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Dharamsala John Powers Ao amanhecer em Dharamsala, quando o sol surge entre as montanhas, várias pessoas já estão acordadas e andando pelo caminho ao redor da residência do Dalai Lama, o líder espiritual do povo tibetano. Dharamsala é uma pequena cidade situada no sopé dos Himalaias, as montanhas mais altas do mundo, e hoje Dharamsala é o centro da comunidade budista tibetana exilada na Índia, e o lar do Dalai Lama. Tenzin Gyatso, o décimo quarto Dalai Lama, é considerado por seus seguidores como sendo uma emanação física de Avalokiteshvara, o buddha da compaixão e divindade patrona do Tibete. Obrigado a deixar sua terra natal em 1959, quando o exército chinês anexou o Tibete à força, ele e muitos de seu povo se assentaram na Índia, onde continuam a olhar para as montanhas, esperando um dia voltar à sua terra natal. A dura realidade da diáspora e a tenuidade de sua posição no exílio não diminuíram a reverência do povo tibetano pelo Dalai Lama, e o grande número de pessoas que andam ao redor de sua residência em Dharamsala são um testemunho de seu respeito por ele. As pessoas nesse caminho são um grupo representativo de toda a sociedade tibetana: jovens e velhos, leigos, monges, monjas e pessoas de todos os níveis da sociedade. Algumas estão indo trabalhar ou fazer compras, e escolhem o caminho ao redor da residência do Dalai Lama porque se acredita que andar ao redor dela traz mérito, mesmo que se ande por apenas uma parte do caminho. Muitas das pessoas no caminho vão fazer este circuito várias vezes, e sua caminhada será um ato de devoção religiosa. A maioria leva contas de oração (sânsc. mala, tib. trengwa / phreng ba), usadas para marcar o número de vezes que cantam um mantra (tib. ngag / sngags). O uso de mantras é profundamente enraizado no budismo tibetano. São preces curtas em que se acreditam alterar a mente de maneira sutil e fazer uma conexão com um buddha (tib. sangye / sangs rgyas), ou ser iluminado, específico. O budismo tibetano não tem deuses no sentido ocidental do termo — as divindades do budismo tibetano são buddhas, literalmente, "despertos" que, em vidas passadas, foram pessoas comuns, mas que transcenderam o comum através de suas meditações e realizações. Quando os tibetanos cantam um mantra associado a um buddha específico, não estão simplesmente pedindo as bênçãos e a ajuda do buddha — a meta final da prática é a deles mesmos se tornarem buddhas, já que os buddhas são seres sencientes que realizaram o mais elevado potencial que todos nós possuímos. Os tibetanos que caminham ao redor do palácio do Dalai Lama muitas vezes cantam o mantra de Avalokiteshvara — Om Mani Padme Hum — uma prática que faz um tributo ao Dalai Lama como encarnação de Avalokiteshvara e focaliza suas mentes na meta de eventualmente atingir seu nível de sabedoria e compaixão, as duas qualidades que os buddhas corporificam. Muitos vão parar ao longo do caminho em pequenos relicários (sânsc. stupa, tib. chöten / mchod rten) que geralmente contém algum tipo de artefato religioso. Muitas vezes os tibetanos farão prostrações diante dos chörtens ou da residência do Dalai Lama. Acredita-se que isto traz grande mérito religioso e, como o cântico de mantras, ajuda a focalizar a mente na meta da iluminação. Uma das características comoventes desta prática é o seu foco primário: os outros seres. Geralmente acredita-se que, se alguém realizar ações religiosas unicamente para benefício próprio, essas práticas não são efetivas e produzem pouco ou nenhum mérito. Já que se está tentando atingir a iluminação, e já que os buddhas são seres cuja compaixão se estende a todos os seres, qualquer um que cante o mantra do buddha da compaixão ou faz uma homenagem ao Dalai Lama unicamente por ganho pessoal é considerado como sendo profundamente desorientado. Os tibetanos reconhecem isto e, quando forem perguntados, geralmente vão indicar que oferecem o mérito de suas devoções religiosas para o benefício de todos os seres sencientes. Tudo ao longo do caminho são símbolos religiosos, a maioria dos quais são conectados a Avalokiteshvara ou à sua manifestação humana, o Dalai Lama. Há muitas "paredes mani", que são pilhas de pedras, cada uma das quais inscrita com o mantra Om Mani Padme Hum. Isto significa, literalmente, Om Jóia no Lótus Hum, e tem um tremendo significado para os devotos buddhistas tibetanos. A sílaba Om é comumente achada nos mantras e se diz que simboliza a natureza última de toda a realidade, a verdade final das coisas. A "jóia no lótus" é a compaixão, a qualidade que se acredita ser corporificada por Avalokiteshvara. O simbolismo deste mantra revela uma grande parte das pré-suposições e práticas do budismo tibetano. Um lótus é nascido na sujeira e na lama do fundo de um pântano, mas quando emerge sobre a superfície da água e abre sua pétalas, uma bela flor aparece, sem a lama da qual surgiu. Similarmente, a compaixão genuína surge da sujeira do mundo