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Todos Nós
Ayya Khema


Assediados pelo Nascimento, Envelhecimento e Morte
Doze Discursos sobre a Prática do Dhamma
proferidos na Ilha das Monjas Parappuduwa
Copyright © 1988 Sister Ayya Khema
Este trabalho pode ser impresso para distribuição gratuita.
Este trabalho pode ser re-formatado e distribuído para uso em computadores e redes de computadores contanto que nenhum custo seja cobrado pela distribuição ou uso.
De outra forma todos os direitos estão reservados.

Conteúdo

  • Agradecimentos
  • Prefácio
  • I. O Dhamma do Abençoado
  • II. Aceitando a Si Mesmo

 

Agradecimentos

Meu agradecimento vai para todas as monjas, anagarikas e pessoas leigas que ouviram tantas vezes as minhas exposições dos ensinamentos do Buda.

Sem eles, estas palestras não teriam ocorrido e este livro não existiria.

Um "muito obrigado" especial para os meus amigos, que sempre encorajaram e apoiaram o meu trabalho e a publicação deste livro, através da sua sempre presente compreensão e generosidade.

Àqueles que datilografaram o manuscrito a partir das fitas gravadas dos discursos, que ofereceram livremente o seu tempo, energia e amor para a propagação do Dhamma.

Que todos aqueles conectados com este esforço conjunto possam colher os frutos do excelente kamma resultante da sua generosidade.

Ayya Khema
Ilha das Monjas Parappuduwa
Dodanduwa, Sri Lanka
1 Janeiro 1987

 

 

Prefácio

Este pequeno livro é oferecido a todas as pessoas em todos os lugares, que compreendem que dukkha não é somente sofrimento, dor e angústia, mas tudo aquilo de insatisfatório que todos nós experimentamos durante as nossas vidas.

É aquela ânsia insatisfeita no coração e na mente que nos empurra em tantas direções para encontrar a felicidade última.

Quando nos dermos conta de que todos os caminhos que tentamos nos levaram a um beco sem saída, terá chegado o momento correto de voltarmo-nos para os ensinamentos do Buda e ver por nós mesmos se a promessa dele:

"Apenas uma coisa eu ensino,

e isso é o sofrimento

e como dar um fim nisso"

pode ser vivenciada, e se a felicidade é possível.

À medida que a prática avança, descobriremos que ao abandonarmos as nossas idéias preconcebidas sobre como e onde dukkha pode ser evitado, penetraremos um território desconhecido dentro de nós mesmos, o que nos proporcionará um conceito, propósito, valor e realidade última da vida, totalmente novos.

Que possam existir muitos com "pouco pó sobre os olhos", que reverterão a correnteza de dukkha e alcançarão a libertação.

Ayya Khema

 

I. O Dhamma do Abençoado
é Exposto com Perfeição

"O Dhamma do Abençoado

é exposto com perfeição,

visível no aqui e agora,

com efeito imediato."

A primeira linha deste enunciado proclama a fé verdadeira no Dhamma. E isso não significa a crença em tudo sem uma investigação, mas um relacionamento íntimo de confiança. Quando uma pessoa tem fé em alguém, ela também confia nessa pessoa, ela se coloca nas mãos dela ou dele, com uma profunda conexão e abertura interior. Isso é ainda mais verdadeiro em relação à fé no ensinamento do Buda. Aqueles aspectos do Dhamma que você ainda não compreende podem ser deixados em suspenso. No entanto, isso não abala a sua fé e confiança.

Se sentirmos que ele "é exposto com perfeição," então somos muito afortunados, pois conhecemos uma coisa neste universo que é perfeita. Não existe nada mais que possa ser encontrado sem máculas, nem existe algo que esteja no processo de tornar-se perfeito. Se tivermos essa confiança, fé e amor em relação ao Dhamma e acreditarmos que ele é exposto com perfeição, então teremos encontrado algo que supera qualquer comparação. Seremos abençoados com uma riqueza interior.

