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Sobre o sentido geral do pensamento zen Hubert Benoit Do livro "A Doutrina Suprema, segundo o pensamento zen"* Desde sempre o homem reflete sobre a sua condição, pensa que não é como gostaria de ser, define de maneira mais ou menos correta os vícios do seu funcionamento; faz, em suma, a sua autocrítica. Esse trabalho de crítica, às vezes grosseiro, atinge ocasionalmente, em alguns ensinamentos, um altíssimo grau de profundidade e sutileza. As modalidades indesejáveis do funcionamento interior do homem comum são com frequência reconhecidas e descritas de modo bastante preciso. Diante dessa riqueza do trabalho diagnóstico, surpreende a pobreza do trabalho terapêutico. As escolas que ensinaram e ensinam sobre o problema do homem, depois de mostrarem o que não anda bem no homem comum e a forma pela qual isso acontece, chegam necessariamente à pergunta: "Como remediar esse estado de coisas?" E aí começam a debandada e a pobreza das doutrinas. Chegando a esse ponto, quase todas elas se extraviam - ora grosseira ora sutilmente -, exceto a doutrina zen (ou, é preciso ainda esclarecer, "alguns mestres zen"). Isso não quer dizer que, em outros ensinamentos, certos homens não tenham obtido a sua "realização". Mas só o Zen puro expõe a questão e refuta os falsos caminhos de modo claro. O erro essencial de todos os falsos caminhos consiste no fato de o remédio proposto não ter como objeto a causa profunda da miséria do homem comum. A análise critica do estado do homem não remonta o suficiente ao determinismo de seus fenômenos interiores; nesse encadeamento, ela não remonta ao fenómeno primeiro, detendo-se nos sintomas. O pesquisador que não vai além do sintoma, concentrando nele o seu esgotado pensamento analítico, não pode evidentemente conceber o remédio para a situação senão como a elaboração organizada e artificial de um sintoma que difere por inteiro do sintoma descoberto. Por exemplo: um homem chega à conclusão de que a sua miséria reside em suas manifestações de cólera, de amor-próprio, de sensualidade, etc., e julga que o caminho consiste em dedicar-se a produzir manifestações de doçura, de humildade, de ascetismo, etc. Outro homem, mais inteligente, chegará à conclusão de que a sua miséria reside em sua agitação mental e considerará que o caminho consiste em dedicar-se, por meio de certos exercícios, a tranquilizar a mente. Essa doutrina nos dirá: "A sua miséria vem do fato de você sempre desejar algo, do seu apego ao que você possui"; e isso desembocará, de acordo com o grau de inteligência do mestre, no conselho de distribuir todos os bens ou de aprender o desapego interior dos bens exteriores. Essa doutrina considerará que a miséria do homem reside na sua falta de autocontrole e ensinará "iogas", métodos que visam a um progressivo treinamento do corpo, do sentimento, do comportamento altruísta, do saber ou da atenção. Tudo isso é, para o Zen, uma sofisticada domesticação e leva a uma ou a outra sujeição (dando a ilusória e exaltadora impressão de que nos tornamos livres). No fundo de todas essas coisas há este raciocínio simplista: "Isto não vai bem em mim dessa maneira; então, a partir de agora, vou fazer tudo ao contrário." Esse modo de apresentar o problema, ao partir de uma forma considerada má, encerra o pesquisador nos limites do domínio formal e lhe recusa, por conseguinte, toda possibilidade de restaurar a sua consciência para além de toda forma; quando me fecho no plano dualista, nenhuma inversão de sinal me liberta da ilusão dualista e me restaura na Unidade. Isso se assemelha por completo ao problema de "Aquiles e a tartaruga"; a maneira de formular o problema o encerra nos limites que devem ser transpostos e o torna, portanto, insolúvel. O penetrante pensamento do Zen permeia todos os nossos fenômenos sem deter-se na consideração de suas modalidades. Ele sabe que, na realidade, nada vai mal em nós e que sofremos porque não compreendemos que tudo caminha à perfeição, porque cremos ilusoriamente que algo não está bem e que é preciso remediá-lo. Dizer que todo o mal advém do fato de o homem crer ilusoriamente que lhe falta algo constituiria ainda uma frase absurda, já que o "mal" de que fala é destituído de realidade e já que uma crença ilusória - portanto, sem realidade - não poderia ser a causa do que quer que seja. Além disso, se observo bem, não encontro positivamente em mim essa crença de que me falta algo (como poderia estar positivamente presente a crença ilusória numa ausência?); o que constato é que os meus fenômenos interiores caminham como se essa crença estivesse em mim. Mas, se os meus fenômenos o fazem, isso não se deve à presença dessa crença, mas ao fato de a intuição intelectual direta de que não me falta nada estar adormecida no fundo da minha consciência, de ainda não ter sido despertada. Ela está lá, pois nada me falta, sobretudo isso, mas está adormecida e não produz os seus efeitos. Todo o meu "mal" aparente provém do adormecimento da minha fé na perfeita Realidade; despertas em mim, não tenho senão "crenças" no que me oferecem os meus sentidos e a minha mente, que trabalha no plano dualista (crenças na inexistência de uma Perfeita Realidade Una). Essas crenças são formações ilusórias, sem realidade, consequências do adormecimento da minha fé. Sou um "homem de pouca fé", ou, mais exatamente, sem nenhuma