comum, que é caracterizado pela luta, ódio, desconfiança, ansiedade e outras emoções negativas. Mas assim como o mundo é o lugar das emoções negativas, é também o lugar em que podemos nos tornar buddhas, seres iluminados que despertaram do sono da ignorância e que perceberam a realidade como ela é, com absoluta claridade e profunda compaixão pelos seres que sofrem. Assim como o lótus surge da lama de um pântano, os buddhas foram anteriormente seres humanos, imersos nos pensamentos negativos e ações em que todos os seres comuns se engajam: brigas, guerras, ciúmes e ódios desprezíveis, aos quais os seres comuns estão sujeitos. Através de seu treino meditativo, porém, os buddhas transcenderam tais coisas, e como os lótus, emergem sobre suas origens na sujeira e olham para ela, não sendo maculados pela lama e lodo que estão abaixo. O simbolismo pode ser estendido ainda mais, porque os buddhas não apenas escapam do mundo e olham para os outros abaixo, com piedade de um deleite desapegado; ao invés disso, como o lótus que ainda tem suas raízes conectadas com a lama no fundo do lago, os buddhas continuam a agir no mundo pelo benefício dos outros, tomando continuamente a forma humana para ajudá-los, para fazê-los conscientes da realidade de suas situações e para indicar o caminho da iluminação, que pode livrá-los do sofrimento. Todos estes símbolos estão operando nas mentes dos tibetanos que estão fazendo o circuito ao redor da residência do Dalai Lama. Eles o percebem como a corporificação de suas mais elevadas aspirações, alguém que transcendeu o mundo através do esforço individual, da atividade compassiva e da meditação diligente, mas ainda continua a emanar manifestações físicas para beneficiar os outros. A compaixão de Avalokiteshvara é completamente imaculada de quaisquer emoções negativas; ele não tem a necessidade de louvor, não procura a aprovação dos outros e suas ações são completamente intocadas por pensamentos de ganho pessoal. Ao invés disso, ele corporifica o mais elevado e puro nível da compaixão, uma compaixão que é dita como sendo inconcebível pelos seres comuns. O desenvolvimento de tal compaixão pura no mundo comum da ignorância, desejo e ódio, é dita como sendo tão rara quanto um lótus crescendo do fundo de um pântano e abrindo suas pétalas para revelar uma jóia perfeita em seu interior. Isto indica a natureza multifacetada do simbolismo do mantra que os tibetanos cantam ao andar ao redor da residência do Dalai Lama. Enquanto andam, eles tentam manter este simbolismo em mente, porque se acredita que o quanto mais se familiarizar com isso, mais natural ele se torna, mais e mais se pensa e se age de acordo com isso. Esta é a idéia básica que sublinha o sistema da meditação tântrica, que é considerada pelos tibetanos como o meio mais efetivo de se atingir a iluminação. Neste sistema, tenta-se transformar a mente através da meditação e através do cercar a si mesmo com os símbolos que ressoam com as próprias metas religiosas, que conduzem a mente aos pensamentos de compaixão, sabedoria, altruísmo, comportamento ético, paciência etc. As pessoas no caminho ao redor da residência do Dalai Lama estão fazendo mérito religioso, que se espera pagar os dividendos no futuro, mas em um nível mais profundo, elas estão tentando reorientar suas mentes na direção de uma compaixão maior e mais espontânea, já que esperam atingir absolutamente o mesmo nível de Avalokiteshvara. Enquanto observam a residência da manifestação humana de Avalokiteshvara, elas desejam se tornar como ele, e as paredes mani, chörtens e rochas esculpidas com seu mantra servem para conduzir a atenção ao seu trabalho, que é o de não apenas pedir ajuda a alguma divindade poderosa, mas se tornarem divindades por si mesmas e trabalhar pela melhoria dos outros. Um dos aspectos da vida em uma comunidade tibetana exilada que impressiona a maioria dos ocidentais é a difusão de tal simbolismo. Em todos os lugares por onde se anda, os símbolos buddhistas sobressaem: há paredes com rodas de oração inscritas com mantras, e as pessoas que as giram acreditam estar enviando um prece para o benefício de todos os seres sencientes. As bandeiras de oração, com curtos mantras ou invocações escritas nelas, oscilam ao vento, cada movimento enviando uma prece pelo benefício dos outros. Relicários de vários tamanhos, assim como monastérios, monges, monjas, templos e estátuas captam o olhar em todos os lugares, e muitas das pessoas que passam estão engajadas em atividades associadas com a prática budista: uma mulher a caminho do mercado está segurando suas contas de oração e suavemente recitando um mantra; um grupo de crianças está se prostrando em frente a um templo; uma fila de pessoas está se movendo vagarosamente ao redor de uma parede com rodas de oração, girando cada uma pelo benefício dos outros. Em todos os lugares para onde se olha, percebem-se os sinais os das atividades que poderiam ser classificadas como "religiosas" pela maioria