"Visível no aqui e agora," cabe a cada um de nós. O Dhamma foi esclarecido pelo Abençoado que o ensinou por compaixão, mas nós temos que vê-lo por nós mesmos com a nossa visão interior.

"Aqui e agora," precisa ser enfatizado, porque isso significa o não esquecimento, mas estar atento ao Dhamma a cada momento. Essa atenção nos ajuda a vigiar as nossas reações antes que elas resultem em palavras ou ações inábeis. Vendo o que há de positivo em nós e cultivando-o, vendo o negativo e substituindo-o. Quando acreditamos em todos os nossos pensamentos e os justificamos, não estamos vendo o Dhamma. Não existem justificativas, existem apenas fenômenos que surgem e que cessam.

"Com efeito imediato," significa que não dependemos de que um Buda esteja vivo para praticar o Dhamma; embora essa seja uma crença amplamente difundida, é bem possível praticar agora. Algumas pessoas pensam ser necessário ter uma situação perfeita ou um mestre perfeito ou uma meditação perfeita. Nada disso é verdadeiro. Os fenômenos mentais e físicos, (dhammas), estão constantemente surgindo e desaparecendo, mudando sem cessar. Quando nos agarramos aos fenômenos e os consideramos como nossos, então iremos acreditar em todas as estórias que as nossas mentes nos contarem, sem discriminação. Consistimos de um corpo, sensações, percepções, formações mentais e consciência, aos quais nos agarramos com firmeza e acreditamos serem "eu" e "meu." Precisamos dar um passo atrás, ser um observador neutro de todo o processo.

"Que convida ao exame,

que conduz para adiante."

O entendimento do Dhamma nos conduz ao nosso íntimo mais profundo. Não somos convidados a examinar uma sala de meditação ou uma estátua do Buda, um pagode ou um santuário. Somos convidados a examinar os fenômenos, (dhammas), que estão surgindo dentro de nós. As contaminações bem como as purificações são encontradas dentro do próprio coração e mente.

As nossas mentes estão sempre muito ocupadas, sempre com recordações, planejamentos, esperanças ou julgamentos. Este corpo também poderia estar muito ocupado pegando pequenas pedras e arremessando-as n’água durante todo o dia. Mas consideramos isso um desperdício tolo de energia e por isso dirigimos o corpo para algo mais útil. Precisamos fazer o mesmo com a mente. Ao invés de ficar pensando nisto e naquilo, permitindo que as contaminações surjam, poderíamos também dirigir nossas mentes para algo mais benéfico tal como a investigação dos nossos gostos e desgostos, nossos desejos e rejeições, nossas idéias e opiniões.

Quando a mente investiga, ela não se envolve com as suas próprias criações. Ela não é capaz de fazer as duas coisas ao mesmo tempo. À medida que ela se tornar cada vez mais observadora, ela permanecerá com objetividade por períodos de tempo mais longos. É por isso que o Buda ensinou que a atenção plena é o único caminho para a purificação dos seres. A observação clara e lúcida de todos os fenômenos que surgem mostra que estes são apenas fenômenos manifestando-se como mente e corpo, que estão em constante expansão e contração da mesma forma que o universo. A menos que nos tornemos observadores muito diligentes, não veremos esse aspecto da mente e corpo e não compreenderemos o Dhamma "aqui e agora," muito embora tenhamos sido convidados "para o exame."

"Para ser experimentado pelos sábios,

por eles mesmos."

Ninguém é capaz de compreender o Dhamma por outrem. Podemos salmodiar, ler, discutir e ouvir, mas a menos que observemos tudo aquilo que surge, não compreenderemos o Dhamma por nós mesmos. Existe apenas um lugar no qual o Dhamma pode ser compreendido, no próprio coração e mente. Tem que ser uma experiência pessoal que sucede através da observação constante de si mesmo. A meditação ajuda. A não ser que a pessoa investigue as suas próprias reações e saiba porque deseja uma coisa e rejeita outra, ela não terá visto o Dhamma. E assim a mente também obterá uma clara percepção da impermanência, (anicca), porque os nossos desejos e aversões estão mudando constantemente. Veremos que a mente que está pensando e o corpo que está respirando são ambos dolorosos, (dukkha).

