ilusória das aparências.

      Não existe um padrão definido ou medida para analisar as aparências. Por exemplo, a luz de uma vela pode ser muito intensa para os olhos, até o momento em que uma lâmpada elétrica seja acesa: a luz da vela passa, então, a ser tênue. A velocidade de um automóvel pode parecer alta, até que seja comparada à de um avião. Esses exemplos nos permitem perceber que a aparência de todos os eventos e de todos os fenômenos é vista sem um padrão determinado; podemos, portanto, perceber shunyata.

    8. Shunyata pode ser percebido através da natureza ilusória dos termos.

      Atribui-se a cada dharma neste universo um nome diferente. Esses nomes não têm substancialidade e são, portanto, vazios. Uma criança recém-nascida, por exemplo, é chamada de "bebê". Ao crescer, é chamada de "moça". Ao casar-se, é chamada de "senhora". Ao ter seus filhos, estes a chamam de "mãe". Ao envelhecer e ter netos, passa a ser chamada de "avó". De "bebê" a "avó", ela continuou sempre a mesma pessoa e, no entanto, os títulos foram diferindo. Assim, podemos compreender shunyata através da ilusão dos termos.

    9. Shunyata pode ser percebido através da natureza ilusória dos diferentes pontos de vista.

      Diferentes pessoas com diferentes mentalidades terão diferentes pontos de vista a respeito da mesma coisa ou fato. Um exemplo: em uma noite de nevasca, um poeta declamando em uma janela, dentro de uma casa quentinha e confortável, espera que a neve continue por toda a noite, para que possa usufruir de uma paisagem mais bela. Enquanto isso, um mendigo, tremendo de frio, espera que a neve cesse logo para que possa sobreviver àquela noite. Assim, podemos compreender shunyata através dos diferentes pontos de vista.

    1. A quarta característica: Os Três Selos do Dharma
    2. Os "Três Selos do Dharma" (Três Características da Existência) são uma importante doutrina do Budismo. Os Três Selos do Dharma podem determinar se um dado ensinamento budista é a Verdade Absoluta. Os Três Selos do Dharma são como um carimbo oficial através do qual pode-se reconhecer a autenticidade de mercadorias do cotidiano. Uma doutrina que não esteja em consonância com os Três Selos do Dharma não é um ensinamento completo, mesmo que tenha sido proferida pelo Buda. Por outro lado, uma doutrina que esteja de acordo com os Três Selos do Dharma é um Dharma genuíno, mesmo que não tenha sido pessoalmente transmitida pelo Buda. Os Três Selos do Dharma são os seguintes: "Todos as coisas condicionadas (samskaras) são impermanentes", "Nenhum dharma (estados condicionados e não-condicionados) tem individualidade substancial" e "O Nirvana é a paz perfeita". Os três axiomas são utilizados conjuntamente para provar a autenticidade do Dharma e, por isso, são denominados os "Três Selos do Dharma".

    1. Todos os samskaras são impermanentes.
    2. Todos as coisas condicionadas (samskaras)" refere-se a todas as formas e ações deste mundo. De acordo com a doutrina budista, nenhuma dessas formas ou ações é permanente. Tal impermanência pode ser ilustrada através dos seguintes pontos:

      Os "três períodos do tempo" fluem contínua e ininterruptamente. Isso mostra que todos os samskaras são impermanentes.

      Todos os dharmas originam-se de causas e condições e, portanto, são impermanentes.

      O que significa dizer "os três períodos de tempo" fluem continuamente? Esses períodos são: passado, presente e futuro. Do ponto de vista temporal, todos os dharmas são impermanentes porque, nem por um instante, permanecem imutáveis, surgindo e desaparecendo a cada momento. Os dharmas do passado já estão extintos. Os dharmas do futuro ainda não chegaram a existir. Os dharmas do presente extinguem-se assim que surgem. Assim, todos os dharmas são impermanentes. Por que dizemos que todos os dharmas, que surgem devido a causas e condições, são impermanentes? Uma vez que todos os dharmas são formados pela combinação e unificação de diferentes condições, a desintegração das causas e condições necessárias resulta na eliminação dos dharmas. Como as causas e condições são impermanentes, qualquer dharma que surja delas é conseqüentemente impermanente também. Por exemplo, um ser humano renasce como resultado de seu karma anterior. Do nascimento à morte e da morte ao nascimento, as vidas passam perpetuamente por passado, presente e futuro. A vida é verdadeiramente impermanente.

      O funcionamento de nossa mente é também impermanente. Nossos pensamentos surgem e desaparecem constantemente, mudando a todo momento. Da mesma forma, todos os dharmas deste universo surgem e desaparecem a cada instante. Sua existência é um processo contínuo. Os fenômenos terrenos do surgimento, manutenção, degeneração e destruição; as mudanças sazonais da primavera, verão, outono e inverno e o próprio ciclo da vida do nascimento, envelhecimento, adoecimento e morte: tudo flui como um rio. Nada jamais permanece imutável nesse fluxo contínuo.

      Costumamos classificar os sentimentos humanos em três categorias: sentimentos agradáveis, desagradáveis e aqueles que não são nem agradáveis nem desagradáveis. É claro que sentimentos desagradáveis são sofrimento (duhkha). Entretanto, sentimentos agradáveis também são duhkha porque eles também findam. A saúde e a beleza, por exemplo, resultam em sentimentos agradáveis, mas sua perda pode gerar sofrimento. Sentimentos que não são nem de felicidade, nem de tristeza, trazem-nos sofrimento por causa da mudança [intrínseca a eles]. Exemplos disso são os sentimentos resultantes da passagem do tempo, da brevidade da vida e da impermanência de todos os dharmas. Esse movimento perpétuo de mudanças causa intolerável angústia nas pessoas — esse é o sofrimento da impermanência. É por isso que os ensinamentos budistas afirmam que todos os samskaras são impermanentes e que todos os sentimentos são duhkha.

