MAHAMUDRA IV
Kalu Rinpoche*
A prática do Mahamudra em si é extremamente simples e fácil. Não há visualizações ou exercícios complicados. Não há nada a fazer. Basta deixar a mente em seu estado natural, como ele é, como ele vier, sem fabricação. É extremamente simples. Na tradição do relicário do Mahamudra, é dito que o Mahamudra é:
Muito próximo para ser reconhecido,
Muito profundo para ser agarrado,
Muito fácil para se acreditar,
Muito maravilhoso para ser entendido intelectualmente.
Esses são os quatro obstáculos que impedem o seu reconhecimento. Gampopa disse:
A água calma é clara;
A mente livre de tensão é feliz.
Assim como este verso mostra, deixamos a mente livre e relaxada, completamente solta, sem forçá-la de nenhum modo. Então, surgirá um estado de bem-estar; quando a mente não é forçada, ela fica naturalmente pacífica e clara. Neste estado, a mente não se fixa sobre qualquer ponto de referência externo ou interno; ao invés disso, ela permanece livre de toda fixação, mas não controlada. Também não há qualquer determinação da mente como vazia, lúcida ou qualquer outra coisa, nem mesmo qualquer observação, porque considerá-la como qualquer coisa — até mesmo como vazia — seria mais uma outra percepção que tomariam a mente, a vacuidade ou a lucidez como pontos de referência.
Mas o objetivo não é o de parar a visão porque a atenção vigilante e a claridade não devem ser interrompidos. É necessário manter a visão clara. A visão não requer esforço especial quando há luz; do mesmo modo, a mente clara não se dispersa nem afunda na escuridão ou nebulosidade. A mente permanece translúcida, transparente, lúcida, desapegada. Do mesmo modo que o céu é claro e aberto, assim é a mente deixada em seu estado natural. Medite deixando a mente em um estado de presença total, sem olhar para o passado ou projetar para o futuro, sem pensar "Eu fiz isto ou aquilo, eu farei isto ou aquilo"; deixe a mente apenas ser vigilante, bem simples, sem forçá-la, sem mudar qualquer coisa, dentro da "agoridade" espontânea ou mente do imediato. Se a mente realmente permanecer "como ela vier de si, como ela é em si", isto é o que chamamos de mente natural, rangbab em tibetano. Isto também é o que chamamos de mente ordinária — thamel gyi shepa em tibetano, ou "mente do imediato", datarwe shepa. Quando realizada, esta é mente do Mahamudra.
Os Três Pontos Chave
A prática do Mahamudra pode ser dividida em três pontos essenciais: ausência de fabricação, ausência de distração e ausência de meditação. Primeiro, a ausência de fabricação ou constrangimento. Deixamos a mente como ela é, sem alterá-la através de qualquer intervenção ou qualquer fabricação. Não tentamos produzir qualquer coisa ou melhorar nosso estado de mente presente.
Em seguida, a ausência de distrações. O primeiro tipo de distração ocorre quando a mente é distraída da mente ordinária natural (rangbab, thamel gyi shepa), começando a agarrar uma forma, um som, um pensamento ou qualquer outra coisa. Ausência de distração significa ausência de fixação. Um segundo tipo de distração surge quando a mente perde sua vigilância, sua claridade lúcida. O terceiro é a ausência de meditação, que significa que não há mais qualquer meditação a se fazer. Apenas deixamos a mente em seu estado natural, sem tensão, deixando-a ser a mente ordinária.
Os Três Corpos da Mente
A mente natural, rangbab, tem uma qualidade de transparência natural na qual seus três aspectos naturais existem espontaneamente: vacuidade, claridade e não-impedimento. A transparência da mente é a sua vacuidade essencial; seu conhecimento e sua natureza luminosa são sua claridade; e os aspectos de sua experiência iluminada são o seu não-impedimento. Quando a mente está neste estado de transparência límpida, aberta e lúcida, ela está completamente desperta em um estado de consciência nua — rigtong em tibetano. É o estado desperto prístino — rigpa em tibetano; desimpedida, experiencianda em si mesma suas manifestações ilimitadas em todos os seus aspetos. Este estado desperto vazio, claro e ilimitado não está muito distante de nós. É a nossa face natural; mas assim como a nossa própria face, ela não pode perceber a si mesma. Isto é o que chamamos de ignorância, ou marigpa em tibetano, que é simplesmente a ausência do estado desperto nu ou rigpa. A fim de ir além da ignorância, precisamos ver sua natureza vazia sem conceitualizar; então, devemos acostumar a mente a esta experiência e estabilizá-la gradualmente a fim de que permaneça livre da distração sob todas as circunstâncias. É assim que a prática progride. Mas lembre-se que estas qualidades essenciais da mente não são uma coisa que precisemos tentar reproduzir; elas são a própria natureza da mente e temos apensar de reconhecê-las.