Quando a mente não opera com uma consciência elevada, transcendente, ela cria sofrimento, (dukkha). Somente uma mente ilimitada, iluminada, está livre disso. O corpo com certeza produz dukkha de muitas formas devido à sua inabilidade de permanecer estável. E a visão clara desse fato nos proporciona uma forte determinação de compreender o Dhamma por nós mesmos.

A sabedoria surge do íntimo e provém da compreensão daquilo que é experimentado. Nem o conhecimento, nem o ouvir podem produzí-la. A sabedoria também significa maturidade, que não tem nada a ver com a idade. Algumas vezes o envelhecimento pode ajudar, mas nem sempre esse é o caso. A sabedoria é um conhecimento interior que cria a auto-confiança. Não precisamos buscar a confirmação e a boa vontade de outrem, nós sabemos com certeza.

Quando salmodiamos algo, é essencial que saibamos o significado das palavras e investiguemos se elas possuem alguma conexão conosco.

pamadamulako lobho, lobho vivadamulako,
dasabyakarako lobho, lobho paramhi petiko,
tam lobham parijanantam vande'ham vitalobhakam

A cobiça é a raiz da negligência, a cobiça é a raiz das disputas,
A cobiça produz a escravidão e um futuro nascimento fantasmagórico;

Aquele que conheceu o fim da cobiça, eu honro Aquele que está liberto da cobiça

vihaññamulako doso, doso virupakarako.
vinasakarako doso, doso paramhi nerayo,
tam dosam parijanantam vande'ham vitadosakam

A raiva é a raiz da turbulência, a causa da feiúra,
A raiva causa muita destruição e um futuro nascimento no inferno;
Aquele que conheceu o fim da raiva, eu honro Aquele que está liberto da raiva.

sabbaghamulako moho, moho sabbitikarako,
sabbandhakarako moho, moho paramhi
svadiko tam moham parijanantam vande'ham vitamohakam

A delusão é a raiz de todos os males, a delusão só cria problemas,
Toda cegueira vem da delusão, bem como um futuro nascimento como animal;
Aquele que conheceu o fim da delusão, eu honro Aquele que está liberto da delusão.

O Buda disse:

"Melhor do que mil palavras insignificantes,
é uma palavra com significado,
ao ouví-la se obtém a paz."

Dhp. 100

Se pudermos praticar um verso do Dhamma, isso terá mais valor do que saber de cor todo o livro de cânticos.

O surgimento e a cessação dos fenômenos, que são os nossos mestres, nunca descansam. O Dhamma nos está sendo ensinado constantemente. Enquanto estamos acordados, todos os nossos momentos são professores do Dhamma, se assim nós os fizermos. O Dhamma é a verdade exposta pelo Iluminado, que é a lei da natureza que nos cerca e que está arraigada dentro de nós.

Certa vez o Buda disse: "Ananda, é na dependência de mim como um amigo admirável que os seres sujeitos ao nascimento obtiveram a libertação do nascimento." (SN XLV.2).

Todos nós precisamos de um bom amigo, que tenha abnegação suficiente, não somente provendo auxílio, mas também chamando a atenção quando estivermos decaindo. Trilhar o caminho do Dhamma é como caminhar na corda bamba. Ele segue numa linha reta e cada vez que alguém escorrega, se machuca. Se sentirmos no íntimo uma sensação dolorosa, não estaremos mais sobre a corda bamba do Dhamma. Nosso amigo admirável, (kalyanamitta), poderá então nos dizer: "Você se desviou em demasia para a direita ou para a esquerda, (seja qual for o caso). Você não foi cuidadoso e por isso caiu em depressão e no sofrimento. Eu chamarei sua atenção da próxima vez que você estiver se desviando." Só poderemos aceitar isso de alguém em quem tenhamos confiança e segurança.