fé, ou, melhor ainda, de fé adormecida, que não crê senão no que percebe no plano da forma. (Essa noção da fé presente mas adormecida explica a necessidade que temos, para nos libertar, de um mestre "despertador", de um ensinamento, de uma revelação; com efeito, o adormecimento comporta precisamente a não-fruição daquilo que pode despertar.) Em suma, todas as coisas parecem ir mal em mim porque a ideia fundamental de que tudo é perfeito, eterno e totalmente positivo está adormecida no centro do meu ser, porque não está desperta, viva e atuante. Aí atingimos enfim o primeiro fenômeno doloroso, aquele de que deriva todo o resto dos nossos fenômenos dolorosos. O adormecimento da nossa fé na Perfeita Realidade Una (fora da qual nada "é") constitui o fenômeno primário de que deriva toda a cadeia distorcida; ele é o fenómeno causal, e nenhuma terapêutica do ilusório sofrimento humano poderá ser eficaz se não se encaminhar para esse ponto. A pergunta "O que devo fazer para me libertar?" o Zen responde: "Você nada tem a fazer, já que nunca sofreu nenhuma sujeição e já que não existe, na realidade, nada de que você tenha de se libertar." Essa resposta pode ser malcompreendida e parecer desencorajadora porque encerra um equívoco referente à palavra "fazer". No homem comum, "fazer" se decompõe, de forma dualista, em concepção e ação, sendo à ação, à execução do que concebeu que o homem aplica a palavra "fazer"; tudo se organizará de modo espontâneo e harmonioso no nosso "fazer" quando deixarmos justamente de tentar modificá-lo de alguma maneira e trabalharmos apenas em despertar a nossa fé adormecida, isto é, em conceber a ideia primordial que temos de conceber. Essa ideia total, enquanto esférica e imóvel, não resulta, evidentemente, em nenhuma ação particular, não tem nenhum dinamismo específico; ela é a pureza central do Não-Agir, através da qual passará, não perturbado, o dinamismo espontâneo da vida natural real. Do mesmo modo, pode-se e deve-se dizer que despertar e alimentar essa concepção não é em absoluto "fazer", no sentido que essa palavra necessariamente assume para o homem comum, e até que esse despertar no pensamento se traduz na vida por uma diminuição (que tende à cessação) de todas as inúteis manipulações às quais o homem se dedica a partir de seus fenômenos interiores. Evidentemente, é possível dizer que trabalhar na concepção de uma ideia é "fazer" algo. Mas, tendo-se em vista o sentido que essa palavra tem para o homem comum, é melhor, para evitar um perigoso equívoco, falar como o Zen e mostrar que o trabalho que pode abolir a angústia humana é um trabalho do intelecto puro que não implica a "feitura" de alguma coisa específica na vida interior, envolvendo, pelo contrário, a cessação do desejo de modificá-la. Vejamos a questão com maiores detalhes. O trabalho que desperta a fé na única e perfeita Realidade que é o nosso "ser" se decompõe em dois momentos. Num momento preliminar, nosso pensamento discursivo concebe todas as ideias necessárias para que compreendamos teoricamente a existência em nós dessa fé adormecida e a possibilidade do seu despertar, bem como o fato de que só este último pode suprimir os nossos sofrimentos ilusórios. No curso desse momento preliminar, o trabalho efetuado pode ser denominado "fazer" alguma coisa. Mas essa compreensão teórica, supostamente obtida, ainda não modifica em nada o nosso estado doloroso; é preciso que ela se transforme numa compreensão vivenciada, experimentada por todo o nosso organismo, compreensão teórica e prática, ao mesmo tempo abstrata e concreta - só então a nossa fé será despertada. Mas essa transformação, esse transcender a forma, não pode resultar de nenhum trabalho direto "feito" pelo homem comum, inteiramente cego ao que não é formal. Não existe nenhum "caminho" para a libertação; isso é evidente, já que na realidade nunca estivemos submetidos a nada e continuamos a não estar. Não é preciso "ir" a lugar algum, não há nada a "fazer". O homem não tem nada a fazer diretamente para vivenciar a sua liberdade total e infinitamente jubilosa. O que ele deve fazer é indireto e negativo; o que deve compreender, através de um trabalho, é a enganosa ilusão de todos os "caminhos" que pode decidir trilhar. Quando seus esforços perseverantes lhe trouxerem a clara compreensão de que tudo o que pode "fazer" para libertar-se é vão, quando desvalorizar concretamente a própria noção de todos os "caminhos" imagináveis, irromperá o "satori", visão real que não tem "caminho" porque não é preciso ir a lugar algum, porque, desde toda a eternidade, estamos no centro único e fundamental de tudo. Assim, pois, a "libertação", isso a que se dá esse nome e que é o desaparecimento da ilusão da sujeição, sucede cronologicamente a um trabalho interior, mas não é na verdade causada por ele. Esse trabalho interior formal não pode causar aquilo que transcende toda forma e que, por conseguinte, o transcende; ele é apenas o instrumento através do qual age a Causa Primeira. Em suma, não existem formalmente nem a famosa "porta estreita" nem o "caminho" para o qual ela se abriria, a menos que se queira chamar assim a compreensão de que não há caminho, não há porta, não há lugar algum aonde ir. Eis aí o grande segredo - e, ao mesmo tempo, a grande evidência - que nos revelam os mestres zen. Retirado do site http://geocities.yahoo.com.br/wafonso2000/nadadeespecial.htm. |