A mente, sendo naturalmente vazia, é para sempre o dharmakaya, o corpo de vacuidade ou corpo absoluto do Buddha. Sendo naturalmente lúcida, é sempre o sambhogakaya, o corpo da alegria completa do Buddha. E já que é um conhecimento naturalmente ilimitado, ela é para sempre o nirmanakaya, o corpo de manifestação do Buddha. Então, a mente é sempre, por natureza, os três corpos do Buddha, natural e espontaneamente livres. Nada poderia ser feito para melhorar sua perfeição. A realização do Mahamudra é chamada de estado desperto primordial inato porque os três aspectos da natureza essencial da mente — vacuidade, claridade e não-obstrução ou não-impedimento — sempre existem nela; são inatos.
Integração e Transmutação dos Pensamentos e Emoções
Quando estamos apenas começando a praticar, nossa mente borbulha e efervesce como uma panela de água fervente sobre o fogo. A prática do rangbab nos ensina a parar de interferir com pensamentos e emoções, o que é como cessar de alimentar o fogo; então o borbulhamento parará por si próprio. Como iniciantes, não podemos permanecer por muito tempo em um estado de meditação correta — somos distraídos por pensamentos e emoções aos quais nos fixamos e nos apegamos. Aprendemos, porém, a não segui-los — simplesmente notando a presença de um pensamento, não o seguimos, mas ao invés disso permanecemos em alerta, em um estado de "observação desapegada" de tudo o que apareça na mente. Deixamos a mente como ela é, para reconhecer o que está acontecendo dentro dela, e não interferimos.
"Simplesmente ver", conforme descrevemos, é o estado do observador desapegado. Quando permanecemos neste estado de vigilância não-investida, como uma testemunha imparcial, os pensamentos e paixões surgem e desaparecem na vacuidade assim como as ondas surgindo e caindo de volta no mar, ou como um arco-íris que ilumina e que se estica através do espaço. Neste estado de mente, todos os pensamentos e emoções que surgem não são mais benéficos ou prejudiciais. Se pudermos praticar deste modo, o que quer que surja em nossa mente não será um problema e seremos capazes de viver em um estado de meditação contínua em todas as circunstâncias. Permanecer em meditação durante tudo o que fizermos — seja rezando, recitando mantras ou se movendo por aí, trabalhando ou dormindo — é o que chamamos de prática contínua. Todos os mestres realizados do passado seguiram este mesmo caminho. Na verdadeira realização do Mahamudra, as aflições adornam a mente ao invés de perturbá-la ou contaminá-la. As tendências negativas não são mais uma coisa a rejeitar; elas se transmutam em estado desperto primordial.
Tome como exemplo o desejo entre homens e mulheres; é uma tendência passional, mas sua natureza é o êxtase. Sem fugir ou seguir o impulso do desejo, é possível experienciar sua natureza extática que é definitivamente "êxtase-vazio". O mesmo é verdadeiro para a raiva. Aqui novamente, sem expressar ou reprimir a raiva, é possível experienciar sua essência — a claridade dinâmica da mente — e desenvolver a realização da "claridade-vazio". O que é verdadeiro para o desejo e para a raiva também é verdadeiro para o orgulho, para a inveja e para as outras aflições mentais, que se tornam transformadas através da mesma meditação. O desejo reconhecido como êxtase-vazio é transmutado no estado desperto ou sabedoria do discernimento; a raiva experienciada em sua essência é transmutada na sabedoria que é como um espelho; a ignorância na sabedoria primordial do dharmadhatu; o orgulho na sabedoria da equanimidade; e a inveja na sabedoria primordial que tudo realiza.
Já que ainda não realizamos estas sabedorias primordiais, podemos duvidar da possibilidade dessa transformação. Mas através da prática efetiva, um conhecimento profundo da natureza da mente de fato despertará. Então, entenderemos que isto realmente é assim. Quando a transformação das emoções for totalmente completada, as paixões não serão mais um obstáculo. Elas até mesmo se tornarão uma ajuda. Uma imagem tradicional é a de que elas se tornam como lenha para a fogueira da sabedoria; quanto mais você adiciona, mais brilhante é a chama.
*Kalu Rinpoche. Luminous mind: the way of the Buddha. Compilado por Denis Töndrup,
traduzido por Maria Montenegro, prefácio de S.S. o Dalai Lama.
Boston: Wisdom, 1997. Pág. 233-237.
Retirado do site www.dharmanet.com.br