Uma pessoa pode ser enganada pelas belas palavras ou aparência esplêndida de alguém. O caráter de uma pessoa se revela não somente através de palavras, mas nas pequenas atividades do dia a dia. Um dos importantes indicadores do caráter de uma pessoa é como ela reage quando as coisas vão mal. É fácil ser amoroso, auxiliador e amigo quando tudo está indo bem, mas quando surgem as dificuldades a nossa tolerância e paciência são postas à prova, bem como a nossa equanimidade e determinação. Quanto menos autocentrada for a pessoa, mais fácil será para ela lidar com todas as situações.

No início, caminhar sobre a corda bamba do Dhamma poderá ser desconfortável. A pessoa não está habituada a manter o próprio equilíbrio, e ao invés disso ela se deixa influenciar por tudo, indo em todas as direções, onde quer que seja mais confortável. A pessoa poderá se sentir limitada e coagida, sem permissão para viver de acordo com os seus instintos naturais. E além disso, para caminhar sobre a corda bamba a pessoa tem que se controlar de várias formas por meio da atenção plena. Essas restrições podem no início ser irritantes, como grilhões ou amarras, mas mais tarde elas se tornarão os fatores libertadores.

Para possuir essa jóia perfeita do Dhamma nos nossos corações, precisamos estar despertos e conscientes. Então poderemos provar através da nossa própria vigilância que "o Dhamma do Abençoado é exposto com perfeição." Não existe nenhuma outra jóia no mundo que se iguale ao valor do Dhamma. Cada um de nós pode se tornar o dono dessa jóia preciosa. Podemos nos considerar como os mais afortunados por ter essa oportunidade. Quando despertarmos pela manhã, que este seja o nosso primeiro pensamento: "Que boa fortuna tenho em poder praticar o Dhamma."

 

II. Aceitando a Si Mesmo

É um fenômeno estranho a dificuldade que as pessoas têm de amar a si mesmas. Alguém pensaria que é a coisa mais fácil do mundo porque estamos constantemente preocupados conosco. Estamos sempre interessados em quanto podemos ganhar, quão bem poderemos desempenhar algo, quão confortável algo pode ser. O Buda mencionou num discurso que "a pessoa mais querida para alguém é ela mesma." Então, com base nisso, porque na verdade é tão difícil amar a si mesmo?

Amar a si mesmo com certeza não significa se entregar ao desejo. Amar de verdade é uma atitude em relação a si próprio, que a maioria das pessoas não possui, porque elas conhecem uma quantidade razoável de coisas sobre si mesmas que não são atraentes. Todas as pessoas têm inúmeras atitudes, reações, gostos e desgostos sem os quais elas estariam em melhor situação. Uma opinião é formada a respeito das atitudes de alguém e enquanto as positivas são apreciadas, as outras causam antipatia. Com base nisso, surge a supressão daqueles aspectos de si mesmo com os quais não existe satisfação. A pessoa não quer saber deles e também não os reconhece. Essa é uma das formas de lidar consigo mesmo, que é prejudicial ao crescimento.

Um outro jeito inábil é desgostar daquela parte de si mesmo que se mostra negativa e cada vez que ela surge a pessoa critica a si mesma, o que faz com que a situação fique ainda pior do que antes. Com isso, surge o temor e com freqüência a agressão. Se alguém quiser lidar consigo mesmo de uma forma equilibrada, não traz nenhum benefício fazer de conta que a parte desagradável não existe, aquelas tendências agressivas, irritantes, sensuais e presunçosas, fazendo de conta que está distante da realidade, colocando uma fenda dentro de si. Muito embora uma pessoa assim possa estar mentalmente sã, a impressão que ela transmite é de não ser totalmente verdadeira. Todos nós já topamos com pessoas assim, que são demasiado doces para serem verdadeiras, como resultado da fantasia e da supressão.