    3. Nenhum dharma tem individualidade substancial.
    4. Quando, anteriormente, abordamos a afirmação "todos os samskaras são impermanentes", discutimos que nada é permanente do ponto de vista temporal. Agora, se considerarmos o ponto de vista espacial, nada pode existir independentemente. Nós, seres humanos, gostamos de nos aferrar à nossa individualidade e acreditar que "eu" ou "minha individualidade" existem: minha cabeça, meu corpo, meus pensamentos, meus pais, meu cônjuge e meus filhos. Desenvolvemos "apego à individualidade" com relação ao que acreditamos ser. Desenvolvemos apego aos objetos que nos cercam. Temos a tendência de olhar para o mundo tendo o "eu" como centro de tudo, como se nada pudesse existir sem esse "eu". Contudo, de acordo com a profunda e racional perspectiva dos ensinamentos budistas, na verdade, a tal individualidade permanente e independente não existe. Por quê? Para considerarmos que uma entidade tenha individualidade, quatro pré-requisitos precisam ser preenchidos: a entidade precisa necessariamente ser permanente, autônoma, imutável e independente. Analisemos então o corpo humano, entidade que tendemos a considerar como sendo "eu". Desde o momento do nascimento, e ao longo das várias décadas da vida de uma pessoa, o corpo humano passa por constantes mudanças fisiológicas de nascimento e morte à medida que cresce, amadurece e envelhece. De que forma, então, poderia ser permanente e imutável? O corpo humano é formado pela combinação e unificação dos quatro grandes elementos e dos cinco agregados; é originado quando se apresentam as condições necessárias para tal unidade e deixa de existir quando tais condições desaparecem. Como, então, poderia ele ser autônomo? O corpo humano é o local onde todas as variedades de sofrimento se reúnem: sofrimentos fisiológicos, tais como fome, frio, doença, fadiga; e sofrimentos mentais e emocionais, que incluem ira, ódio, tristeza, medo e frustração. Quando vivencia todos esses sofrimentos, o corpo não consegue se libertar. Como poderia ele, então, ser independente e soberano? Podemos observar, portanto, que a "individualidade", como definida anteriormente, não existe aqui. Assim, os ensinamentos budistas afirmam que nenhum dharma tem individualidade substancial.

      A ausência de uma individualidade substancial, anatman, é o alicerce do Caminho do Meio, é o ensinamento fundamental do Budismo. A ausência de uma individualidade substancial é um ensinamento singular que distingue o Budismo de outras doutrinas religiosas ou filosóficas.

    5. O Nirvana é a paz perfeita
    6. Essa afirmação significa que as coisas acabarão por alcançar um estado de paz, independentemente de quão caóticas estejam no mundo. Não importa que as coisas pareçam diferentes, no fim tudo será igual. O estado de Nirvana é, na verdade, de paz e igualdade. De acordo com o Budismo, o resultado de se alcançar o estado de Nirvana é que todas as aflições e o ciclo de nascimento e morte são exterminados, o sofrimento deixa de existir, a felicidade eterna é alcançada, a sabedoria perfeita torna-se realidade e todas as ilusões são erradicadas. As pessoas comuns acreditam que o Nirvana só pode ser alcançado depois da morte. Na verdade, a definição de Nirvana é "sem nascimento nem morte". Nirvana significa a extinção do apego, a eliminação do atmagraha (agarrar-se à noção de "individualidade") e do dharma-graha (aferro à crença de que as coisas são reais), a erradicação dos obstáculos gerados pela impureza e dos impedimentos ao conhecimento. Significa dar um fim ao ciclo de nascimento e morte. Nirvana é liberação. A impureza é cativeiro. Um criminoso acorrentado não é livre, da mesma forma que não o são os seres vivos agrilhoados por cobiça, raiva e ilusão. Praticando o Dharma e se purificando, os seres vivos liberam-se e alcançam o Nirvana. Esse processo é o único caminho para o Nirvana. Na época do Buda, seus discípulos viajavam a diferentes lugares para ensinar o Dharma, depois de terem alcançado o Nirvana. Seus exemplos nos fazem compreender que o Nirvana não é algo para ser alcançado fora do contexto dos dharmas. Todos os dharmas eram originalmente Nirvana. No entanto, uma vez que a mente dos seres vivos está obscurecida pela ignorância, pela ilusão, pelo apego e pela crença de que a individualidade e os dharmas têm existência substancial que pode ser alcançada, as pessoas encontram obstáculos, impedimentos e cativeiro em todos os lugares. Se pudermos ser como os sábios budistas que entenderam que tudo se origina por causa da Gênese Condicionada, então, ainda que continuemos a existir neste mundo, perceberemos que toda a existência está em permanente mutação e não tem uma verdadeira natureza individual. Não mais seremos apegados, estaremos libertos onde quer que estejamos. Liberação é Nirvana. Hoje apresentei as quatro características únicas do Budismo. Espero que esta palestra tenha aprofundado a compreensão de vocês e que sirva como um primeiro degrau para futuras investigações sobre Budismo. Que todos usufruam de saúde mental e corporal, felicidade e sucesso!




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