dos ocidentais, mas elas estão tão profundamente entrelaçadas no tecido da vida tibetana diária que é difícil de separar uma única parte deste tapete que seja puramente "religiosa" ou uma parte que seja apenas "secular". Não há distinção clara entre vida religiosa e secular nas sociedades tibetanas, e a "religião" não é compartimentalizada em certos lugares e horas, como tende a ser nas sociedades ocidentais. Ao invés disso, o budismo é o próprio sangue-vida da comunidade, e sua influência é vista em todos os aspectos da vida diária. A língua tibetana nem mesmo possui um termo como as mesmas associações para a palavra "religião". A palavra mais próxima é chö (chos), que é uma tradução tibetana da palavra em sânscrito Dharma. Este termo tem uma ampla gama de significados possíveis, nenhuma palavra em português vem a expressar aproximadamente as associações que ela tem para os tibetanos. Em seu uso mais comum, ela se refere aos ensinamentos do budismo, em que se acreditam expressar a verdade e delinear o caminho para a iluminação. O caminho é multifacetado, e há ensinamentos e práticas para servir a cada tipo de pessoa. Não há ninguém no caminho que todos sejam obrigados a seguir e não há práticas que sejam prescritas para todos os budistas. Ao invés disso, o Dharma tem algo para cada um, e qualquer um pode se beneficiar com algum aspecto do Dharma. Porém, por causa desta natureza multifacetada, não há uma "verdade" que possa ser colocada em palavras, nem há um programa que treinamento que todos possam ou precisem seguir. O budismo tibetano reconhece que as pessoas têm diferentes capacidades, atitudes e pré-disposições, e o Dharma pode e deve ser adaptado a isto. Assim, não há uma única igreja em que todos devam cultuar, nenhum serviço religioso em que todos devam participar, nenhuma oração que todos devam dizer, nenhum texto que todos devam tratar como normativo, e nenhuma divindade que todos devam cultuar. O Dharma é extremamente flexível e se alguém achar que uma prática específica leva a diminuir as emoções negativas, a conduzir para a paz e felicidade maiores, e a aumentar a compaixão e a sabedoria, isto é o Dharma. O Dalai Lama afirma que é possível praticar o Dharma até mesmo seguindo os ensinamentos e práticas de tradições não-buddhistas, como o cristianismo, islamismo, judaísmo ou hinduísmo. Se alguém pertence a uma destas tradições e se a sua prática religiosa conduz ao avanço espiritual, o Dalai Lama aconselha a mantê-la, já que esta é a meta de todos os caminhos religiosos. Neste sentimento, ele volta ao Buddha histórico, Shakyamuni, que nasceu no século V a.C. no atual Nepal. Quando estava prestes a falecer, o Buddha foi questionado por alguns de seus alunos, que estavam preocupados com que, após a morte do mestre, as pessoas pudessem começar a propor suas próprias doutrinas, que não teriam sido ditas pelo próprio Buddha, e que estas pessoas poderiam dizer aos outros que essas doutrinas eram as suas palavras reais. Em resposta, o Buddha disse a eles, "Tudo o que for bem-dito é a palavra do Buddha". Em outras palavras, se um ensinamento específico resulta em paz, compaixão e felicidade maiores, e se ele leva a diminuir as emoções negativas, então ele pode seguramente ser adotado e praticado como o Dharma, não importa quem o propôs originalmente. Esta flexibilidade faz ser difícil escrever sobre o budismo tibetano, um tapete de muitas camadas, composto de muitos fios diferentes, e qualquer um que espera escrever uma introdução a este sistema é encarado com o trabalho intimidador de sortir através de séculos de história, imensas quantidades de material textual e múltiplas linhagens de ensinamento e prática, cujo problema é composto pelo escopo do budismo tibetano, encontrado por toda a área cultural tibetana. Esta área inclui as regiões do Tibete central; grandes partes do Tibete ocidental que tradicionalmente eram autônomas; Amdo e Kham nas regiões orientais, que apesar de serem culturalmente tibetanas, falam dialetos distintos e mantinham independência das regiões centrais; as planícies abertas de Changtang, terra dos nômades tibetanos; muito da atual Mongólia; grandes áreas da Ásia central; áreas menores da presente Rússia e parte de várias repúblicas da ex-URSS; muito da região do Himalaia e do norte da Índia, incluindo o Ladakh, Zanskar e Sikkim; e os países vizinhos, Nepal e Butão. Além disso, devido à diáspora do povo tibetano, trazida pela invasão e ocupação do Tibete pela China, hoje a religião e cultura tibetanas estão sendo difundidas por todo o mundo, e aumentando o número de pessoas no Ocidente que se consideram aderentes do budismo tibetano. Milhões ouviram ensinamentos ou leram livros e artigos de professores tibetanos, com o resultado de que a cultura tibetana está atraindo uma inesperada atenção de fora da sua terra natal, ao mesmo tempo em que tem sido sistematicamente erradicada em sua terra de origem. (Adaptado do livro Introduction to Tibetan Buddhism, |