Criticar a si mesmo também não funciona. Em ambos os exemplos a pessoa transfere as suas próprias reações para outras pessoas. A pessoa critica os outros por suas deficiências, reais ou imaginárias, ou a pessoa não os vê como seres humanos comuns. Todos vivemos num mundo irreal, devido à delusão do ego, mas neste caso é particularmente irreal, porque tudo é considerado ou como perfeitamente maravilhoso, ou como absolutamente terrível.

A única coisa real é que temos dentro de nós seis raízes. Três raízes do bem, (hábeis), e três raízes do mal, (inábeis). As últimas três são a cobiça, a raiva e a delusão, mas nós também possuímos os seus opostos: generosidade, amor bondade e sabedoria. Desenvolva o interesse por este assunto. Se você fizer uma investigação a respeito disto e não ficar ansioso, então poderá com facilidade aceitar as seis raízes em todas as pessoas, sem nenhuma dificuldade, desde que você tenha visto essas raízes em si mesmo. São raízes subjacentes ao comportamento de todos. Só então poderemos olhar para nós mesmos de uma forma um pouco mais realista, isto é, sem nos criticarmos devido às raízes inábeis, nem nos elogiarmos devido às raízes hábeis, ao invés disso, aceitar a existência delas dentro de nós. Poderemos também aceitar os outros com uma visão mais clara e ter uma maior facilidade nos nossos relacionamentos.

Não sofreremos devido aos desapontamentos e não faremos críticas, porque não viveremos num mundo onde só exista o branco ou o negro, ou as três raízes daquilo que é inábil, ou os seus opostos. Tal mundo não existe em lugar nenhum e a única pessoa que é assim é um Arahant. Para as demais pessoas é em grande parte uma questão de grau. Os graus de bem e mal são ajustados com tamanha precisão, existindo muito pouca diferença de graduação em cada um de nós, de forma que isso acaba por não ter importância. Todos possuem a mesma tarefa, cultivar as tendências hábeis e extirpar as tendências inábeis.

Aparentemente somos todos muito distintos. Isso também é uma ilusão. Todos enfrentamos os mesmos problemas e também possuímos as mesmas faculdades para lidar com eles. A única diferença é o tempo de treinamento que tenhamos tido. Um treinamento que tenha ocorrido ao longo de muitas vidas terá resultado em um pouco mais de lucidez, isso é tudo.

A lucidez do pensamento provém da purificação das próprias emoções, que é uma tarefa difícil que precisa ser feita. Mas ela só será realizada com êxito quando não for uma comoção emocional, mas um trabalho claro e honesto que a pessoa realiza consigo mesmo. Quando for considerado como nada mais do que isso, o tormento será eliminado. A imputação "Eu sou tão maravilhoso" ou "Eu sou terrível" será neutralizada. Nós não somos nem maravilhosos, nem terríveis. Todos somos seres humanos com todo o potencial e todas as obstruções. Se alguém puder amar este ser humano, que é este "eu" com todas as suas faculdades e tendências, então poderá amar aos outros de forma realista, benéfica e auxiliadora. Mas se alguém fizer uma pausa no meio e amar aquela parte que seja agradável e tiver antipatia por aquela parte que não é muito agradável, ele nunca irá se confrontar honestamente com a realidade. Algum dia ele terá que vê-la, tal como ela é. Essa é uma "área de trabalho," uma kammatthana. É um assunto simples e interessante que diz respeito ao coração de cada um.

Se olharmos para nós mesmos dessa maneira, aprenderemos a nos amar de uma forma benéfica. "Como uma mãe que colocando em risco a própria vida, ama e protege o seu filho…" Torne-se a sua própria mãe! Se quisermos ter um relacionamento conosco que seja realista e que conduza ao crescimento, então precisamos nos tornar nossa própria mãe. Uma mãe sensata sabe distinguir entre aquilo que é benéfico para o seu filho e aquilo que é prejudicial. Mas ela não deixa de amar o seu filho quando ele se comporta mal. Esse pode ser o aspecto mais importante a ser observado em nós mesmos. Todos nós, em uma ocasião ou outra, nos comportamos mal com o pensamento ou com a linguagem, ou com a ação. Mais freqüentemente com o pensamento, com freqüência razoável com a linguagem e não tão freqüentemente com a ação. Então o que fazer com relação a isso? O que uma mãe faria? Ela diria ao seu filho para não fazer mais aquilo, continuaria amando a criança tanto quanto sempre amou e daria seguimento à tarefa de criar o seu filho. Talvez possamos começar a criar a nós mesmos.

A totalidade deste treinamento é uma questão de amadurecimento. Amadurecer é sabedoria, que infelizmente não está ligada à idade. Se estivesse, seria muito fácil. A pessoa teria uma certeza. Como não existe isso, a tarefa é árdua, um trabalho a ser feito. Primeiro vem o reconhecimento, depois aprender a não condenar, mas compreender: "Assim é como são as coisas." O terceiro passo é a mudança. O reconhecimento pode ser a parte mais difícil para a maioria das pessoas, não é fácil ver aquilo que ocorre no nosso interior. Essa é a parte mais importante e o aspecto mais interessante da contemplação.

Levamos uma vida contemplativa, mas isso não significa sentarmos em meditação durante o dia todo. Uma vida contemplativa significa que a pessoa considera cada aspecto daquilo que ocorre como parte do aprendizado. A pessoa permanece introspectiva em todas as circunstâncias. Quando a pessoa se torna extrovertida, com aquilo que o Buda chamava de "exuberância da juventude," a pessoa se dirige ao mundo com os próprios pensamentos, linguagem e ação. A pessoa precisa controlar-se e regressar para o seu íntimo. Uma vida contemplativa em algumas ordens religiosas é uma vida de orações. No nosso caminho é uma combinação de meditação e estilo de vida. A vida contemplativa prossegue no nosso íntimo. A pessoa pode realizar a mesma tarefa com ou sem a recordação disso. A contemplação é o aspecto mais importante da introspecção. Não é necessário ficar sentado durante o dia todo observando a própria respiração. Cada movimento, cada pensamento, cada palavra pode fazer surgir a compreensão de si mesmo.

Este tipo de trabalho consigo mesmo irá resultar numa profunda segurança interna, que estará enraizada na realidade. A maioria das pessoas deseja e anseia por esse tipo de segurança, mas não é nem mesmo capaz de expressar o seu desejo. Vivendo num mito, desejando ou temendo constantemente, é o oposto de ter força interior. A sensação de segurança surge quando a pessoa vê a realidade dentro de si mesma, e por causa disso, a realidade em todos os demais, passando a aceitá-la.

Aceitemos o fato de que o Buda conhecia a verdade ao afirmar que todos possuímos sete tendências latentes ou obsessões: desejo sensual, má vontade, idéias especulativas, dúvida, presunção, desejo por ser/existir, ignorância. Encontre-as em você mesmo. Sorria para elas, não desate a chorar por causa delas. Sorria e diga: "Bem, aí estão. Vou tomar uma atitude em relação a vocês."

A vida contemplativa é vivida com freqüência de forma opressiva. Uma certa falta de alegria pode ser compensada pela extroversão. Mas isso não funciona. A pessoa deveria cultivar um certo contentamento, mas manter-se introspectivo. Não há nada com o que se preocupar ou temer, nada que seja tão difícil. Dhamma significa a lei da natureza e essa lei está manifestada em nós todo o tempo. De que devemos escapar? Não podemos fugir da lei da natureza. Onde quer que estejamos, somos o Dhamma, somos impermanentes, (anicca), insatisfeitos, (dukkha), sem uma essência,(anatta). Não importa se estamos sentados aqui ou na lua. É sempre a mesma coisa. Então precisamos ter uma abordagem serena em relação às nossas próprias dificuldades e às dos demais, mas sem exuberância e efusão. Preferivelmente, uma constante introspecção que contenha um tanto de diversão. Isso é o mais eficaz. Se alguém tiver senso de humor em relação a si mesmo, será mais fácil amar a si mesmo de forma apropriada. Também será muito mais fácil amar a todos os demais.

Havia um programa na televisão americana chamado "As Pessoas são Engraçadas." Nós realmente temos as mais estranhas reações que ao serem observadas e analisadas muitas vezes parecem absurdas. Nós temos desejos e anseios bem estranhos e imagens irreais de nós mesmos. É bem verdade que "as pessoas são engraçadas," então porque não ver esse lado em nós mesmos? Isso facilita aceitar aquilo que nos parece ser tão inaceitável em nós mesmos e nos outros.

Existe um aspecto da existência humana que não podemos mudar, isto é, que continua ocorrendo a cada momento. Nós já estamos meditando aqui faz algum tempo. O mundo se preocupa com isso? Ele continua o seu caminho. O único que se importa, que fica perturbado, é o nosso próprio coração e mente. Quando há perturbação, agitação, irrealismo e absurdidade, então existe também a infelicidade. Isso é na verdade desnecessário. Tudo apenas é. Se aprendermos a abordar todas as ocorrências com mais equanimidade, com aceitação, então a tarefa de purificação será muito mais fácil. Essa é a nossa tarefa, nossa própria purificação, e só pode ser realizada por nós mesmos.

Um dos melhores aspectos com respeito a isso é que se alguém tiver atenção naquilo que estiver fazendo, se insistir nisso dia após dia sem esquecimento e continuar meditando sem esperar grandes resultados, pouco a pouco eles surgirão. Isso, também, é assim. Enquanto o empenho nessa tarefa persistir, ocorrerá um constante desgaste das impurezas e dos pensamentos irreais, pois não existe felicidade neles e poucos vão querer ficar agarrados à infelicidade. Finalmente, a pessoa esgota aquelas coisas por fazer que estão fora de si mesma. Os livros, dizem todos as mesmas coisas, as cartas, foram todas escritas, as flores, foram todas aguadas, não resta mais nada por fazer, exceto olhar para dentro de si. E com a freqüente repetição desse fato, uma mudança ocorre. Ela poderá ser lenta, mas já que estivemos aqui por tantas vidas, o que é um dia, um mês, um ano, dez anos? Eles estão todos transcorrendo, de qualquer maneira.

Não há mais nada por fazer e nenhum outro lugar para ir. A terra se move num círculo, a vida se move do nascimento para a morte sem que tenhamos, sequer, que nos mover. Tudo acontece sem a nossa interferência. A única coisa que precisamos fazer é estar conectados com a realidade. E quando fizermos isso, descobriremos que amar-nos e amar os outros é uma conseqüência natural; porque estamos interessados na realidade e essa é a verdadeira tarefa do coração – amar. Mas só se também tivermos visto o outro lado da moeda em nós mesmos, e se tivermos feito o trabalho de purificação. Neste caso, não será mais um esforço ou um empreendimento deliberado, mas se tornará uma função natural dos nossos sentimentos mais íntimos, dirigido para dentro, mas luminoso no exterior.

A direção para dentro é um aspecto importante da nossa vida contemplativa. Qualquer coisa que ocorra no nosso íntimo tem repercussões diretas naquilo que ocorre no exterior. A luminosidade e pureza interior não podem ser disfarçadas, nem as impurezas.

Algumas vezes pensamos que podemos representar algo que não somos. Isso não é possível. O Buda disse que apenas conhecemos uma pessoa depois de tê-la ouvido falar muitas vezes e de ter vivido com ela durante muito tempo. As pessoas em geral tentam vender uma imagem melhor do que aquilo que elas na verdade são. Assim, é claro, elas ficam desapontadas consigo mesmas ao fracassarem e igualmente desapontadas com os outros. Conhecer a si mesmo de forma realista possibilita o amor verdadeiro. Esse tipo de sensação proporciona o contentamento necessário para esta tarefa na qual estamos engajados. Ao aceitarmos a nós mesmos como na verdade somos e aos outros, nossa tarefa de purificação, de ir desgastando as impurezas, será muito mais fácil.

 Revisado: 17 Maio 2003




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